A Pessoa Desejada (Rice)

Das duas únicas vezes em que entrei no manto mágico, a sensação era de absolutamente nada. Um vazio. Nada para pegar, nada para ver, nada para notar. Ainda que eu quisesse, era o simples vácuo que me cercava.

    Agora, usando o manto, o sentimento era bem diferente. O tecido me envolvia por todo lugar, o fecho pressionava forte minha garganta, o capuz cobria os meus olhos. Era como estar imersa no que está acontecendo ao redor, apenas desfrutando da sensação de estar sendo carregada por onde quer que o caminho leve. Parecia o voar dos pássaros.

    Me senti tão calma, tão bem, porque eu sabia que o final do caminho seria Iscos!

    Então a sensação mudou, agora parecia o cair.

    Fui jogada no chão, tonta, como se alguém tivesse me empurrado.

    Ouvi vozes bem próximas de mim, me obriguei a levantar depressa.

    Olhei em volta.

    Deu certo?

    Eu estava dentro de uma tenda média, música tocava do lado de fora e o vento passava pela fresta da entrada. Tudo parecia bem simples, tendo ali somente o necessário como garrafas de água, cestos de comida e uma trouxa de roupas.

    Sorri.

    Conheço esta tenda.

    — Quem é você? — questionou uma voz que identificaria em todo o lugar. Me virei sorrindo para Iscos, deitado no chão em um monte de panos esfarrapados. Seus olhos estavam esbugalhados, surpresos. Tentei falar mas minha voz não saiu, na verdade me senti sem forças para dar sequer um passo, a tontura piorando meu estado. Para a minha felicidade, a compreensão tomou seu rosto — Ri-Rice? Minha bela dama? — ele se pôs de pé em um instante, os braços estendidos para mim — O que houve...?

    Avancei em sua direção desejosa por aquele abraço apenas para ser puxada para dentro do manto outra vez, para ficar coberta pelo tecido estupido.

    Quando senti o chão sob meus pés outra vez, caí de joelhos com as mão em frente ao meu corpo. A primeira coisa que me veio foi o cheiro horrível de morte. Ergui os olhos para o cenário de caos que eu me encontrava, no meio de um cemitério de cadáveres em decomposição. Tantos mosquitos, vermes andando para lá e cá.

    Chrowe.

    Eu sabia que era minha vila.

    Por que, com todas as minhas forças, eu estava em Chrowe?

    As lágrimas desceram queimando pelas minhas bochechas, o sentimento de perda ocupando todo o espaço do meu coração. Ele estava sendo rasgado como um papel inútil. Doía tanto ver minha vila destruída.

    Era perturbador demais.

    Mais até do que o próprio dia do acontecido.

    Pressionei o capuz contra a minha cabeça, cobrindo o máximo que podia os meus olhos para deixar de ver o caos, tampando os ouvidos para não ouvir o som dos mosquitos em seu frenesi pela carne morta. Seus zumbidos pareciam uma orquestra horrível, que me lembrava do quanto Chrowe foi abandonada no momento que mais precisava.

    — Eu quero voltar. Eu quero voltar... — murmurei desejando com fervor estar com o meu noivo novamente — Quero Iscos!

    O tecido me envolveu rápido.

    O puxão repentino outra vez.

    Desta vez fui repelida com mais agressividade.

    Cai em algo macio, quente e amável.

    — Rice...! — ele me abraçou forte, tão forte — Por favor, me diga o que...?

    — Não me solta, por favor, não me solta. — supliquei, afundando meu rosto em seu peito. Iscos cheirava a terra, conseguia sentir até os grãos nas minhas bochechas. Eu só queria beijá-lo, abraçá-lo, dormir com ele todo o restante da noite. Suas mãos tiraram o capuz da minha cabeça, me senti aliviada.

    — Eu não entendo... Como...? — ele se afastou o suficiente para me olhar, a confusão estampada em seu rosto lindo. De incerteza, sua expressão mudou para raiva — Quem machucou você?

    — O que? Ninguém. Iscos, eu estou bem, estou viva. Chrowe não existe mais...

    Então ele passou o dedo pelo meu queixo, me encolhi com o toque porque doeu. Percebi que não somente ali doía, meus ombros doíam também, meus dedos estavam ralados e o sabor do sangue estava presente na minha boca.

    — Quem fez isso com você? — perguntou me puxando para sentar em sua cama improvisada — Onde conseguiu esse manto? Isto é magia, não é?

    — Não é meu, eu... peguei emprestado. Onde estamos? Preciso te encontrar, você precisa me encontrar também.

    — Você já me encontrou, bela dama. — ele pegou um pano, umedeceu com água e passou devagar no meu queixo.

    — Não... Eu estou em Lafesen, digo, preciso voltar para lá, você precisa vir comigo! — peguei em sua mão — Chrowe foi destruída por saqueadores, me disseram que eram feras de Gran-CaL. Eles são perigosos, eles...

