Capítulo 14 – Sonhos e Garras
A chuva caía fina, como se o céu estivesse com medo de desabar por completo. O som suave das gotas batendo contra a vidraça preenchia o silêncio do quarto de Haru. Era madrugada, e a cidade dormia — ou fingia dormir, como ele fazia.
Haru estava deitado na cama, olhos abertos, fitando o teto. Já fazia horas desde que Kaori adormecera no quarto ao lado, e o jantar com Akira havia terminado, deixando um rastro de inquietação em sua mente. O líder da gangue fora embora por volta das dez, após lavar os pratos e trocar poucas palavras. Mas, mesmo ausente, parecia ter deixado parte de si ali.
Era um incômodo. Um peso no peito. Uma presença que não desaparecia.
Ele não conseguia tirar os olhos do caderno que repousava sobre a escrivaninha. Levantou-se devagar, sentando-se diante dele. As mãos passaram pelas folhas como se procurassem uma resposta antiga. Então pegou a caneta e escreveu sem pensar:
"O que significa sonhar com o toque de alguém que você teme?"
Haru suspirou e encostou a cabeça no braço, sobre a mesa. A mente cansada finalmente cedeu ao cansaço do corpo, e ele adormeceu ali mesmo, com o som da chuva embalando seu sono.
---
No sonho, ele estava num lugar alto. O céu era cinzento, como se estivesse prestes a ruir. Estava em pé no beiral de um prédio, olhando para a cidade embaçada abaixo. O vento soprava forte, balançando seus cabelos. O concreto sob seus pés parecia prestes a desmoronar.
Do outro lado do telhado, estava Akira.
Vestia o mesmo casaco escuro da noite anterior, o olhar firme, mas não ameaçador. Estendia a mão para Haru.
Atrás de Akira, o cenário era de destruição: fogo, fumaça, gritos distantes. Mas mesmo assim, ele parecia ser o único ponto estático naquele caos.
— Vem comigo. — sua voz era calma, como um sussurro que perfurava o vento.
Haru hesitou. Deu um passo à frente.
Mas então, uma figura emergiu das sombras.
Um homem encapuzado, com o olhar apagado e cruel. A tatuagem no pescoço — a cobra enrolada numa âncora — brilhava com uma luz doentia.
O assassino de seus pais.
O passado materializado.
Haru sentiu o corpo inteiro congelar. Os punhos se fecharam. Estava prestes a correr em direção ao inimigo, mas Akira segurou seu pulso.
— Você não precisa enfrentar isso sozinho.
Haru gritou, se debatendo. O sonho virou fumaça. A voz de Akira ecoava mesmo quando tudo à volta desaparecia.
---
Acordou com um sobressalto, o rosto colado ao caderno. O lençol ainda sobre as pernas, o céu lá fora começando a clarear. O sol nascente tingia a parede com um tom alaranjado pálido.
Passou as mãos pelo rosto, tentando esquecer. Mas não conseguia.
O pior não era ter sonhado com o assassino.
Era ter desejado, mesmo que por um instante, estender a mão de volta para Akira.
---
Naquela manhã, Haru caminhava em direção à fundação com a mochila nas costas e os pensamentos rodando sem trégua. A noite mal dormida havia deixado marcas embaixo dos olhos, mas ele ignorava o cansaço. Precisava manter a mente ocupada, e o trabalho com os voluntários era o único lugar onde conseguia respirar.
Ou era.
Dobrou a esquina da rua estreita e parou de súbito.
Akira estava lá.
Encostado no muro lateral da fundação, com o capuz abaixado, os braços cruzados e o olhar fixo no chão. Ao ver Haru, ergueu os olhos devagar. Não disse nada de imediato.
Haru parou a poucos metros dele, o corpo tenso.
— O que você tá fazendo aqui?
— Te esperando.
— Não devia.
— Mesmo assim, estou aqui.
Haru desviou o olhar, desconfortável com a sinceridade. Estava cansado de se sentir puxado entre o que sentia e o que lembrava. Mas algo nos olhos de Akira o segurava ali. Algo que não era ameaça. Era... espera.
— Eu tive um sonho — disse Akira.
Haru arregalou levemente os olhos.
— Sobre o quê?
— Você. E o passado. E eu tentando segurar sua mão antes de tudo desabar.
Haru não respondeu. O silêncio entre eles era espesso.
— Eu também sonhei. — confessou depois de alguns segundos.
Akira deu um passo à frente.
— Eu não quero ser só o cara que apareceu pra bagunçar sua vida, Haru. Eu quero ser o que segura sua mão quando você estiver prestes a cair.
— Você é um líder de gangue. E eu sou alguém que perdeu tudo... por culpa de caras como você.
Akira assentiu lentamente.
— Eu sei. Mas você também é alguém que sorriu ontem à noite, mesmo que não perceba. Alguém que me fez sentir que talvez... talvez ainda haja uma parte minha que valha a pena.
Haru abaixou a cabeça.
— Você me confunde.
— E você me faz querer ser alguém que não confunda.
Outro silêncio. Mais leve, dessa vez.
Kaori apareceu na porta da fundação, com o cabelo preso e uma lancheira na mão.
— Haru! Você esqueceu isso!
Os dois se viraram ao mesmo tempo. Kaori os encarou com a naturalidade que só as crianças têm diante do que ainda não entendem.
— Ah, oi, Akira. — disse ela com um sorriso — Você veio cuidar do meu irmão de novo?
Haru corou até as orelhas. Akira riu baixo.
— Talvez.
Kaori entregou a lancheira e entrou na fundação, sem dar importância ao clima estranho.
Akira olhou para Haru mais uma vez.
— Eu vou embora. Mas se quiser sonhar de novo... e tiver medo... me chama. Eu volto.
E ele se foi, deixando apenas o som da chuva leve e o coração de Haru batendo mais rápido do que devia.
---
Naquela noite, Haru escreveu em seu caderno:
“Os sonhos têm garras, mas as mãos dele não me ferem como eu temia. Talvez... eu esteja começando a querer que elas me toquem.”
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 42
Comments