— Eu sei, Marisca, toda esta questão dos mortais e das terras ainda me deixa confusa. — Torien bebericou o vinho de maçã e fez uma leve careta — Estou bem disposta a comprar todos os vivos que sobraram, mas realmente não tem como seus filhos me entregarem os que morreram? Foram muitas pessoas. Se eles tivessem chegado antes, com certeza a vila de Chrowe não teria se transformado naquele desastre.
— Pela quinta vez, Torien... — suspirou minha mãe — Não é assim que funciona. Meus filhos não podem trazer cadáveres de volta a vida e nem ir ao “mundo do além” pegar a alma de ninguém. Lafesen fez um favor à Casa de Quez resgatando os sobreviventes, demos a eles trabalhamos adiantando sua eficácia, para devolvermos ao lugar que pertencem em troca de um valor.
— Eu sei, e eu já disse que vou comprar os que sobraram. O que estou tentando dizer é: se Lohan tem poderes com a vida, por que ele não os traz de volta? Anton é o Amante da Morte, não é? Por que ele não pede para ela me devolver eles?
Bufei, revirando os olhos desacreditado de que tanta burrice e lerdeza coubessem em uma pessoa.
— Que merda. — murmurou Anton.
— Concordo. — falou Kris com os lábios sutis em sua taça, tão delicada.
— Nossa, vocês são os piores anfitriões que eu já vi na vida. — falou o marido de Torien.
— Eu concordo plenamente. — acrescentou Corinta, encantada com ele.
Ouvi bem o murmúrio dos outros convidados, que foram mesmo devido à política de reuniões. A Elite de Lafesen possuía dezesseis cabeças, incluindo as crianças, enquanto a de Quez apenas a metade disso. Uma diferença notável que deixava bem claro o poder da minha Casa mediante a outra. Ainda que fosse necessário todos reunidos, eram os chefes quem falavam, o restante servia como testemunha dos acordos discutidos.
Minha mãe me lançou um olhar de súplica, exausta daquela discussão sobre tentar trazer os Mortais que morreram. Senti muita pena. Ela estava sobrecarregada demais e eu, em breve, seria o próximo cabeça de Lafesen.
— Torien, você tem pelo menos dois neurônios. — comecei — Eles com certeza fizeram sinapse o suficiente para você entender que não vai conseguir nada além dos sobreviventes. — a chefe de Quez não respondeu, bom sinal — São todos bem úteis. Pelo que sei, três costureiros, cinco agricultores, uma limpadora, três cozinheiros, dois artesãos, um ferreiro. O preço deles é baixo considerando o lixo que é sua Casa.
— Certo. — ela olhou para o vinho de maçã — Mas pense comigo...
— Se você falar disso mais uma vez, eu vou enfiar uma faca na sua garganta e arrancar suas cordas vocais. — ameaçou Anton, impaciente.
Nossa convidada de honra engoliu em seco.
— Tudo bem, eu me rendo. Me mostre logo os mortais para jantarmos e acabarmos logo com essa burocracia chata. — reclamou olhando para o cardápio servido. Tortilhas de frutas frescas, cebolas recheadas com queijos, purês de lula e uma grande leitão como prato principal. As crianças presentes já haviam comido algumas frutas, mas era clara a inquietude para experimentar mais coisas.
— Eu devo imaginar que todas essas ameaças sejam normais? — questionou seu marido. Era o mais recente, pelo que soube, com certeza era sua primeira reunião.
— Sim, estamos apenas fazendo uma pequena aliança entre nossas Casas. — tentei parecer otimista — Anime-se.
Minha mãe fez um sinal impaciente para Crescida, parada do outro lado da sala de jantar esperando para chamar os Mortais.
Eu não havia mentido para Torien, eles eram realmente úteis. Só que eles pertencem por direito a Quez, e se a Casa Média os quisesse de volta teria que pagar o preço que estipularmos. E claro que o preço teria que ser pago. Os Mortais são o equilíbrio das Casas. A celebração deles era convertida para magia no Reino Sazonal, sem isso, não teríamos espíritos mágicos para cuidar das Casas ou estações nos meses. E quanto mais Mortais habitarem em uma Casa, maior será ela.
