Deixe queimar

Nós dois nos olhamos com mútuo entendimento. E num silêncio,  quebrado somente  pelo peso de nossos pensamentos, o crepitar da lareira e a lenta trepidação da queima da chama das velas nas lamparinas. 

Os olhos azuis de Thomas ganharam um aspecto sobrenatural com a possessão como se fossem de vidro.

O demônio dos Bloodmoon e eu partilhamos de algum tipo de vínculo não dito.

 Não digo isso a mim mesma porque ele me assusta e quero criar uma conexão com meu algoz.

 É só a verdade. 

Eu o sinto me vestindo da nudez da indiferença para um vestido de fogo puro de aceitação e canalização do meu sofrimento. 

 E eu sei que ele me sente. Ele me sente desde o primeiro momento num nível sobrenatural. 

Tenho a vaga impressão que se transmite na intuição afiada que sempre possuí, de que Thomas me abordou no baile, mas foi o demônio quem me escolheu e era quem movia as cordas como se Thomas fosse um boneco ventríloquo.

 Ele se alimenta de dor, e modéstia a parte, não que eu ache que alguém deseje esse título, eu sou a dor encarnada. Óbvio, que todo mundo tem sua parcela de dor. Mas é que a minha, a minha queima com ódio que é fogo líquido em mim. E por eu sentir o mundo de forma tão intensa… é auto destruição na certa. Me odiando, eu me destruo. Sempre achei que eu merecia morrer. Mas agora quero que morra quem me fez achar que eu deveria morrer. 

Quanto ódio e dor há dentro de mim? Eu acho que desconheço meu próprio potencial e camuflei a dor com indiferença. Uma hora, depois de tanto fingir não sentir, você acaba se convencendo de que não sente. Mesmo que todo o rancor acumulado fique em um lugar guardado em você. E eu acho que foi isso que o fez me escolher no baile com a face de Thomas, ele acessou esse lugar meu.

— Quer seu Thomas de volta? — Sondou o caído, quebrando o cômodo silêncio entre nós. — Eu o devolverei.

— Já disse que gosto mais de você. — Remoí sem perceber bem o que dizia. — E ele não é meu. Ele quer a esposa do irmão. Sou só distração. — Argumentei. — Eu gosto de conversar com você. É sábio.

— Ora, Lina… que jogo arriscado é esse? Flertes por mais bem elaborados que sejam não mudam o fato de que quero sua alma.  Nem sabe meu nome, como pode dizer que gosta mais de mim? Nunca viu minha real face…

Ele parece profundamente incomodado pelo jeito que cruza as pernas. O jeito que as palavras fluem de sua boca me passam a necessidade de compreensão e cautela. Ele quer ser ouvido, mas acha que só o consegue causando medo. 

Esse jogo me excita como há muito algo não o faz. Ele pode ter minha alma. Eu achava que estava morta por dentro mesmo. 

— Você é capaz de destruir toda uma dinastia por uma mulher que foi injustiçada. Isso me diz muito mais sobre você do que seu maldito nome. — Respondi. — Nomes nem são nossos. Outros escolhem nossos nomes e nos batizam com eles e temos que agradecer submissos, como se não fosse uma forma de dominação. O nome de um demônio nos dá poder sobre ele, mas eu não quero poder sobre você. Eu respeito você como respeito aquele que criou você. Sou um ser inferior e limitado. Sei meu lugar. 

Ele pareceu incomodado. Foi algo na feição dele. Um leve ponto de fraqueza, de surpresa, que se desfez tão rápido quanto um piscar de olhos. 

— Mas a vingança contra os Bloodmoon foi em troca da alma dela. — Pontuou sádico tentando soar ameaçador. 

Ele ao menos percebeu que ela quis parar a vingança depois de Ivan, e mesmo assim, ele continuou e continuará depois de Elizabeth e eu, por que não pode deixar nem os descendentes de quem a machucou impunes? Será que não enxerga o quanto a ama, mesmo sendo um ser espiritual, e tendo mais vantagens em avaliar percepções que nós humanos? O pior cego é aquele que não quer ver mesmo.

Eu sei o que é sombrio. Eu sei o que é feio. Sei o que é sujo. A alcunha dele significa tudo isso, mas ele é muito mais honrado do que qualquer homem que já conheci. Talvez porque ele não é homem. A igreja pinta os demônios como escória, mas eles são mais honrados que muitos humanos. Nós humanos que deveríamos ter a alcunha de demônio, eu diria.

— Certo. — Dei a ele a satisfação de meu real medo. — Tinha esquecido desse pequeno detalhe. 

Ele pareceu satisfeito agora que era temido. Como se o temor viesse com o respeito. Eu o respeito e o temo.  Mas meu respeito a ele, não veio por temor, mas sim por ele defender Nott e a vingança dela. Por defender a alma indefesa e sensível dela. Nott só se voltou contra os Bloodmoon porque eles a machucaram muito, muito cruelmente. E ela era inocente e eles a tornaram o monstro e a vilã. Eu a entendo. A alma dela sofre muito. Muito. Dá vontade de chorar só de lembrar. Ela foi morta pelo amor da vida dela. Não foram as chamas que a mataram. Foi o coração partido dela.

