Cap. 4 - Ideia Maluca

Nós dois jantamos em silêncio. Ocasionalmente sentia os seus olhos em mim.

O medo inicial dos três primeiros dias, havia passado, porém, meu corpo ficava tenso e um frio na barriga anunciava a minha inquietação sem sentido.

Era mentira a minha se dissesse que desde que ele chegou ali, eu estava dormindo bem, sabendo que a poucos metros no meu sofá havia um estranho, que apesar de estar todo barbudo, tinha olhos muito bonitos. Ele aparentava uns trinta a trinta e cinco anos no máximo e tinha uma voz macia e sorriso perfeito.

Outro detalhe era que eu estava preocupada com a repercussão que causaria, se a minha tia ou primo soubesse que abriguei o mendigo da praia na minha casa.

No entanto, toda a vez que eu observava o homem dormindo numa profundidade que dava dó, não conseguia afastá-lo de mim.

Se ele estava falando a verdade, não sobrava muito espaço para dormir com segurança.

Via muitos casos de mendigos que eram espancados ou mortos enquanto dormiam e imaginava como podia ser difícil ter que vasculhar comida no lixo ou fazer a sua higiene.

O problema do desconhecido piorava mais ainda por estar com amnésia.

Lost, tirando-me das minhas divagações, anunciou:

— Vou lavar a louça .

Acredito que ele já percebera que eu não era muito chegada com as atividades domésticas.

Apenas concordei.

— Posso pegar o seu prato? — Ele perguntou, com menção de se aproximar.

— Não, pode deixar que levo.

Respondi, nervosa com o olhar profundo dele. Enquanto colocava o meu prato na pia, eu me perguntava: " Quem é esse homem misterioso?"

Não sabia o que era mais intrigante: se era o modo como estava agindo ou as reações que ele causava em mim.

— Vou arrumar as minhas coisas, se precisar é só chamar.

— Tudo bem.

Fui para o quarto e tranquei-me lá. O coração com batidas aceleradas, mostravam-me, que a presença do desconhecido estava mexendo com a minha estabilidade emocional.

Na quinta-feira, ocorreu tudo tranquilo, mas na sexta-feira, algo inusitado aconteceu.

Acordei cedo para fazer o café e sair para mais um dia de venda.

Era cansativo, mas conseguia renda mais rápido assim, do que ficar esperando elas virem até mim.

A estratégia de ir até as clientes estava dando certo e somando-se a isso, nos finais de semana trabalhava nos eventos com Marcela.

De repente, ouvi batidas na porta.

Estremeci. Olhei para o sofá e Lost continuava dormindo.

Pé ante pé, espiei pela fresta da porta e para minha preocupação vi que era Marcela.

Abri devagar e fiz barreira com o meu corpo para ela não passar.

— Bom dia! Kelly, desculpe vir tão cedo, mas é que daqui a pouco vou trabalhar... Posso entrar?

Fiquei por um instante encarando-a sem ter o que dizer. Ela, percebendo a minha hesitação, estranhou.

— Posso entrar, Kelly? — Repetiu a pergunta.

Sem outra opção, avisei:

— Tô com visita... Ele está dormindo no sofá e...

— Aí, meu Deus! Kelly, tem um novo namorado? Até que enfim!

— Oh, não é isso... É só um amigo...

Marcela suspendeu-se para ficar na pontinha dos pés, e com olhos curiosos, falou:

— Me apresenta, estou super curiosa!

Fiquei firme e não arredei o pé.

— Por favor, Marcela, agora não é uma boa hora.

— amiga fez cara decepcionada e suspirou forte.

— Só deu para olhar os pés, que maldade!

— Ele está dormindo... Depois a gente conversa sobre isso..

— É melhor mesmo, pois não tem motivo para esconder um romance… Por acaso é casado?

Confesso que a pergunta encheu-me de preocupação. Se o estranho tivesse mulher e filhos podiam estar aflitos. No entanto, era melhor inventar uma desculpa e afastar a amiga dali.

— Penso que não... Hoje à tarde quando passar perto do seu trabalho, encosto para conversarmos.

Percebi o olhar desconfiado de Marcela, mas fingi que não estava acontecendo nada. Aguardei com paciência a resposta dela.

— Não me engane, Kelly, vou esperar mesmo, pois esta muito esquisito tudo isso!

— Não é nada demais. Bem, mas o que é mesmo que você quer falar comigo?

— É sobre o aniversário surpresa de Lena... É na próxima sexta, lembra?

— Nossa! Esqueci totalmente!

— Jesus! Você só tem 25 anos e já está desse jeito? Estou preocupada, até comentei com Felipe sobre isso!

— Bobagem, Marcela! Não se preocupe... Faço o bolo.

—Ótimo !

Eu estava distraída e foi nesse meio tempo que Marcela, pondo as 'garras de fora', conseguiu passar por mim e quando me espantei, já era tarde demais.

Quando viu Lost no sofá, ela, com a mão na boca e olhos arregalados, se virou para mim e murmurou:

— Kelly! Não acredito!

Eu a puxei de qualquer jeito para fora de casa e encostei a porta atrás de mim.

— Marcela, eu...

— Olha, amiga, você sabe que tenho memória de elefante! Sei muito bem quem é aquele homem no seu sofá! — Ela gritou, irritada.

— Fala baixo!

— Kelly, você perdeu o juízo? Meu Deus! Está tão carente assim que tá dormindo até com um mendigo?

— Você tá me ofendendo, Marcela! Não vai me ouvir não? —Falei no mesmo tom.

Ficamos nos encarando, até que ela cedeu:

— Vai, me convença!

Expliquei da melhor maneira o que aconteceu com ele e, porque estava na minha casa. Quando terminei, ela explodiu:

— Kelly, sua doida! Você não podia ter escondido isso de mim... Imagina se ele for perigoso? Amiga, o que vai fazer? Pelo menos encontre um jeito de contar para sua família...

— Contar pra eles? Você não quer me jogar da ponte, não? Esse rapaz, não é o que você está pensando... Ele é inofensivo. Olha só o que ele fez.

Deixei- a entrar dessa vez.

Sem fazer barulho, mostrei a ela como minha casa estava organizada e como ele era útil para mim.

— Tá bom, ele parece não ser tão mal, mas o que você vai fazer? Não pode escondê-lo por muito tempo.

— Isso eu sei.

Marcela o observou dormindo no sofá. Repentinamente, um sorriso surgiu na sua face. Olhando-a com sorriso travesso. Fiquei com um pé atrás. Não queria nem ouvir. Já vinha uma ideia bombástica da amiga.

— Já sei!

— Nem fale, Você só tem ideia maluca!

— Nada demais, só que você tem que ter a mente aberta para o que vou dizer.

Ela conseguiu me deixar curiosa. Perguntei:

— O que você quer dizer com isso?

Primeiro ela fez suspense. Depois num sorriso de orelha a orelha, propôs:

— Transforme o mendigo no seu novo namorado, que tal?

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