No dia seguinte, recordo-me da morte do cervo invadindo meus pensamentos antes mesmo que levantasse a cabeça do travesseiro. Os garotos, que esperavam a chegado do animal, o trouxeram ao refugio e suspenderam-lhe num galho. Eu me apressei a entrar na caverna e atender a dorminhoca Arden. Não suportaria vê-la como uma carcaça aberta e esfolada.
Acendi a lâmpada que estava junto à cama, um suave brilho resplandecente ilumino o lugar. Caleb havia nos trazido uma pilha de roupas recém lavadas no lago. Assim que me levantei coloquei uma camisa de abotoar no pescoço. Não sabia onde estava o dono dos livros infantis nem por que havia os abandonado. Em um canto da mesa havia um bloco de notas, eu o abri e li três palavras soltas: ―Me chamo Paul‖. A caligrafia era insegura e espaço entre as letras desiguais. Lembrome de que havia dito a Caleb que os garotos, em certos aspectos haviam tido um destino pior que as garotas. Fechei os olhos e imaginei Ruby jogada em uma sala de camas estreitas, onde mentalmente fazia perguntas para as doutoras com um típico de inocência ―Onde estão nossos livros? Quando iremos a Cidade da Areia? Por que nos amarram com cintas?‖ Nos haviam tirado muitas coisas, mas ao menos nos haviam dado algo: sabíamos ler, escrever e assinar.
Ao todo isso me pareceu passos antigos dados com os pés descalços. Vir-meei e vi uma pessoa que se aproximava correndo e arrancou o bloco de minhas mãos. Era um garoto, de cabelo castanho claro enrolado, usava um macacão com lama sem uma camiseta por baixo.
-De onde saiu?- Perguntei com calma para não o assustar- Quem é você?
-Isso é de meu irmão. – Levantando o bloco como se fosse um premio.
-Não pretendia espionar- Respondi sem tirar o olhar do pequeno corpo do menino. Lembrava-me as meninas pequenas do colégio: um ano mais jovens que nós, depois dois, três... As turmas iam se reduzindo até quando o rei organizou os remédios e os distribuiu aos doentes. Às vezes apareciam garotos no bosque, filhos de fugitivos da epidemia, mas eram casos raros. Havia muito tempo que não via uma criatura tão pequena. E nem conseguia me lembrar de ter visto um garotinho- Eu só...
-Estava aprendendo a ler- Explicou o menino, riscando o solo com o dedo gordo do pé e arrancando uma pedrinha. Não parecia ter mais de seis anos e tinha uma expressão de alguém que não sabia sorrir- Ia me ensinar, mas morreu.
Olhei ao colchão, aonde Arden, cheia de suor, permanecia imóvel sobre o colchão. Ao seu lado havia um prato cheio de verduras da noite anterior.
-O que aconteceu? Ele ficou doente?- As palavras queimava a garganta enquanto contemplava a minha amiga.
-Havia começado a caçar. Caleb disse que havia ocorrido uma enchente repentina- Ao falar, folheava as paginas do caderno coberto de rabiscos tremidos- Paul cuidou de mim quando nossos pais desapareceram, e me trouxe aqui.
-Eu sinto- disse.
-Não sei porque todo mundo diz o mesmo- Os olhos brilharam quando me olhou- Não é sua culpa.
-Suponho... –Pensei nas visões que apareciam em minha mente quando dormia: via Pip em uma estreita cama com a barriga inchada, às vezes se retorcia para soltar-se das cintas e gritava para as outras garotas que estavam juntas a ela, buscando mãos que não poderia tocar. Outras vezes lembrava-me como era ela: fazendo problemas de matemática em sua mesa enquanto batia a caneta na mesa. Mas repetidamente, envolvia-se com um gesto de raiva, expondo seu perfil pálido e me perguntava, perto de mim: ―Por que fez isso? Por quê?‖. E repetia sempre as mesmas palavras: ―Eu sinto muito, eu sinto muito...‖ ate que voltava a mim, e então despertava.
Tossi buscando os olhos do menino, e lhe expliquei:
-É como dizer ―estou triste‖ ou ―Dói tanto em mim como em você‖. Talvez seja uma loucura, mas acontece que as pessoas falam isso.
