Atrás da porta estaria Lady Kris, alguém horrível que odiava Mortais e possivelmente arrancaria minha mão em algum momento por nenhum motivo aparente.
Respirei fundo três vezes antes de bater.
— Pode entrar. — disse uma voz masculina.
Empurrei a porta e parei no segundo passo, boquiaberta com o que eu estava vendo.
Por todos os lados e por muitos metros acima haviam inúmeros cadernos. Tantos. De todas as cores, tamanhos. Escadas se estendiam pelas laterais do cômodo, conectando os andares. Mesas de madeira escura estavam espalhadas por aquele enorme salão, e o ar tinha um cheiro delicado de café e erva doce. Um lustre, tão grande e brilhante, iluminava todo o espaço o deixando mais... mágico. Parecia coisa de outro mundo.
— Este é o Salão de Cadernos mais enorme que já vi. — murmurei. Então olhei para o homem sentado em uma das mesas, me lançando um olhar curioso e divertido.
— A biblioteca? — perguntou, franzindo o cenho. Me aproximei vagarosa com o carrinho, o som ecoando pelo piso de mármore.
— É assim que chamam aqui? — uma de suas sobrancelhas se ergueu. Eu não tinha a mínima ideia de qual dos gêmeos estava falando comigo, havia até mesmo a chance de ser mais uma ilusão daquele lugar. Porém, sua risada baixa ecoou pelos meus ouvidos. Quente e doce. Isso me causou estranhos arrepios, me dando a certeza que era bem real. Fiz uma reverência.
— Você é a garota que vomitou no meu irmão, não é? — seu sorriso se tornou maior, já estava virando zombaria — Achei muito divertido, não é todo dia que alguém vomita em Anton. — coçou a garganta. Ao menos sabia que aquele era o Lohan, o gêmeo da vida — Então... Na sua vila tinha uma biblioteca?
— Não, apenas alguns cadernos que o nosso prefeito usava como apoio para dormir.
— Cadernos, você diz, os livros? — assenti.
— Pela quantidade que tem aqui, acredito que muitas pessoas vêm para cá tirar um cochilo.
Seu cenho se franziu tanto que suas sobrancelhas quase se tocaram.
— Eu vou ignorar o que disse e vou fingir que não ouvi que um homem de autoridade usava livros como travesseiro ao invés de lê-los.
— Lê-los?
— Sim. — pegou um da mesa que estava e o abriu. Ele era amarelado por dentro, repleto de riscos e gravuras de flores. Fiz uma careta.
— Parece bem sem graça.
— Pois é uma das melhores coisas que já tive a chance de experimentar.
— O que tem de tão bom em páginas e mais páginas de rabiscos?
— Tudo. — seus olhos reluziam — Exatamente tudo o que imaginar. — riu animado — Me diga, já leu algum dos livros do seu antigo prefeito?
Suspirei.
Aquilo não estava certo.
Primeiro, porque eu nunca tinha sequer tocado em um dos cadernos do prefeito de Chrowe, meus assuntos com ele eram rápidos e terminavam antes que eu pudesse citar o nome completo de todas as pessoas que moravam comigo. Segundo, porque Chrowe não lia, Chrowe cantava. Todas as histórias, tradições, festividades, eram recitadas belamente por todos os tipos de timbres em diversas ocasiões. Terceiro, e mais importante, porque eu não estava mais em Chrowe. Pela expressão de desgosto de Lohan ao descobrir que o prefeito não lia, eu iria me sentir ainda mais estúpida neste lugar se ele soubesse que eu nem sei ler.
— Eu cantava histórias. — respondi simplesmente — Todos cantavam. — forcei uma tosse, antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa — Sr. Lohan, vim trazer as bara... mêndoas com mel de Lady Kris. Onde ela está?
Ele revirou os olhos.
— Eu entendo que sou velho, mas senhor? Me faz sentir quase uma múmia.
— Eu não...
— Sim, eu sei. Apenas me chame de Lohan. Kris está revirando os cadáveres de Chrowe junto com Anton.
— Por que? — questionei, me lembrando do carrinho com suas xícaras e biscoitos. Peguei uma xícara e o servi. O cheiro do chá era maravilhoso, como o cheiro da biblioteca. Minha boca encheu de água para experimentar um pouco, mas me contive.
— Isso não é assunto para uma serviçal, mas considerando que foi sua vila destruída, eles estão em busca de possíveis ligações. — Lohan tomou um pequeno gole do chá — Os saqueadores que queimaram Chrowe eram Feras de Gran-CaL. Tenho certeza que nunca ouviu deles e é compreensível. São mercenários famintos por magia. Parecem Mortais, agem como Mortais, quando na realidade são cães sarnentos. Em todas as regiões que houve um ataque deles, eram lugares que quase não tinham poder algum, na verdade não tinham nada interessante.
— Mamãe disse que são contratados por alguém que acha o lugar inútil.
— Porquê alguém iria se importar com um lugar inútil? Seria mais fácil ignorá-lo, não acha?
Encolhi os ombros.
— Talvez, destruindo o lugar, possam transformá-lo em algo maior e melhor.
— Não é assim que funciona com as Casas. — ele me encarou por demorados segundos, olhando daquele jeito estupido quando usa magia.
— O que vocês têm em mente? — murmurei.
