Na Grande Casa de Lafesen (Rice)

Eu não sabia o que era mais estranho.

    O fato de tantas pessoas caberem dentro de um manto escuro, ou o fato de em apenas segundos fomos parar em Lafesen.

    Durante os segundos em que fiquei dentro do manto, não soltei a mão de Mare, mas do mesmo jeito eu não a senti. Só fui sentir outra vez a presença de minha irmã quando fui expelida para fora. Os outros foram saindo com naturalidade, o manto não era apenas uma coisa de viagem, parecia mais um portal.

    Assim que me estabeleci melhor, olhei em volta, notando que estávamos em um grande salão de luzes amenas. As paredes eram altas, com a pintura de uma floresta por todo o seu cumprimento em um lado, e um grande mapa pintado do outro, marcado com várias cruzes roxas, indicando as Grandes Casas. Se não fosse o murmúrio das pessoas que acabaram de chegar, o salão estaria silencioso. Os gêmeos foram ajudando as pessoas mais debilitadas, enquanto outras vestidas de cinza chegavam correndo para auxiliar nos cuidados. Talvez um Lar de Recuperação da Saúde, como existia em Chrowe?

    — Olá, prazer. Eu sou Crescida. — disse uma mulher se aproximando sorrateira, segurando um pedaço de madeira e uma caneta. Sua aparência era... diferente. Ela era baixinha, com a pele um pouco amarelada, os olhos pareciam estrelas brilhantes e... Ou eu estava tonta, ou ela era um tanto transparente. Estiquei a mão para tocá-la, ela recuou incomodada — Por que vocês sempre fazem isto? Eu sou sólida.

    — Desculpe.

    — Tudo bem. — murmurou ajeitando os óculos — Bem-vindos a Grande Casa de Lafesen...

    — Grande Casa!?— questionou Mare — Estamos tipo, dentro de uma Grande Casa?

    — Sim. — ela assentiu levemente — Vocês pensaram o que? Que Lafesen ficava em uma vila? — e riu. Eu e Mare nos entreolhamos, era exatamente o que tínhamos pensado. Para nós, as Grandes Casas eram tão distantes que se tornavam quase inalcançáveis. O nosso pensamento mais coerente era estar perto de uma, não dentro — Pois bem, eu preciso dos seus nomes e saber de suas experiências. Você... — apontou para Mare com a caneta — Seu nome e uma habilidade.

    — Marelen Christine Fhlourre, eu... Sou habilidosa na degustação de bebidas alcoólicas.

    O olhar que Crescida lançou a Mare fora de clara reprovação, tive que morder a língua para não rir.

    — Certo, vou colocá-la na lista de limpadoras da Casa. E você?

    — Rice Cecyla Fhlourre, sei cozinhar muito bem.

    O som de aprovação foi bom.

    — Vou repassar a lista para os administradores da Casa e aguardar uma resposta dos gêmeos. As salas de recuperação estão cheias, e como não parecem possuir ferimentos graves, serão encaminhadas direto para os quartos de dormir. Poderão começar a trabalhar o quanto antes. — se virou para ir para o outro lado.

    — Ei, espere. É só isto? Não vai nos dizer o que fazer, ou como este lugar funciona? — questionei. Seu cenho transparente se fundiu.

    — Acho que deixei bem claro tudo isto.

    — Vamos nos encontrar com o chefe da Grande Casa? — perguntou Mare.

    — Vocês são burras? Moravam aonde? Em um buraco de minhoca debaixo da terra?

    — Quase isso. — esclareceu Mare.

    — Aqueles dois pedaços de filé ali... — apontou para Lohan e Anton, que agora estavam distraídos ouvindo um homem baixo e transparente — São filhos do cabeça da Grande Casa. Eles estão sempre andando para lá e pra cá, é o mais perto que vão chegar de se encontrar com o chefe. Mais alguma pergunta?

    — Por que você é transparente? — perguntei com calma.

    — Primeiro, eu não sou transparente, seus olhos mortais que não são acostumados. Segundo, as Casas são carregadas de poder, o que possibilita a passagem e interação com o reino dos espíritos sazonais. Obviamente, os Lordes não virão para cá sem um bom motivo, mas nós que somos menores fazemos com gosto e ajudamos a manter a ordem servindo os que são daqui.

    — Acho que não entendi bem. — falou Mare.

    — Nem eu.

    — Céus, vocês são burras mesmo. — senti minhas bochechas ficarem muito vermelhas — Em outras palavras, as “pessoas transparentes” que estão aqui são espíritos mágicos, servindo os Imortais das Casas. E ao contrário do que muitos imaginam, somos bem sólidos...