O menino me observou, fitando os cabelos que caiam sobre meus ombros, com as pontas abertas. Os penteava com os dedos para não embolar.
-Me disseram que é uma garota- Comentou.
Fiz um gesto afirmativo.
-É minha mãe?
-Não. Não sou sua mãe.
Nós ficamos em silêncio. O menino beliscou a pele partida dos lábios.
-Me chamo Benny- Disse ao fim, indo para a porta- Quer ver minha casa? Apresentarei-te ao meu companheiro de quarto, Silas.
Pensei um instante. Voltei a olhar Arden, estava enrolada, com os olhos fechados, na mesma postura que na noite anterior.
-De acordo- Respondi-o, contente de ter alguém com quem falar- Vamos!
Segui-o ziguezagueando passos ente as habitações pequenas e estreitas. Havia dois colchões no chão, e carrinhos e latas manchadas de barro por todas as partes. Outro garoto de pele tostada mexia na terra com um palito, tinha cabelos pretos cortados de uma forma desigual, deixando ver algumas partes calvas, e vestia uma camisa larga escondida em uma vestimenta conhecida: um tutu marrom.
Assim era Silas. A menina que eu havia perseguido pelo bosque era na realidade um menino.
-Eu te conheço - Exclamei a vendo- Na outra noite me deu um bom susto. Por que não parou de correr quando te chamei?
Silas me olhou com olhos determinantes.
-Corria porque me perseguia- Respondeu, e deixou o palito na terra. Estava sentada no chão com as pernas cruzadas e deste modo parecia menor.
-Há outros meninos como vocês? – Perguntei, Silas pegou o palito novamente e desenhou círculos na terra. Em vez de responder, se concentrou nos seus círculos- São os mais jovens?
Benny se sentou no solo junto a Silas, virando o rosto e pela primeira vez reparei em uma grande cicatriz rosada que ia desde a nuca até a orelha, oculta pelo cabelo grudento.
-Sim. Também tem Huxley. Tem onze anos. Às vezes joga conosco, mas os demais se dedicam a trabalhar ou treinar.
-E para o que treinam?
Silas se levantou do solo. Desenhou algo que parecia um cervo, colocando os chifres como um X.
-Os garotos mais velhos viram caçadores aos quinze anos- Explicou Benny.
-Então teu irmão tinha quinze anos- Continuei. Havia suposto que Paul era um garoto pelos livros de contos. Mas, seguramente que começou aprender com o mais simples que encontrou- E te ensinou a ler?
Benny fez um gesto afirmativo, e me perguntou:
-E você sabe ler?
-Claro que sei.
-Me ensina?
-Claro, que ensino.
Benny sorriu pela primeira vez, faltava um dente dianteiro. Impulsionada por uma repetina inspiração, corri ao palito de Silas e me sentei no solo. Escrevi uma palavra rapidamente.
-Sabe o que é isso?- Perguntei.
Silas olhou as letras e depois me olhou, como se a supressa que minha mão fosse capaz de escrever aquelas letras. Negou com a cabeça.
-É seu nome- expliquei sublinhando uma letra por vez- S I L A S.- E continuei escrevendo outra palavra embaixo- E assim se escreve Benny.
Ele fez um sorriso, seu único dente dianteiro sobressaia por um lado.
Silas me observou boquiaberto e, apertando os dedos contra o chão, repetiu:
-Silas.
Deixei o palito e me levantei, emocionada.
-Espere um momento- Pedi a eles pensando nos livros sem ler que estavam na mesa de Paul- Volto logo.
Benny estava diante da parede de barro, em que escrevia as letras com um palito.
-Pronto, muito bem- Disse enquanto os meninos que levavam a habitação observavam em silêncio. Benny terminou de ler, voltou e soletrou a palavra escrita em letra maiúscula.
-BENNY- Leu e espocou um sorriso sem dentes, e iluminando o rosto.
-Muito bem!- Aplaudi tomando o monte de livros infantis. A classe que havia começado com dois pequenos, escrevendo seus nomes no solo, aumentou quando alguns garotos maiores espiaram com a cabeça e decidiram aprender também.
