A Vila de Chrowe (Rice)

Longas e malditas horas em cima daquela árvore me deixaram quase ao ponto de desmaiar ao descer.

    A lua brilhava, as estrelas iluminavam com fervor a noite em um céu quase sem nuvens. Em outros tempos eu teria gargalhado, e talvez parabenizado os inúteis espíritos pela beleza daquele céu, mas agora nem em sonhos ou pesadelos.

    No primeiro passo, senti todo o meu corpo tremer. No segundo, a tremedeira piorou e me apoiei na árvore. Se eu desse o terceiro, cairia.

    Coloquei a mão no meu ventre. Esperava mesmo não estar grávida. Eu não podia estar. Não quando eu não tinha mais qualquer condição de cuidar de uma criança. Sequer tinha forças para andar.

    Respirei fundo, tomando coragem.

    Eu tinha que voltar para Chrowe.

    Durante vinte anos se aprende muito sobre sobrevivência, habitando uma vila pobre então, esta palavra tinha que ser quase um sobrenome para nós.

    “Já passei por coisa pior”, menti para mim mesma enquanto dava passos trôpegos em direção ao local da matança.

    Pelo tempo em que fiquei na árvore, pude ouvir os sons ao longe e mais gritos. Depois foi o insuportável silencio de suposta paz. Meus únicos pensamentos coerentes estavam voltados para Iscos. Ele havia viajado uma hora antes do desastre, devia estar longe o suficiente para não ter tido o azar de se encontrar com os saqueadores. De acordo com o planejamento dele, seria um mês de viagem.

    Perfeito.

     Eu teria apenas que sobreviver um mês em uma vila destruída, esperando meu noivo voltar, me resgatar e transformar o terror da minha vida em algo menos pior.

    Apenas um mês morrendo lentamente.

    Continuei me arrastando por um bom tempo. A noite foi ficando mais gelada com os ventos leves chacoalhando a copa das árvores a todo o momento. Comecei a sentir frio também. Medo foi o que não me permiti sentir.

    Um cheiro de cinzas foi invadindo o ar, indicando que eu estava perto de uma vila queimada. Ao longe, não se via lamparinas acesas, pessoas andando de um lado para outro, crianças correndo. Apenas o escuro e o silêncio. Ver que Chrowe estava perto me deu forças o suficiente para correr, tropeçar em uma raiz de uma planta e finalmente cair.

    Mas eu havia chegado na minha vila. Ou o que ela devia ser.

    As casas estavam queimadas, muitos corpos estavam caídos em poças de sangue escuro. Andei vagarosa por entre eles, reconhecendo alguns rostos. Muitos já tinham ovos de insetos e mosquitos entrando e saindo da boca. O cheiro meu deu náusea, não era um cheiro de alta decomposição mas ainda era o cheiro de cadáver.

    O que me deu um mínimo de alívio foi ver o corpo de alguns saqueadores jogados por perto. Mataram e também morreram.

    Fiquei tentada em ir para a minha casa, ver o que restara do corpo de mamãe e tia Mer. Elas não estavam vivas, era óbvio que não. Ainda assim, vê-las seria como um último adeus.

    Antes que eu ousasse cogitar melhor a ideia, uma rajada de vento passou por mim.

    Bufei.

    — Estão felizes espíritos mágicos inúteis? Estão achando graça? — falei ao vento — Estas pessoas fizeram festas em cada estação de sua existência para agradá-los e só esperavam uma vida próspera! É isto que recebem em troca? Morte!? — berrei — Eles fizeram tudo certo. — murmurei chateada. Uma nova rajada passou por mim, zombando da minha tristeza aparentemente — Eu sei que sou uma inútil, não posso vê-los e duvido que realmente existam... Mas se forem reais, eu os amaldiçoo com todo o meu coração.

    Fiquei parada por alguns minutos, esperando uma resposta do vento.

    Mas absolutamente nada.

    Sorri um pouco vitoriosa, não existem afinal de contas.

     — Rice. — uma voz chamou atrás de mim, uma voz grave, calma. Senti minha pressão baixar no mesmo instante, meu corpo ficando mole. De modo involuntário, um líquido quente escorreu pelas minhas pernas. Eu já estava querendo fazer xixi, o que quer que tivesse me chamado foi o gatilho para soltar a bexiga — Rice? — outra vez, como que para ter certeza.

    Cerrei os punhos, me virando devagar e constrangida.

    No fundo, eu esperava que a voz tivesse saído de lugar nenhum. Eu não sabia como eram os espíritos mágicos da floresta, mas diziam as cantigas que os Mortais não podiam vê-los. Infelizmente, meu coração quase sai pela boca quando vejo que sim, a voz saiu de alguém, um homem. Era muito alto, com o corpo escondido por um manto escuro, mal conseguia ver o seu rosto coberto pelo capuz.

    Recuei um passo.

    — Vo-você é um espírito?

    — Você é a Rice, certo?

    Não respondi, apenas me virei para fugir. Antes que desse três passos, ele me envolveu com aquele manto e tudo ficou estranhamente mais escuro, como se eu fosse jogada para dentro de uma caixa dura e vazia. Tentei não mexer o corpo enquanto tudo à minha volta estava parado, ao menos era o que parecia.

    “Parabéns, Rice. Desafiar espíritos mágicos, sério?”

    Repassei rapidamente em minha mente todas as canções possíveis que falavam de como eram os espíritos. Pelas cantigas, eram separados por poder e habitavam um reino oculto aos olhos incrédulos. Todas as festas eram para mostrar que não estavam esquecidos, fazendo com que nossa música e comemoração fosse uma forma de alimentar sua magia. Músicas tolas que só os engrandeciam, afinal, nenhuma delas explicava o que tinha que ser feito caso fosse sequestrado por um!

***Esta obra está sob contrato com a NovelToon, e a pirataria, como a reimpressão sem permissão, é estritamente proibida.***

***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***