    Parei de ouvir o restante das falas de Crescida, focando apenas no fato dela ser um espírito mágico. Meu sangue ferveu. Uma porcaria de um espírito mágico, que estava anotando coisas em uma pedaço de madeira, ao invés de protegendo as vilas.

    Toda minha dor se tornou raiva em um só momento.

    — É muito bom saber que você é sólida, Crescida. — falei.

    — Sim, eu sei. — sorriu orgulhosa — Mas por quê?

    Cerrei os punhos.

    Minha resposta foi pegar aquele pedaço inútil de madeira e quebrar na cabeça de Crescida. Ela caiu no chão, confusa, e um momento depois ficou invisível.

    A sensação de vitória foi boa.

    Um segundo depois, porém, senti um aperto no meu pescoço, tão forte que impedia o ar de circular normalmente pela minha garganta. Tentei recuar, esfregar a minha garganta, mas quando tocava em minha pele, parecia não haver nada ali.

    Mare deu um grito. Dois. Começou a berrar meu nome, me segurando pelos ombros e sacudindo.

    — Pare, Crescida. — disse uma voz pouco conhecida, qual dos gêmeos falou, eu não tinha ideia. Só consegui pensar com alívio quando o ar passou com esforço pelo meu nariz e boca.

    — Só estou seguindo o regulamento, Sr. Anton. — falou a maldita, reaparecendo — Ela quem me atacou primeiro.

    — Eu cuido a partir daqui, sim?

    Ela assentiu, me lançando um olhar feio antes de sair.

    — Me desculpe pelo comportamento da minha irmã. — Marelen tentou explicar, pressionando minha cabeça contra o seu peito — Ela não é assim, só está abalada pelo que aconteceu com a nossa vila. Juro que nunca mais vai acontecer outra vez.

    — Assim espero. Espíritos mágicos como Crescida não perdem uma oportunidade de humilhar os Mortais. Evitem qualquer confronto com eles.

    — Sim, senhor.

    — Não.

    — Cala a boca, Rice.

    — Não. — me afastei, infelizmente chorando — Durante anos, muitos anos, minha vila celebrou a estes malditos. E de uma hora para outra, nossa vila foi queimada e saqueada. Eles não fizeram absolutamente nada. Os saqueadores assassinaram muitas pessoas...

    — Trezentas e vinte e três pessoas. — falou calmo.

    — Como você...?

    — Preciso que me contem sobre estes saqueadores. A vila de vocês não foi a única a passar por isto.

    Mare deu um passo à frente.

    — Eles cercaram a nossa vila, e depois atacaram. Queriam levar as mulheres. Mamãe nos disse que eles fazem isto a mando de alguém, que acha o lugar inútil.

    — Podem haver pessoas que não estavam na vila no momento do ataque, vocês precisam achá-las. — completei quase aos soluços.

    — Vamos voltar pela manhã para procurar alguns rastros. — respondeu, tão absurdamente calmo que me irritou. Na luz amena, seu rosto parecia demonstrar tanta indiferença com o nosso sofrimento que me deu náuseas.

    Voltei minha cabeça ao peito de Mare.

    — Vocês pretendem capturar os saqueadores? — perguntou ela.

    — Queremos a pessoa que está dando as ordens à eles. — ficou um pouco em silêncio — Acredito que Crescida já tenha dado à vocês as devidas instruções.

    — Sim, senhor. Eu sou a limpadora e minha irmã a cozinheira.

    — Mare... — murmurei — Não estou bem. — minha cabeça girava de tanto cansaço, e a náusea que não passava nem por um instante contribuía para a piora do meu estado.

    — Ninguém está, Rice. Bom, se me der licença, Sr. Anton, preciso leva...

    Vomitei em Mare.

    Ela recuou um pouco, dividida entre se afastar e me amparar.

    Logo, senti mãos maiores e firmes no meu braço me sustentando. Afastei sem pensar, me virando para Anton. Tão passivo. Vomitei nele também.

    — É melhor mesmo levá-la para o qaurto. — falou para Mare, enquanto um monte de pessoas pequenas e transparentes chegavam perto de mim, querendo me ajudar. Inúteis.

    Ajudar logo agora?

    Forcei o vômito em cima dos espíritos mágicos o quanto pude, até sentir meus órgãos internos doerem.

    Praticamente fui arrastada para um dos quartos.

    Apenas relaxei quando as coisas ao meu redor começaram a girar e vi a sombra de uma cama. Uma cama que parecia confortável demais para ser ignorada e muito boa para desmaiar nela.

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