Entre Espelhos e Sombras
A chuva escorria pelos vidros da cafeteria, criando trilhas irregulares que distorciam o mundo lá fora. Daniel Andrade folheava o caderno de esboços, um ritual que há meses parecia guiado por algo que ele não compreendia. As páginas estavam cheias de rabiscos desconexos: rostos que pareciam implorar por algo, olhos assustados e mãos estendidas, como se pedissem ajuda. Ele desenhava essas imagens compulsivamente, mas nenhuma delas fazia sentido.
Na mesa à sua frente, xícaras vazias e papéis amassados se acumulavam, testemunhas de sua incapacidade de criar algo concreto. O relógio na parede marcava 21h47, mas ele não tinha ideia de quanto tempo estava ali.
O sino da porta soou, e o som inesperado o trouxe de volta à realidade. Daniel ergueu os olhos por reflexo e viu uma mulher entrar. Ela usava um sobretudo preto, encharcado pela chuva, e carregava uma bolsa pequena, pendurada em um dos ombros. Seus cabelos castanhos estavam presos em um coque que parecia ter sido feito às pressas, e seus passos, apesar de discretos, ecoaram no chão de madeira do estabelecimento quase vazio.
Daniel a observou apenas por um instante antes de voltar a encarar seu caderno. Mas algo sobre ela o deixou inquieto. Seus olhos foram atraídos de volta para a figura dela, como se um imã invisível o obrigasse a olhar novamente. Ela se aproximou do balcão, pediu um café e escolheu uma mesa no canto mais afastado da cafeteria.
Quando ela passou ao lado dele, Daniel sentiu um cheiro sutil, algo entre lavanda e chuva, um aroma que o fez sentir uma pontada de nostalgia inexplicável. Ele tentou afastar a sensação e se concentrou em seu caderno novamente.
Na página aberta, um desenho o aguardava. Ele piscou, confuso.
Era ela.
O rosto da mulher estava ali, desenhado com precisão assustadora, mas seus olhos eram vazios, buracos negros que pareciam sugar a luz ao redor. Daniel sentiu um frio percorrer sua espinha. Ele não se lembrava de tê-la desenhado.
Disfarçando, ele olhou novamente para a mulher. Ela estava sentada no canto, com as pernas cruzadas, tomando pequenos goles de café enquanto lia um livro com capa azul. Seu olhar, fixo nas páginas, parecia indiferente ao mundo ao redor.
Daniel voltou a encarar o desenho. O detalhe nos traços era inegável: desde o coque desalinhado até a leve curva dos lábios, tudo estava ali. Mas os olhos... aqueles olhos o perturbavam profundamente.
Ele sentiu o coração acelerar. A necessidade de respostas o consumiu.
Decidido, ele rasgou a página do caderno e se levantou, mas, quando olhou para o canto onde a mulher estava sentada, a mesa estava vazia.
Ela havia desaparecido.
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Daniel ficou imóvel, olhando para o lugar onde ela estivera. A cadeira ainda estava ligeiramente afastada da mesa, e a xícara de café deixara um anel de condensação na madeira. Mas ela não estava mais lá.
Sobre a mesa, no entanto, havia algo. Um livro.
O mesmo que ela segurava.
Com passos lentos, quase inseguros, ele se aproximou. O livro parecia antigo, com a capa azul desbotada e cantos desgastados. O título estava gravado em letras douradas quase ilegíveis: Os Sonhos Não Mentem.
Ele hesitou antes de tocá-lo, como se o objeto carregasse algum tipo de maldição. Mas a curiosidade foi mais forte. Ele estendeu a mão e abriu o livro.
As páginas estavam cheias de anotações escritas à mão, entrelaçadas com frases impressas que pareciam de um texto original. Algumas palavras estavam riscadas com força, enquanto outras haviam sido circuladas ou grifadas.
Daniel virou uma das páginas e encontrou algo que fez sua respiração parar.
"Você já se perguntou se suas memórias são mesmo suas?"
A pergunta parecia falar diretamente com ele. Ele fechou o livro abruptamente e olhou ao redor. O barista atrás do balcão mexia em seu celular, e um casal discutia baixinho em outra mesa. Nada parecia fora do normal.
Mas algo dentro dele havia mudado.
Daniel pegou o livro e voltou para sua mesa. Ele precisava entender o que estava acontecendo. Quando abriu o livro novamente, percebeu que havia algo escrito na contracapa:
"Ela está observando."
Instintivamente, ele olhou para a janela. E então viu.
No vidro embaçado pela chuva, o reflexo da mulher estava parado atrás dele, mesmo que, ao se virar, não houvesse ninguém ali.
O susto fez seu coração disparar. O que estava acontecendo? Ele esfregou os olhos, encarando o vidro novamente, mas o reflexo havia sumido.
Tentando recuperar o fôlego, Daniel recolheu suas coisas, incluindo o livro, e saiu apressado da cafeteria. A chuva fria o atingiu como uma bofetada, mas ele não se importou. Seu único pensamento era voltar para casa e tentar descobrir o que aquilo significava.
Mal sabia ele que essa seria apenas a primeira de muitas noites sem sono.
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Atualizado até capítulo 31
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