    — Rice, se acalma. Você está me deixando maluco. Por favor, respira bem fundo e me conta o que aconteceu.

    Segui seu conselho puxando o ar com força e isso doeu também.

    — Uma hora depois que você começou sua viagem, Chrowe foi atacada e destruída. Muitos morreram, mulheres foram levadas por pessoas horríveis. Algumas pessoas foram resgatadas por Lafesen. Neste exato momento está acontecendo um jantar onde Torien vai nos comprar.

    — Torien não é o cabeça da Casa Média?

    — Sim! Iscos, venha comigo, por favor. — pedi me aproximando até encostar minha testa na sua — Não temos muito tempo. Tenho medo de nunca encontrar você outra vez.

    — Você não pode simplesmente ficar? Já está aqui...

    — Marelen ficou em Lafesen. Não posso deixá-la sozinha, foi uma das únicas coisas que me restou. O Sr. Tins também está vivo. — tentei sorrir, como tentei, mas um soluço de lamento veio no lugar — Vem comigo.

    — Bela dama, você não faz ideia de como fez minha cabeça virar mingau. Ainda assim, acredito em você. — beijou meu nariz com os lábios ressecados, descendo para minha boca e seu hálito de hortelã com cravo tomou meus sentidos. Era isso que eu queria com todo meu coração — Como poderia ser mentira? Você sumiu de repente e está outra vez aqui. Quero ir aonde você estiver, Rice.

    Chorei de alívio.

    — Eu te amo tanto, Iscos.

    — Também amo você. Me diga primeiro, o lugar onde está é seguro?

    — Sim. Se arrume rápido, não sei quanto tempo ainda pertenço a Lafesen.

    Ele se pôs de pé, sacudindo o pó das calças.

    Apenas o observei ansiosa enquanto ele pegava uma mochila e enfiava suas roupas nela. Quis dizer que não precisava, mas era tão bom estar com ele, que aproveitei o momento por alguns segundos.

    Olhei para a tenda, nostálgica.

    Quantas noites eu dormi aqui na companhia de Iscos? Entrelaçados, suspirando e até brigando?

    Seria mesmo muito fácil abandonar Lafesen e ficar com ele. Muito...

   — EI! QUEM SÃO VOC... — gelei com a voz interrompida do lado de fora. Olhei para Iscos, com medo. Meu noivo devolveu o olhar. Então gritos começaram, sons de espadas, baques de corpos caindo no chão... Droga! Me senti em Chrowe outra vez.

    — Estão atacando o acampamento. Fique aqui, bela dama.

    — NÃO! — me pus de pés em um salto — Você não vai ver o que está acontecendo! Vamos embora, agora!

    — Rice, esses caras viajam comigo, se precisam da minha ajuda... — sua frase terminou com um grunhido.

    Afastei assustada, pensando que o machuquei.

    Mas não fui eu.

    Uma flecha havia acertado seu lombo, o sangue vermelho vívido manchando sua camisa. As lágrimas estúpidas inundaram meus olhos outra vez.

    — Rice. — ele gemeu — Se esconda.

    — Não. — comecei a cobrir seu corpo com o manto, como Anton fez comigo da primeira vez que nos vimos. Ele havia me abraçado e o manto fizera o trabalho de nos transportar. Mas com Iscos não estava dando certo! — Iscos, fica quieto!

    — Merda... Esta flecha dói como mil picadas de escorpiões! — ele grunhiu e se revirou no chão.

    — Você precisa deixar eu te cobrir com o manto!

    Tentei em vão controlar as lágrimas, a respiração. Nunca imaginei que poderia viver a mesma sensação apavorante duas vezes. Todo o ataque, a perda... Uma flecha furou a tenda e passou raspando pelo meu rosto.

    O corte começou a arder como se um pedaço de brasa quente fosse colocado em cima da minha pele.

    — Rice? Você se machucou? ... Rice…?

    — Estou bem. Vai ficar tudo...

    — SIM! ACHEI! MAGIA!

    Senti todo o meu sangue parar de circular quando um homem grande e feio invadiu a tenda. Eu não sabia quem era, nem me importava, mas sua maldita roupa marrom me fez perceber que por mais que eu tivesse fugido uma vez, não escaparia de novo.

    Era um saqueador, uma Fera, obcecado por magia e a merda do manto de Anton Conghansed era mágico!

    O maldito homem respirou bem fundo, saboreando o ar com olhos fechados.

    — Saia daqui, Rice. — Iscos sussurrou, implorando com os olhos — Por favor...

    Assenti trêmula.

    Coloquei o capuz, bem a tempo de ver no último segundo a expressão de total terror do saqueador ao olhar para mim.

