11

No dia seguinte caminhei com Arden por um campo de girassóis, afastando os monstros gigantes de olhos negros do meu rosto, Apenas conversamos, exceto durante o café da manhã a base de coelho assado, e me pareceu um bom sinal. Temi acordar sem comida, sem cobertas e sem a própria Arden. Mas não tinha ido e gostaria de saber se seu silêncio significava que permaneceríamos juntas. Eu assim desejava, embora fosse beneficio de meu estomago.

Ambas percorremos a casa coberta de erva daninha de uma favela abandonada. As casas estavam com o teto afundando e várias cestas de basquete estavam quebradas ao longo do caminho, transformadas pelas videiras em folhas verdes e floridas como arte de topiaria. Vimos também restos de carros velhos, cujo para-brisa estavam em mil pedaços e as portas enferrujadas e no caminho, oculto pelo matagal, vimos dois caixões podres: um de um adulto e outro de uma criança.

Quando minha mãe estava morrendo, eu jogava sozinha, fora de casa, porque não me havia deixado deitar perto dela por medo de me infectar. Eu deitava sobre meu pulso no leito da janela e preparava as pomadas de lama e folhas esmagadas. “Você vai se recuperar-dizia para ela, enquanto lamentava ouvindo minha mãe pela janela aberta- Mas agora está muito ocupada.”

-Era um pouco mórbida, certo?- disse Arden, tomando-me pelo braço. Havia me prendido ante de madeira do caixão vermelho.

-Me desculpe. – Continuei caminhando e procurei retirar a melancolia. Mas me sentia pior, inclusive mais sozinha, ao me dar conta que minha companheira não entendia. Colhi algumas flores silvestres e acariciei o colorido buquê.

-Decidi que vamos juntas para Califa- anuncio Arden, andando pela grama- Mas depois será só você. Penso em parar por lá e descansar para logo partir e tentar localizar meus pais na cidade.

-Sério?- Minha tristeza se converteu em alegria- Oh Ardem eu...!

Ela se virou, abaixando os olhos para evitar o sol, e advertiu:

-Não se alegre. Mas, posso mudar de ideia...

Caminhamos por um momento em silêncio. Meus pensamentos se retornaram ao colégio, à noite em que fugia, aos rumores que Arden teria nadado no lago. E não me parecia tão incrível comer a carne que ela cozinhou, carne esfolada e cozida.

-Tem certeza que sabe nadar?- Ousei perguntar.

-Quem te disse isso?- Tirando o moletom preto, deixando descobertos os braços pálidos. Tinha os ombros salpicados com sardas.

-Viram você- Mas não expliquei que havia levado uma hora pra cruzar o lago segurando em ramos cheio de espinhos.

Ela sorriu como se estivesse lembrando-se de algo engraçado e disse:

-Eu aprendi sozinha. A você nunca se preocuparam, certo dona Fosforita?

Não a ignorei.

-Não tinha medo que te descobrissem?- Um coelho cinza correu pela estrada.

-Geralmente as guardiãs não ficam nos jardim depois da meia noite, a menos que tenham uma guarda especial. A maioria das noites são muito tranquilas no colégio- Encaminhou-se até o coelho, com a faca em mãos. O animal parecia imóvel, enquanto ela se aproximava.

Não conseguia tirar da minha cabeça o dia em que havia nadado. Nunca tinha visto alguém fazer o mesmo. Se havia entrado na água sem mais, movendo os braços? Se apoiando em algo como um galho ou corda?

-E não tinha medo de se afogar?

Ao ouvir minha voz, o coelho fugiu entre a mata de um jardim abandonado.

-Muito bem, Eve- bufo, e colocou a faca no cinto- Eu adoraria que um ser divino ou humano acreditasse em mim, mas tenho que pegar o jantar. – Entrou entre as casas, sem dificuldade de voltar à vista.

-Vou buscar a janta!- gritou ela- Eles se hospedaram na casa?

Não respondi. Segui caminhando, me afastando das casas e me dirigi a uma zona que tinha ruinas. A grama cobria um restaurante, entre as e o musgo se distinguia um gigantesco EME amarelo. Ao fundo da maçã havia um enorme edifício, cuja fachada estava apagada, e o letreiro havia perdido algumas letras. Dizia: WAL MA T. Alguém havia escrito spray sobre as janelas quebradas da frente às palavras: “ZONA DE QUARENTENA. SE ENTRAR, ENFRENTE AS CONSEQUÊNCIAS”

Quando o caminhão cruzou as barricadas para evacuar as crianças saudáveis remanescentes, minha mãe pediu que me levassem. Corri para o ônibus e agarrei-me ao poste de madeira, determinada a ficar. Foi inútil. Minha mãe saiu pela porta, com o nariz sangrando, quando me colocaram na parte de trás do caminhão. Tinha os olhos afundados, com cor de ameixa podre, e o peito sobressaltando com um laço. Permanecendo na porta, se despendido com a mão, e me lançou um beijo.