Os mortais entraram uniformizados e bem compostos como foram ordenados. Se organizaram em uma fileira, um do lado do outro, com as costas retas e concentraram o olhar em Torien.
Menos uma vestida de cinza usando um avental branco.
Uma limpadora.
Seus olhos vagavam da mesa para o teto, do teto para Torien, de Torien para o chão. Eu podia sentir sua ansiedade a quilômetros de distância facilmente, era óbvio seu desconforto. Talvez fosse apenas o nervosismo de voltar para sua antiga Casa, quem sabe não se sentisse mais segura indo para lá.
Crescida contou-os, olhando para a prancheta e cada mortal. No final, arquejou pasma:
— Falta uma.
— Como é? — questionou Torien, elevando a voz interessada — Não vou pagar se não houver quinze mortais. Vocês prometeram quinze.
— Quem falta? — questionou minha mãe.
— É a Rice. — respondeu o velho responsável pelo vinho de maçã, um bom vinho, aliás — Acho que ela foi ao banheiro.
— Sim, é apenas isso. — Crescida sorriu nervosa — Não se preocupem, ainda são quinze mortais.
— Quero vê-la.
— Quando ela voltar você irá vê-la.
— Eu sei Marisca, só que pelo preço que vocês estão impondo preciso avaliar o produto.
— Pode avaliar os que já estão aqui. — sugeri, sendo óbvio.
— Quero começar pela que falta. — exigiu o idiota — Atraso de produto me garante redução do preço.
— Seu rabo. — interveio Anton.
— Calma, meu amor, não gaste suas energias com esta paspalha.
— Chamou minha esposa de paspalha, sua Lady de quinta?
— Por favor, vamos colaborar com isso. — lamentou minha mãe — Torien, avalie logo os que estão aqui.
— Não quero.
Minha mãe fitou-a, a coisa ficaria ótima. Fazia meses que ela se encontrava em um estado lamentável de instabilidade por causa do meu pai e se precisasse ela os usaria em Torien sem pestanejar.
— Não me faça usar magia em você.
— Eu também tenho magia, Marisca.
Um silêncio permaneceu na mesa, enquanto se desafiavam.
Não quis me intrometer, algo me dizia que a mortal que faltava não estava no banheiro.
Olhei outra vez para a limpadora, Mare, se me lembro bem. Ela me implorou para ir atrás de sua irmã quando a encontramos perdida na floresta, no dia do resgate em Chrowe. Seus olhos naquele dia estavam nublados, chorosos de preocupação e a julgar a inquietude que estão agora, ela sabia muito bem o que houve.
Seu olhar azul encontrou o meu, desviou rápido demais. A pessoa que faltava era a irmã dela.
— A ‘chafariz de vômito’ é quem não está aqui. — falei baixo com Anton.
— O que?
— A garota que vomitou em você.
Suas sobrancelhas se ergueram em compreensão, olhando para os Mortais se certificando dela não estar mesmo ali.
— A irmã dela está estranha.
— Sim, não tenho uma sensação boa quanto a isso. Tenho certeza que ela não está no banheiro.
— Onde ela poderia estar, então?
Em uma reunião de acordos com Elites é inevitável que tudo ocorra bem. A julgar pela conversa entre minha mãe e Torien, eu esperava uma cabeça explodindo ou uma faca voando e acertando o olho de alguém. Talvez uma guerra agressiva com as taças. Qualquer coisa.
Mas não o que aconteceu.
De repente, tão de repente, uma garota caiu na mesa de jantar, em cima do leitão e quebrando garrafas.
Primeiro, o susto de todos, seguido do silêncio de três segundos para digerir o choque e entender a situação. Depois, os gritos e até risadas, ante a cena terrível. Nossas famílias começaram a se levantar para vê-la melhor.
Ela estava estranhamente jogada em cima do leitão, a cabeça pendida na do porco, os olhos revirados exibindo as órbitas brancas, a boca aberta e grunhindo de dor. Seu vestido era marrom, uma cozinheira de Lafesen. E também usava o manto do meu irmão. Toda pele visível estava coberta de sangue, porém, não um sangue vermelho comum, mas escuro, da cor do mais refinado vinho de uva.
O sangue de uma Fera.
— Acho que a encontramos.
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Atualizado até capítulo 59
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