Capítulos
1 A Chegada do Outono (Rice)
2 Esperanças (Rice)
3 Ventos da Mudança (Rice)
4 A Vila de Chrowe (Rice)
5 O que resta a fazer (Rice)
6 Na Grande Casa de Lafesen (Rice)
7 Os planos de agora (Rice)
8 Baratas com mel (Rice)
9 A vela mágica (Rice)
10 Cadernos e Livros (Rice)
11 Perguntas e perguntas (Rice)
12 Espere alguém rico ou não? (Rice)
13 Noite do Jantar (Rice)
14 O Manto de Anton Conghansed (Rice)
15 A Pessoa Desejada (Rice)
16 Lamento (Rice)
17 A Cor do Sangue (Lohan)
18 Feras em Lafesen (Lohan)
19 Os miolos no teto (Lohan)
20 O Salão dos Quadros (Lohan)
21 O Que Foi Decidido (Lohan)
22 O Que Fazer com as Feras (Lohan)
23 Em Uma Corda Bamba (Rice)
24 Ala Oeste (Rice)
25 Acordo Entre Irmãs (Rice)
26 3 Meses (Rice)
27 A Promessa de Um Jantar (Rice)
28 Expectativas de Um Bom Jantar (Rice)
29 Pintura da Morte (Lohan)
30 Jantar com a Fera (Lohan)
31 Conversa Após Jantar (Lohan)
32 Ventos Frios (Rice)
33 A Curta Vida De Uma Pessoa Maravilhosa (Lohan)
34 Uma Menina? (Rice)
35 Novos Planos (Lohan)
36 Quem Está no Fim do Corredor? (Lohan)
37 As Feras (Lohan)
38 Estão Atacando (Rice)
39 Surpresa na Ala Oeste (Rice)
40 Ataque no Salão dos Quadros (Lohan)
41 O Tempo Depois do Ocorrido (Lohan)
42 Lágrimas e Adeus (Rice)
43 Os Mantos (Lohan)
44 Uma Conversa Após o Caos (Rice)
45 Escolhas (Lohan)
46 O Vilarejo
47 A Fera no Vilarejo (Rice)
48 Graham (Rice)
49 Uma deliciosa torta (Rice)
50 Casual Reencontro (Rice)
51 Banheira (Rice)
52 Duas semanas de viagem (Lohan)
53 O túmulo de Tessa ( Lohan)
54 Nova face (Lohan)
55 Shie (Rice)
56 Rastros do Invasor (Lohan)
57 A Madrugada na Estalagem (Rice)
58 O Bebê - Parte 1 (Rice)
59 O Bebê - Parte 2 (Rice)
Capítulos

Atualizado até capítulo 59

1
A Chegada do Outono (Rice)
2
Esperanças (Rice)
3
Ventos da Mudança (Rice)
4
A Vila de Chrowe (Rice)
5
O que resta a fazer (Rice)
6
Na Grande Casa de Lafesen (Rice)
7
Os planos de agora (Rice)
8
Baratas com mel (Rice)
9
A vela mágica (Rice)
10
Cadernos e Livros (Rice)
11
Perguntas e perguntas (Rice)
12
Espere alguém rico ou não? (Rice)
13
Noite do Jantar (Rice)
14
O Manto de Anton Conghansed (Rice)
15
A Pessoa Desejada (Rice)
16
Lamento (Rice)
17
A Cor do Sangue (Lohan)
18
Feras em Lafesen (Lohan)
19
Os miolos no teto (Lohan)
20
O Salão dos Quadros (Lohan)
21
O Que Foi Decidido (Lohan)
22
O Que Fazer com as Feras (Lohan)
23
Em Uma Corda Bamba (Rice)
24
Ala Oeste (Rice)
25
Acordo Entre Irmãs (Rice)
26
3 Meses (Rice)
27
A Promessa de Um Jantar (Rice)
28
Expectativas de Um Bom Jantar (Rice)
29
Pintura da Morte (Lohan)
30
Jantar com a Fera (Lohan)
31
Conversa Após Jantar (Lohan)
32
Ventos Frios (Rice)
33
A Curta Vida De Uma Pessoa Maravilhosa (Lohan)
34
Uma Menina? (Rice)
35
Novos Planos (Lohan)
36
Quem Está no Fim do Corredor? (Lohan)
37
As Feras (Lohan)
38
Estão Atacando (Rice)
39
Surpresa na Ala Oeste (Rice)
40
Ataque no Salão dos Quadros (Lohan)
41
O Tempo Depois do Ocorrido (Lohan)
42
Lágrimas e Adeus (Rice)
43
Os Mantos (Lohan)
44
Uma Conversa Após o Caos (Rice)
45
Escolhas (Lohan)
46
O Vilarejo
47
A Fera no Vilarejo (Rice)
48
Graham (Rice)
49
Uma deliciosa torta (Rice)
50
Casual Reencontro (Rice)
51
Banheira (Rice)
52
Duas semanas de viagem (Lohan)
53
O túmulo de Tessa ( Lohan)
54
Nova face (Lohan)
55
Shie (Rice)
56
Rastros do Invasor (Lohan)
57
A Madrugada na Estalagem (Rice)
58
O Bebê - Parte 1 (Rice)
59
O Bebê - Parte 2 (Rice)

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