Ao visitar a cidade abandonada, tentei não olhar as enormes cruzes de madeira do estacionamento nem as pilhas de ossos que haviam embaixo cobertas de musgo. Mas todos os lugares tinham sinais de morte. Na rua havia uma casa abandonada, a imobiliária do norte da Califórnia, as janelas estavam tampadas. Os caixões se amontoavam em um local chamado Manicure Suzy. Acabava de ver os X vermelhos pintados na lateral de um recipiente quando algo se moveu diante de mim: um filhote saiu do caminho, com um passo tranquilo, e me observou. Em seguido volto a dedicar toda sua atenção a uma lata enferrujada de comida que pretendia abrir com as garras.

Imediatamente pensei no Ursinho Pooh, o livro que a professora Florence lia para nós quando éramos crianças sobre um urso e seu bom amigo Christopher Robin. Dizendo-nos que os ursos não seriam tão simpáticos, mas aquele urso era muito pequeno para ser algum perigo. Perguntei-me se o animal estaria comendo açúcar, ou se era um detalhe curioso da historia.

Estendi a mão, procurando não o assustar. O urso cheirou meu braço com o focinho úmido, e quando acariciei o suave pelo castanho, me deu uma agradável sensação de arranhar minha mão.

-Sim, é igual ao Pooh- afirmei. Desviou a cabeça do caminho e cheirou outras latas. Não sabia se Arden deixaria leva-lo para casa. Talvez poderíamos ficar com ele por um tempo, eu nunca tinha tido um mascote.

Estendi a mão mais uma vez, mas a retirei imediatamente quando ouvi um rugido ameaçador: uma ursa enorme se levantou pelas patas traseiras junto à estrada, me pareceu uma autentica torre.

O urso se aproximou dela, e a ursa abriu a boca, mostrando os dentes. Endireitei-me, estava arrepiada e com as mãos tremendo. A mãe se jogou contra mim, com a cabeça baixa e levantei os braços em um gesto patético.

Preparava-me para o ataque quando algo golpeou a pelas costas.

Uma pedra. Enquanto o animal rugia, outra pedra golpeou a cabeça, caindo para trás, e seu imenso traseiro se chocou contra a estrada.

Ao dar a volta, vi um garoto coberto de poeira, cujo peito musculoso estava sujo de barro e pele muito morena – de um castanho avermelhado- que montava em um cavalo negro e levava uma bala na mão.

-Será melhor que monte- sugeriu guardando a bala no bolso traseiro da calça- Não acabou.

Olhei novamente para ursa, que sacudia a cabeça, momentaneamente atordoada. Não sabia o que era pior: morrer entre as garras de um animal feroz ou fugir com um selvagem Neandertal a cavalo. Ele estendeu a mão, tinha as unhas negras de sujeira.

-Vamos!- insistiu.

Dei-lhe a mão, e me puxou. Sentei-me atrás dele, na garupa do cavalo. O garoto fedia a suor e a fumaça.

Com um ―arre!” zarpamos em marcha pela estrada coberta de musgo. Coloquei meu braço em volta do peito musculoso do garoto e me voltei a olhar mais uma vez a ursa. Se havia levantado e corria atrás de nós, mas seu gigantesco corpo castanho estremecia pelo esforço.

Meu salvador agarrou-se as rédeas cortadas de couro, desviando o cavalo da estrada principal para conduzi-lo entre o denso bosque. A ursa se aproximou e mordeu a cauda do cavalo.

-Mais rápido! Tem de ir mais rápido!- gritei.

O cavalo acelerou, mas a ursa nos seguia muito perto sem mostrar o menor sinal de cansaço. Minhas pernas, empapadas de suor, escorregavam. Segurei-me ao garoto, cravando as unhas em sua pele. Ele se inclinou para frente, e o vento rugia sobre nós. A ursa voltou a abrir sua boca feroz.

Olhando por cima do ombro do garoto, vi na nossa frente uma ravina de metros de largura, que parecia um antigo canal de agua irregular, deveria ter uns cinco metros de profundidade.

-Cuidado!- exclamei, mas ele continuou, mais rápido que antes.

-Por que não me deixa manusear o cavalo?- gritou virando a cabeça para mim. Atrás de nós a ursa corria com todas suas forças, sem separar os olhos das coxas do cavalo.

-Nããoo!- sussurrei quando percebei que ele corria em direção ao riacho. Se não conseguíssemos o animal nos devoraria vivos e estaríamos aprisionados no fundo do canal sem a possibilidade de nos escondermos. – Não, por favor.

Mas o cavalo levantando as patas dianteiras estava a ponto de sair disparado do outro lado da ravina.

Meu estomago afundou. Durante o momento senti que voava, e logo senti um duro impacto dos cascos contra o solo. Contemplei o campo de cravos que nos rodeava. Havíamos saltado.

Virei minha cabeça uma ultima vez, tremendo que a ursa se nos atacasse, mas escorregou na borda do precipício. A última coisa que ouvi foi um rugido furioso enquanto afundava pelo íngreme precipício e aterrissou, com um golpe surdo, no fundo lamacento do riacho.

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