O que você estava fazendo?
Olho pra Sharon que aparece na sala enrolada em uma toalha.
- Estava marcando a minha consulta com o psiquiatra.
Ela anda até a geladeira.
- Pensei que já tivesse feito isso quando conversou com ele por telefone.
Me levanto do sofá e ando até a ilha da cozinha.
- Não, Frank me disse que para eu ficar à vontade na nossa relação eu que deveria decidir quando começar. Ele apenas ressaltou que eu não deveria demorar, e que acha que essa próxima semana seria boa.
- E como você está lidando com essa coisa de ter um psiquiatra?
Olho por um instante para o mármore da bancada, observando os detalhes em preto e branco da pedra.
- *Estou me preparando para me abrir, ele, com toda a certeza, vai querer me fazer revisitar o passado, começando por minha infância f*dida*.
Minha amiga me olha franzindo a testa.
- Queria tanto que você nunca tivesse passado por nenhuma merda dessa.
Sharon me dá um abraço e eu concordo com ela.
- Vamos dormir, amanhã eu quero começar a estudar cedo. Shonda me disse que eu vou ter uma semana inteira de provas.
**********
A campainha toca e eu confiro pra ver quem é. É Jerome, um dos porteiros.
Ele veio me trazer uma coisa que encomendei para dar de presente a Noa pela gentileza dele comigo. Sinto que não o agradeci de maneira adequada.
- Obrigada Jerome.
Pego a garrafa de Châteu Palmer 2005 e me sento no sofá para amarrar o laço de ráfia e fitas douradas e vermelhas que Sharon trouxe pra mim. Pego o papel cartão branco e com desenhos geométricos em auto relevo e escrevo um bilhete.
📝 Não tive tempo e nem oportunidade de te agradecer devidamente por seu ato de generosidade e bondade para comigo. Espero que goste e aprecie o vinho.
^^^Assinado: Alex.^^^
Sei que não deveria, mas saio do meu apartamento e subo até a cobertura. Fico impressionada, meu apartamento é bem espaçoso e o prédio aqui é de um padrão elevado, mas o hall de entrada da casa de Noa é de um luxo gritante. Tem uma mesinha, com um arranjo de crisântemos em branco e laranja, bem do lado da porta de vidro da entrada. Deixo a garrafa lá e volto para meu apartamento, eu não tenho coragem de tocar a campainha, a vergonha por aquela cena lamentável está me consumindo.
**********
Chegou a bendita quarta feira a noite.
Me sento na escrivaninha do meu quarto e ligo o computador respirando fundo e me preparando para minha primeira consulta.
Assim que conectamos a chamada, surge na tela um homem com um óculos redondo, cabelos grisalhos e olhos azuis reconfortantes.
- Boa noite Alex. É um prazer te conhecer.
Abro um sorriso pra ele.
- Boa noite Frank, eu digo o mesmo.
Ele ajeita os óculos e eu reparo no fundo da chamada dele. Tem uma estante cheia de livros.
- Bom, você pode começar me contando sobre sua vida.
Mais uma vez eu puxo o ar e solto de uma maneira funda. Conto tudo pra ele, falo sobre minha vida quando criança, sobre minha mãe viciada, sobre a minha relação com meu pai, e sobre Will.
- Quero atentar nessa primeira consulta para o seu sentimento de carência afetiva, Alex. Isso te levou a entrar no relacionamento com Will. Como você se sente nesse momento? Está se sentindo sozinha?
O encaro por uns instantes. Sei que eu sou uma pessoa carente, isso é óbvio, mas não pensei que seria tão rápido assim a abordagem dessa questão.
- Me sinto sozinha desde que tinha doze anos e meu pai se foi. Me acostumei com esse sentimento, mesmo estando com Will eu me sentia assim, bom, aquilo nunca foi um relacionamento de verdade, não havia carinho entre nós dois.
Frank parece estar anotando o que digo.
- Você acha que essa carência te colocou em mais situações ruins? Se sim, quais foram?
Ele é um homem inteligente, sabe que a resposta é sim, mas isso aqui é para que eu fale e reflita sobre as coisas.
- Acho sim, foi ela que me fez me envolver demais com Martín. Sei que ele teve muita culpa nessa história toda, mas talvez se eu não tivesse tanta necessidade de atenção, não teria me envolvido com ele.