-Vamos ler um livro- Anunciei e escolhi um. Quando havia ido a buscar os contos, me alegrei em ver que conhecia alguns do colégio- ―Era uma vez uma figueira... - Li mostrando a pagina para que todos visem- E amava um menino. E todos os dias o menino ia...‖- Me calei porque Silas havia levantado à mão. Era o primeiro que havia ensinado quando, no começo da aula, se colocaram a gritar todos ao mesmo tempo.
-O que quer dizer que o amava? O que é isso?- perguntou.
Kevin, o garoto de óculos quebrados, o olhou com um beicinho e explicou:
-Significa que ele quer beija uma garota. Antes da epidemia era assim. –Me dedico um sorriso tímido e corado.
-Beijar uma garota?- Silas perguntou incrédulo.
Huxley se animou a participar:
-Não, não é isso. É uma arvore e as arvores não beijam os garotos.
-De que está falando?- Silas quis saber totalmente confundido.
-Pode amar a qualquer coisa- Intervi observando o grupo- O amor é... - Busquei as palavras exatas- Amar significa preocupar-se com alguém, sentir que uma pessoa nos interessa e pensamos que o mundo inteiro seria mais triste sem ela- Recordei da risada agitada da Pip, os saltas que dava de cama em cama com Ruby nos domingos de manhã, enquanto esperávamos nossa vez de tomar banho.
Depois de uma longa pausa, Benny disse:
-Eu amava meu irmão- Afirmou.
-E eu amava a minha mãe- Continuou um garoto de quinze anos que se chamava Michael.
-Eu também amava minha mãe- Confessei- E continuando amando ela. É como... É algo que nunca desaparece não importa onde a pessoa esteja- Esperei um momento e abri o livro outra vez- ―Todos os dias o garoto corria para olhar a árvore e fazer uma visita...‖.
-Kevin! Michael! Aaron! Onde estão?- A voz de Leif trovejou no corredor. Apareceu subitamente, seu corpo musculoso esta coberto de cinzas e barro. Aqueles olhos frios de marrom escuro me olharam sem refletir nenhum sentimento- Onde estão os cantis?
Vários garotos maiores se levantaram e comentaram:
-Íamos busca-los quando... Acabasse o livro.
-O livro?- Estranhou Leif, e se aproximou. Olhou-me, mas mexia a cabeça como se fosse à mesa, uma cadeira ou o solo que havia sobe seus pés- Irão agora mesmo porque tinham que ter feito essa manhã. Quero todos os cantis de água cheios com da chuva, ao redor da fogueira.
-Não pode esperar uns momentos? Estamos quase terminando- Disse sem poder evitar.
Os garotos se calaram, surpreendidos ao ouvir minha voz.
Leif se aproximou de mim, o cheiro estranho era o que nos separava.
-Esperar o que?- Jogou o livro de minha mão- A isso? Os garotos não sentem falta de ler livros infantis. Eles precisam aprender os exercícios por si mesmos.
-E aprenderam. –Me coloquei de pé- Mas também devem compreender um sinal de transito ou saber escrever seus nomes.
Leif olhou a classe: quase uma dúzia de garotos se amontoou em um canto limitado. Abriu a boca lentamente, mas a fechou, como um peixe encalhado no aquário, lutando para respirar. Olhando para Kevin, o maior de todos eles, assentiu e concedeu:
-Encham os cantis quando acabarem a aula. Enquanto você... -A pesar de sua olhada fria, me pareceu ter certa alegria em sua expressão, um indicio de ternura em seus lábios, o que mais parecia um sorriso. - Se vai ficar aqui e quer ensinar os garotos, tem que saber o que te espera. Os maiores tem que sair para caçar e fazer guardas. –Apontou para Kevin e Aron, apoiados em uma parede de barro- A cerimônia de iniciação será realizada amanhã ao por do sol. –Saiu pela porta para não bater com a inclinação do teto.
Olhei os garotos com o livro na mão, e senti uma mudança de poder de um modo tão real, como se a terra tivesse se aberto sobre meus pés. A energia percorreu meu corpo e continuei lendo, AL tempo que a caverna me parecia maior:
-―E todos os dias o garoto recolhia as folhas...‖.
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Comments
adri
Feliz 0ou infeliz primeiro o dever depois o prazer ler e escrever aprender mas no caso tem que primeiro cumprir o dever da sobrevivência.
2023-08-04
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