Kaela voltou-se ao silêncio, permitindo que a paz recém-retomada a envolvesse como um cobertor morno. Saboreou pequenos pedaços de seu café da manhã, enquanto sua mente vagava entre pensamentos dispersos. Mas essa tranquilidade não durou. A porta rangeu novamente, um som baixo, mas insistente, como se o mundo conspirasse para não deixá-la só.
Seus olhos ergueram-se, e lá estava Nirai, parado à entrada, trazendo consigo uma presença que parecia carregar o peso de um novo capítulo naquele momento matinal.
— Bom dia... — começou Kaela, sua voz suave, mas hesitante, ao captar a expressão no rosto de Nirai: um mosaico inquietante de dúvida e surpresa, como se estivesse sendo assombrado por memórias que não conseguia alcançar.
— O que houve, Nirai? Por que essa expressão?
Ele balançou a cabeça, como se quisesse afastar os pensamentos que o prendiam.
— Ah, não é nada... Apenas devaneios. Esqueça isso — respondeu, caminhando lentamente até a cama e acomodando-se na beira dela. Seus olhos não encontraram os de Kaela; estavam presos ao chão, onde ele parecia buscar respostas que ainda não podia articular.
O silêncio entre eles era delicado, quase sagrado. Nirai permaneceu imóvel, como se o momento exigisse cuidado para não se desfazer. Kaela respirou fundo, quebrando aquele véu com um sussurro:
— Nirai... podemos conversar?
Ele ergueu os olhos lentamente, encontrando os dela. Havia algo ali que ele não conseguia decifrar, uma profundidade semelhante a um céu prestes a chover.
— Claro. Sobre o que gostaria de falar? — perguntou, a curiosidade misturada com uma leve hesitação em sua voz.
Kaela hesitou por um instante, procurando forças para mergulhar em palavras que carregavam um peso maior do que simples memórias.
— Sobre nós... e sobre um fragmento do seu passado.
O ar ao redor pareceu esfriar, e ela viu nos olhos de Nirai um brilho vacilante, oscilando entre a curiosidade e um medo quase imperceptível. Ele desviou o olhar, como se as palavras dela tivessem despertado ecos de um lugar esquecido em sua mente.
— Meu passado? Por que nunca mencionou isso antes, Kaela? Você sabia o quanto eu ansiava entender quem eu era naquele dia... — murmurou Nirai, sua voz embargada pelo peso das emoções.
Kaela pousou a mão sobre a dele com a suavidade de uma folha ao cair.
— Quando te encontrei... pensei que fosse apenas uma brincadeira do destino, algo passageiro. Mas agora vejo que era verdade. Você estava vazio, Nirai... vazio das suas próprias lembranças.
Seus olhos se fecharam por um instante, como se as palavras lhe trouxessem uma melancolia doce, mas pesada. Nirai apertou levemente sua mão, um gesto pequeno, mas que carregava a força de uma promessa não dita, um conforto que palavras não poderiam alcançar.
— Então, me conte, Kaela. Quem eu era antes de tudo isso? — sussurrou ele, a voz carregada de esperança e temor, como alguém que finalmente se aproximava de uma resposta há muito perdida.
E naquela troca de olhares, Kaela percebeu que o sorriso de Nirai era mais que um gesto; era um pacto silencioso, uma promessa de desvendar o enigma que os unia.
— Tudo bem, eu começo — murmurou Kaela, a hesitação escorrendo em sua voz, como um fio de memória que teimava em se soltar. — Há alguns anos, eu era apenas uma jovem em uma vila esquecida. Nunca quis me destacar, odiava ser o centro de qualquer olhar. — Seus olhos, agora distantes, vagavam pelo vazio, enquanto as sombras de um passado doloroso emergiam como espectros ao cair do crepúsculo. — Então, três dias depois, o ataque chegou. Implacável, cruel. Eu tentei proteger o que amava, mas o peso era maior que minhas forças. Eu era apenas uma aprendiz, incapaz de controlar a luz branca... incapaz de salvar quem eu deveria proteger. —
Sua voz tremeu e se quebrou, engolida por uma torrente de emoções. As lágrimas desceram, silenciosas, como chuva fina lavando uma terra devastada. Nirai, ao seu lado, hesitou antes de erguer a mão, oferecendo um gesto de conforto, mas Kaela sacudiu a cabeça.
— Não. Eu preciso continuar — disse ela, a determinação reluzindo sob a fragilidade de sua voz. — Meu poder, descontrolado, tornou-se o algoz da minha vila. Foi minha culpa. Os escombros, o sangue... eu fiquei sozinha, como um fantasma entre as ruínas. —
As palavras pesaram no ar, cada sílaba um lamento, uma melodia amarga tocada em cordas quebradas. Nirai apertou suas mãos com delicadeza, tentando segurá-la no presente.