Frank franze a testa.
- Alex, você se envolveu com Martín porque estava presa em uma situação infeliz e ele era totalmente diferente do que você tinha. Qualquer pessoa se apega a qualquer coisa boa quando vive em uma situação horrível como a que você vivia. A aproximação de Martín na sua vida foi uma coisa leviana da parte dele, mas quando se trata de sensações humanas nós nunca temos tanto controle assim.
Concordo com a cabeça.
- Depois de Will essa foi a única situação ruim que eu me envolvi por carência.
Frank me pergunta como eu me senti.
- Usada, e da pior forma.
Perdoei Martín, ele fez muito por mim, essa consulta não é pra ficar tocando na ferida, mas é sobre mim e não tem como eu construir uma boa relação com meu psiquiatra se eu não for sincera com ele.
- Essa sensação de ser usada também é algo muito presente na sua vida, não é?
Começo a sentir meus olhos marejados.
- É sim. Desde que fui dançar naquela boate, mesmo que eu não fizesse programa propriamente dito. Depois foi por Will, bom, ele literalmente me usava quando queria.
Frank me diz pra respirar fundo e tomar uma água quando percebe que eu estou chorando.
- Você tem pesadelos, Alex?
- De vez em quando eu sonho com um par de olhos verdes, os de Will, recentemente eu tive um com Egon, o cara que tentou me matar.
Mais uma vez ele anota as coisas no bloquinho e eu não resisto a perguntar.
- Frank, Martín me disse que troca de roupa dormindo. Por quê?
Meu psiquiatra levanta a cabeça pra mim e abre um sorriso sem mostrar os dentes.
- Bom Alex, eu não costumo falar de outros pacientes de maneira mais profunda durante uma consulta, mas além dele ter mencionado isso pra você, Martín me pediu que te explicasse as coisas se você perguntasse sobre ele. Ele não soube como abordar tudo e sabe que pra você seguir em frente aqui, vai ter que mexer nessa história.
Frank tira os óculos do rosto.
- Martín é o tipo de paciente que vive sobre um estresse constante durante o dia, a noite o corpo dele externa o que a mente suprime. A parassonia que ele tem é o sonambulismo, e de uma maneira forte, ele literalmente se movimenta de maneira completa durante as madrugadas. É capaz até de mirar e atirar. Essa situação já estava controlada há mais de um ano, ele não faz mais uso de psicotrópicos, mas viver isso que está acontecendo agora o fez regredir nesse ponto. Ele também sofria com os pesadelos, todos motivados pela culpa. Sempre começavam com lembranças felizes com Wanessa, dos dois juntos, e acabavam com ela jogando na cara dele o fato de estar morta.
Meu Deus...
Quero saber mais.
- É por isso que ele tem essa coisa toda paranóica com proteção? Ele mandou instalar oito fechaduras na minha porta.
Frank dá uma risada.
- É, é por isso sim. Ele tem a necessidade de proteger as pessoas ao redor, esse traço protetor de personalidade é algo natural nele, afinal, Manson é policial, mas o trauma que ele viveu o aflorou nisso e ele acaba fazendo as coisas sem pensar pra conseguir o seu objetivo. Quero que você se atente aqui nesse ponto Alex, os seus traços de personalidade mais complicados também estão aflorados. Pelo que pude perceber até agora foram dois: carência e insegurança.
Franzo a testa. Eu não mencionei nada de ser insegura, não faz sentido. Aliás, eu nem me sinto assim.
Mas Frank me surpreende.
- Você saiu de uma relacionamento abusivo de anos Alex, tudo na sua postura denota insegurança. Até a maneira como você olha para as pessoas, e eu aposto que essa insegurança é externada na forma de vergonha também. Então pense em qualquer situação que você foi dominada pela vergonha e vai ver que por trás dela, tem insegurança.
Hum, o lance da garrafa de vinho. Eu só deixei lá, não quis entregar pessoalmente por vergonha.
- É, você tem razão. Frank... eu quero fazer uma última pergunta sobre a minha história com Martín, depois disso, eu não quero mais mencionar ele.
- Como você quiser.
Respiro fundo, não sei se vou gostar da resposta, mas preciso e quero saber.