— Pensávamos que as Feras pretendiam tomar as Casas. Por que não? São fontes ricas de poder. Destruindo os mais fracos conseguem ir atingindo os mais fortes. — fitou a xícara, pensativo — Porém, quem os contratou, pagou com magia. A pessoa tem que ter magia. Eu não consigo imaginar quem seria burro o suficiente de dar isto para as Feras em troca de espaço.
— Talvez ganância?
— Suicídio, eu diria. — estendeu a xícara para que eu servisse mais chá — Quase tudo se sustenta com poder, se ele diminuir o restante enfraquece. Quem estiver dando magia para aquelas sanguessugas tem que ter um motivo maravilhoso.
Pela luz da biblioteca, os fios de Lohan pareciam mais louros que castanhos e seus olhos, mais reluzentes do que me lembrava. Definitivamente havia vida nele. Um calor natural que emanava de seu corpo também visível em sua personalidade.
— Eu também não tenho ideia de quem faria algo tão terrível. — suspirei — E não sei por que levaram as mulheres.
Ele deu de ombros.
— Com certeza pegaram para colocar sementes imundas nos ventres daquelas coitadas. — dei um passo, recuando assustada. Só de imaginar o que podia acontecer com elas, uma boa parte da qual eu conhecia... Lohan percebeu meu incômodo — Você e sua irmã estão bem aconchegadas? — a mudança repentina de assunto me pegou desprevenida.
— Er, sim... Estamos muito bem.
— Isso me deixa satisfeito. — sorriu — Sua irmã parecia ao ponto de ter um ataque quando você desmaiou. Eu nunca vi uma Mortal soltar tantos impropérios, jurava que ela cuspiria em um dos espíritos.
— Ela tem uma personalidade forte.
— Em breve decidiremos o que fazer com vocês.
Abri a boca, mas as palavras abandonaram meu raciocínio quando uma voz feminina soou de repente.
— Minhas amêndoas! — pulei de susto. Era Lady Kris, claro. Abaixei a cabeça de uma vez, fazendo uma reverência desajeitada, entrelaçando minhas mãos atrás das costas, as deixando bem longe da boca daquela mulher — Então foi você quem vomitou nos espíritos?
— Sim, senhora. Não foi proposital. — menti.
— Deve ter sido um desastre maravilhoso. — sorri confusa. Ergui a cabeça e fitei Lady Kris. Era apenas uma jovem mulher. Sem dentes afiados, sem garras, nem olhos monstruosos. Parecia estranhamente normal. Os cabelos desciam em ondas escuras e fartas por seus ombros, os olhos tão acinzentados que podia jurar estar olhando para um dia nublado dentro da íris — Eu sei, querida. Não sou tão assustadora quanto pensou. E não, não odeio Mortais. Odeio os seus companheiros de cozinha, é diferente.
— Descobriram algo útil? — perguntou Lohan se recostando em uma das poltronas.
— Nada que não soubéssemos. — respondeu Anton surgindo atrás de Kris, olhando para mim com curiosidade. Abaixei a cabeça envergonhada. A última vez que o vi ele estava coberto com meu vômito — Os corpos estavam em decomposição, mas nada que os ligasse às Feras.
— Conversei com Torien sobre a situação e ele virá para jantar conosco daqui três dias. Se ele teve alguma parte de sua Casa atacada deve se interessar no preço dos Mortais sobreviventes. — continuou Anton. Sem olhar para seu rosto, servi o chá. Ele foi paciente enquanto eu virava o bule, porém, meus olhos se desviaram da xícara para o seu manto. Um manto capaz de ir para qualquer lugar em questão de segundos. Um manto que podia me levar para Iscos — Ei! — ele chamou minha atenção e vi que por um triz não entorno todo o chá.
— Desculpe, eu me distraí. — tentei sorrir, finalmente olhando em seus olhos. Suspeitei que fisicamente nunca o diferiria de Lohan, mas aqueles olhos emanavam algo frio, capaz de lançar um arrepio pela minha coluna.
— Pois bem, Lohan, um jantar com Torien significa reunir a elite de Lafesen. — Lady Kris disse.
— Reunir o caos em Lafesen. — ele murmurou.
— Que seja... — abocanhou mais um bocado de baratas — Nós teremos... — a Lady me fitou por demorados segundos — Já está dispensada, querida.
— Claro. — forcei um arrependimento — Sabe, Chrowe foi minha vila desde que me lembro por gente, eu gostaria de ser informada quando descobrirem algo novo sobre o que houve com ela.
— Você será informada. — prometeu Anton.
Assenti sem olhar para ele.
— Precisam de mais alguma coisa?
— Está tudo ótimo. — respondeu a Lady com a boca cheia.
— Não. — disse Anton.
— Avise aos cozinheiros que Torien virá jantar daqui três dias. — acrescentou Lohan.
Os três falaram ao mesmo tempo, porém, acredito que ouvi muito bem.
Fiz uma leve reverência, puxando o carrinho, saindo outra vez para o corredor.
Minha cabeça doeu com as informações, tanto sobre as Feras que atacaram Chrowe, quanto o jantar. Meu único desejo era correr até Mare e contar tudo. Mas eu não sabia onde estava.
Olhei para a vela.
Era apenas dar uma ordem para saber seu paradeiro, mas segui para a cozinha.
Não quis correr o risco de trombar com nenhum espírito mágico e acabar com uma cicatriz como a de Genevive.
Suspirei.
Era manhã ainda.
Pois bem, seria um dia longo.
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Atualizado até capítulo 59
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