— Você não precisa chorar também. — Resmungou ele. — Já disse que tem um mês e eu não vou te matar até o fim deste. 

— Não é por isso… — Respirei fundo sentindo as lágrimas descerem. Ele as lambeu do meu rosto e as recolheu com fascínio. — A dor de Nott me assombra. — Deixei escapar entredentes. Meu coração dói. É tanta dor e tanta raiva. —  Não consigo não sentir toda essa tristeza sem me afetar também…— Tentei respirar. — Meu coração… Eu sinto como se tivesse uma espada nele. 

Ele assentiu inconformado. 

— Ela era como você. Sentia a dor do mundo. Muito empática. O erro dela foi se apaixonar pelo maldito Bloodmoon. — Falou suave e perigoso. 

Explicou com meio sorriso:

— Ele a trocou por uma mulher nobre. Quando descobriram do caso dele com Nott… Ela foi vista como uma bruxa que seduziu o pobre herdeiro… 

 Os olhos de Thomas ficaram rubros e ele riu sádico.

 — Bem… ela foi queimada. — Contou  atordoado pelos olhos arregalados. 

— Mas o divertido é que  ele amava a esposa dele. E a vingança nesse caso foi bem quente.  Eu a matei num incêndio. Ela morreu ardendo em chamas gritando na frente dele como eu assisti minha Nott morrer. — Ele saboreou as palavras. Senti isso. Porque me senti bem também.— E aí matei as crianças que nasceram do maldito casamento deles. Eu fiz aquele maldito se arrepender de ter nascido, mas não o matei, não, eu o deixei miserável ainda em vida. Mas não era o suficiente. Por ele não ter assumido Nott, eu fiz com que todas as mulheres que eram assumidas pelos herdeiros Bloodmoon morressem. 

— Isso é o que eu chamo de escrever uma  bela poesia  gótica com cinzas, sangue e mortes." 

Eu ia dizer " poesia de amor" mas me refreei a tempo. Ele não gosta de parecer fraco. 

Ele riu e me estudou, pareceu surpreso por algo. 

— Você é a amiga que ela precisava naquela época, Lina.  Vocês duas seriam imbatíveis. Acho que por isso ela se arriscou a me irritar. Ela deve ter sentido isso também para te avisar sobre mim. Ela nunca fez isso antes.

Senti vontade de chorar. Do jeito que ele a protege, sei que essas palavras têm muito valor. E a Nott ter me avisado dele foi uma gentileza sem tamanho da parte dela.

— O garoto vai acordar logo, Lina.  Hipnotizá-lo tem sido mais e mais difícil. A mente dele é bem forte. 

— Tem algo que eu possa fazer para tornar mais fácil? — Perguntei já com saudade dele.

— Eu… — Ele me estudou e acariciou meu cabelo. — Fica mais fácil quando você o seduz. — Explicou. — Quando ele sente algo forte por você, seja desejo, raiva, ciúme, posse  isso o distraí e o deixa aberto a mim. 

— Certo. Eu vou tentar. 

— Até a próxima, querida.  Diga a Nott que não vou matar você e conta do seu acordo comigo. Possuindo Thomas, eu não posso mais vê-la. Esse é o preço. 

— Certo, direi. 

— Obrigado. 

Thomas desmaiou de novo. A sorte é que ele já estava na cama e eu só o ajeitei. 

Ele demorou a abrir os olhos. Aproveitei para guardar a adaga no mesmo lugar no guarda-roupa. Fui até ele e acariciei seu rosto.  Thomas tocou meu rosto. Olhou minha mão enfaixada. Ele a arrebatou num susto.

— Fui eu que…

— Não, querido. Eu caí e bati a mão numa lasca de madeira solta do guarda-roupa. — Menti. 

— o que foi que…  Íamos nos amar 

— Passou mal, meu querido marido. Ainda deve estar fraco.— Expliquei amável e dócil . 

Thomas suspirou no meu pescoço.

— Gosto quando fala assim. — Revelou roçando o nariz no meu e se esqueceu do seu medo. Suspirei entediada. Essa criança me irrita. 

— Te quero tanto, marido. — Falei revirando os olhos internamente. 

Quando verei o demônio de novo? Acabei de falar com ele, mas já sinto profundamente sua falta. Estou para matar logo Nicolas só para ter uma desculpa para falar com ele. 

Seduzir um homem com palavras é fácil. Como Thomas  mesmo disse, não sou aprazível como Elizabeth. Mas eu sei pelo menos o que dizer. E se eu preciso seduzir Thomas para ter o demônio comigo, que seja. Thomas é só um empencilho ao meu objetivo. Eu quero que o ser dentro dele me ame como ama Nott. Eu quero ser protegida por ele. Pela força ancestral que sinto. Eu invejo Nott por ter o conquistado. Mas eu realmente quero ser amiga dela também.

Mais populares

Comments

Rosária 234 Fonseca

Rosária 234 Fonseca

hum ela ta gostando do demônio cuidado em kkkk o amor quando pega não costuma soltar

2023-09-02

3

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!