- Eu já entendi que o que atraiu ele em mim foi o fato do sinais de alerta dele acenderem quanto ao lance da proteção, mas você acha que nós dois teríamos dado certo se tivesse acontecido diferente? Quer dizer, com o nosso histórico ferrado?
Frank olha uns instantes pra cima e depois foca os olhos de novo em mim.
- Bom Alex, duas pessoas traumatizadas podem sim se relacionar de maneira satisfatória, eu tenho casais aqui que tem os históricos mais absurdos e que se amam e se fazem bem com a ajuda da terapia. Mas já que você me perguntou, eu preciso ser sincero com você. Não seria impossível você e Martín terem uma relação saudável, o problema maior nessa situação séria o longo caminho que vocês dois teriam de percorrer para isso acontecer, porque o gatilho de vocês é o mesmo: o Will. Quando uma pessoa quer se livrar de uma vez de tudo o que a traumatizou, ela não pode ter nada de ligação com aquilo. Você e Martín se olhariam e lembrariam dele, ele literalmente seria a terceira pessoa no relacionamento.
Não tinha parado pra pensar nisso. Martín é tipo a minha versão masculina nessa merda toda.
Frank continua falando.
- Exigiria um esforço monumental para domar as consequências na psique de vocês dois, e permitir que as bases de uma relação sólida fossem construídas. E Alex, eu preciso te dizer, isso seria muito mais difícil pra você.
Pergunto a Frank por qual motivo ele acha isso.
- Olha Alex, nós não chegamos nesse ponto ainda, mas eu preciso ser honesto com você, e não tem jeito fácil de te dizer isso. É bem provável de que quando a perspectiva de um novo relacionamento surgir para você, a insegurança te domine mais do que a carência. Você e Martín tiveram uma manhã de sábado apenas, em um momento super agradável, mas um relacionamento sério e com intimidade é de um abismo imenso de separação disso. Você foi abusada de todas as formas possíveis que uma pessoa possar ser, e isso minha querida, infelizmente deixa marcas que vão ser gatilhadas. Situações vão se apresentar em uma vida sentimental e inevitavelmente você vai se lembrar de Montenegro, e isso pode vir em qualquer hora, não estou só falando sobre vida s*x*al, qualquer gesto que seu parceiro faça que Will fazia igual, pode te despertar coisas ruins.
Sinto uma pontada na nuca.
- Então eu nunca vou conseguir ser feliz em um relacionamento?
Ele se apressa em me responder.
- Não, é claro que você vai. Mas primeiro nós precisamos trabalhar tudo isso, você precisa abater a carência aí dentro pra não se deixar levar por qualquer um e derrubar a insegurança, porque ela aliada a bendita carência leva a pessoa a se sujeitar e aceitar as coisas mais absurdas. Em suma, Alex, nós vamos construir aqui nessas consultas o seu principal relacionamento: o com você mesma. Você vai se amar, se respeitar, se valorizar primeiro, para depois abrir essa possibilidade para outro alguém. Qualquer coisa fora disso é certeza de novo trauma.
Abaixo a cabeça por uns instantes absorvendo tudo o que ele me falou. Vai demorar muito pra eu conseguir sair de vez dessa coisa toda.
- Nosso tempo está acabando, Alex. Quero que você pense sobre o seu futuro, o tipo de mulher que quer ser, na próxima consulta nós vamos falar sobre isso e o que fazer pra você chegar lá.
Encerro a chama de vídeo com ele e me pego pensando no que ele pediu.
Eu não faço a mínima ideia do que vai acontecer daqui pra frente, a única coisa que eu sei é que quero ser uma mulher forte e independente. Não estou falando de grana, isso é óbvio que não é mais problema pra mim, estou falando do meu interior, das minhas necessidades pessoais. Não quero nunca mais ser a Alex que caiu naquela porcaria toda.
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Atualizado até capítulo 62
Comments
Renascida das cinzas
não foi leviana. Martin gostou realmente dela.
2024-08-08
0
Júlia Caires
onde consigo o telefone do dr Frank? kkkkkkk
2024-06-17
1
ARMINDA
NA CONSULTA SR DESCOBRIU MUITAS COISAS.
2024-05-04
1