— Então você apareceu — continuou Kaela, a voz frágil como um fio de vento. — Não como um salvador, mas como um saqueador. Você me ignorou enquanto vasculhava o que restava, mas não havia nada... nada além de mim. Você não teve escolha senão me levar. Por isso, sou grata, ainda que você não entenda o porquê. —
E, ao dizer isso, Kaela se rendeu ao peso de sua dor e se lançou nos braços de Nirai. Ele a acolheu em silêncio, sua mão deslizando pelos cabelos dela, enquanto as lágrimas de Kaela tingiam sua camisa com o sal de sua história.
Nirai fechou os olhos, perdido em seus próprios abismos. "Eu a ignorei? Esse saqueador... era eu? Ou apenas a sombra distorcida do que fui?"
— Nirai, preciso te contar algo — disse Kaela de repente, sua voz hesitante o arrancando de seus pensamentos. Ele abriu os olhos, encarando-a com uma pergunta silenciosa.
— Sobre Satella... — começou ela, enquanto uma tensão velada marcava seu semblante. — Não confio nela. Ontem à noite, tivemos uma conversa que me deixou inquieta.
Nirai franziu o cenho, sua expressão endurecendo com uma sombra de preocupação.
— Satella? Espere... Você esteve acordada durante a noite? — perguntou ele, seus olhos fixos nos dela, procurando respostas.
Kaela afastou-se levemente do abraço, mas a força em sua voz não vacilou. Acenou com a cabeça, ignorando o questionamento de Nirai e avançando em sua narrativa.
— Precisamos ser cautelosos com ela, Nirai — murmurou, sua voz carregada de uma frieza vulnerável, como se cada palavra fosse um fio frágil de verdade. — Ela me lembra uma caçadora, observando sua presa. Cada gesto, cada palavra... sinto que ela brinca com as situações, esperando o momento certo para agir.
O silêncio que seguiu parecia quase tangível. Os olhos de Nirai encontraram os de Kaela, onde o medo cintilava, profundo e indomado. Ele permaneceu imóvel, mas sentia as palavras dela como um peso esmagador no ar ao redor.
Porém, o que eles não sabiam era que o mundo ao seu redor não estava vazio. Atrás da porta entreaberta, Satella repousava como uma sombra indetectável, seus olhos atentos captando cada sílaba. Havia um brilho enigmático em seu olhar, um sorriso quase imperceptível curvando seus lábios enquanto ouvia. Era o sorriso de quem sabe muito mais do que deveria.
Mais tarde, sob a luz dourada do entardecer que entrava pela janela, Nirai atravessou a sala com passos hesitantes, o chão de madeira rangendo suavemente sob seus pés. Sentada no sofá, Satella parecia alheia, mergulhada nas páginas de um livro cujas palavras pareciam sussurrar apenas a ela.
Nirai hesitou, suas dúvidas ecoando como um grito em seu silêncio. Finalmente, sentou-se à distância, no mesmo sofá. A presença de Satella era serena, mas inquietante, como o calor de uma chama que tanto atrai quanto alerta.
Com um movimento quase casual, Satella ergueu os olhos por sobre o canto da página, encontrando os de Nirai com uma expressão serena. Fechou o livro com uma elegância deliberada, colocando-o sobre a mesa ao lado.
— E então, como tem se sentido em minha casa ultimamente? — disse ela, com uma voz tão suave quanto o sorriso que repousava delicadamente em seus lábios, como uma pétala ao vento.
Nirai desviou o olhar, como quem busca palavras no vento, efêmeras e esquivas. — Bem… você tem cuidado muito bem de nós — murmurou ele, um sorriso tímido desarmando a rigidez de seu rosto. As palavras soavam verdadeiras, mas sua mente viajava distante, para um instante fugaz no banheiro, onde uma mancha de sangue na banheira sussurrava perguntas que ele ainda não ousava formular.
— Agradeço imensamente por isso. É um alívio no coração — respondeu Satella, erguendo-se com uma delicadeza que parecia bordada em silêncio. — Mas precisarei me ausentar. Retornarei apenas à noite.
Sua voz, suave como uma despedida cantada, deixou um rastro na sala de Star, enquanto ela cruzava o ambiente. Nirai a observava, imóvel, como se o simples som da porta se fechando pudesse revelar segredos velados pelo tempo.
Quando a porta finalmente se calou, o silêncio que veio em seguida parecia respirar. Para Nirai, aquele instante carregava o peso de um chamado — o momento certo para desvendar o mistério que o prendia desde a alvorada. Diante dele, a barreira da porta trancada aguardava, tão cheia de segredos que parecia murmurar por entre suas frestas.
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Atualizado até capítulo 25
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