17

  —Quer mais? —perguntei segurando a colher de feijão diante dos lábios rachados de Arden. Murmurou algo parecido com um não, se pôs de lado, tirou a colcha das pernas cheia de manchas e fechou os olhos.

  Toda noite era assim. Ela acordava de vez em quando, pedia comida e água e depois desmoronava no colchão afundado. Às vezes se retorcia de calor, queixando-se de um mal estar que subia pela coluna. Caleb havia trazido arrastando uma banheira cheia de água do lago, e eu havia conseguido manter Arden acordada o tempo suficiente para limpar o suor que lhe impregnava a pele e tirar-lhe as folhas do cabelo com um pente quebrado.

  A caverna de terra estava no final de um dos tuneis principais; era uma estadia sufocante que contava com um colchão e uma mesa cheia de livros infantis amarelos. Verifiquei as gavetas da mesa procurando, contra toda a lógica, medicamentos. Como no colégio tínhamos muitíssimos, nunca me havia dado conta de seu valor.

  Dávamos por sua existência e a facilidade para tratar qualquer problema:

a tosse, uma infecção, um corte feito por um farol quebrado... Dispúnhamos de pastilhas, de injeções para anestesiar a pele antes de te darem pontos de sutura, e de doce xarope de cor rosa chiclete que se deslizava pela garganta. Quando Ruby caiu paralisada no jardim devido a uma perfurante dor no lado, levaram-na à enfermaria, de onde saiu dias depois usando uma marca de costuras negras na barriga, no lugar onde lhe haviam retirado o apêndice. ―O que lhe haveria ocorrido fora dos muros do colégio?  Perguntamo-nos em voz alta enquanto lhe examinávamos a cicatriz. Maxine sugeriu que teria que remove-lo, seguramente com umas tesouras enferrujadas. Não,vocês estão enganadas  —corrigiu a diretora, que vigiava as nossas mesas no corredor para verificar de que todas tomássemos as vitaminas—Simplesmente haveria morrido.

  Retirei o espesso cabelo preto do rosto de Arden e notei a sua pele queimava. Lembrei então  a primeira vez que havia visto: nos anos posteriores a epidemia, chegavam novas alunas de vez em quando; algumas delas apareciam na floresta e outras eram enviadas por adultos que não podiam cuidar delas. Arden era uma garota alta que vestia um gasto vestido azul, uma menina de oito anos que havia entrado pela porta lateral do colégio três anos depois que eu. Ficou um mês na sala de quarentena, só, igual a todas nós quando chegamos. Pip e eu a havíamos observado pela pequena janela de vidro da porta, enquanto escovava os dentes; cuspia a espuma branca na lata de lixo, mas não sabíamos se seria diferente de nós. Era um jogo habitual entre as alunas: todas parávamos em frente esta sala  quando passávamos pelo corredor, olhando para ver se apareciam os reveladores hematomas azuis em baixo da pele, ou esperando que o branco do olho adquirisse um tom amarelado como consequência do muco. Mas nunca ocorreu nada semelhante.   Arden dava voltas na cama e se queixava com uma profunda voz gutural que me aterrorizava. Lembrava-me a minha mãe ao final de sua vida, cujos sintomas repassei mentalmente na escura e fria sala. Arden tinha perdido peso, ainda que não de forma exagerada; não sofria hemorragias nasais, nem tinham inchado suas pernas, nem tinha bolhas de pus, coisa que haveria formado poças em torno de seus pés. Sem dificuldade, tinha umas tosses espantosas, os calafrios a estremeciam, pós os olhos em branco...

  Apertei-lhe a gélida mão, desejando que melhorasse, acordada e mais viva que nunca, que me dissesse que não  rondasse ao seu redor e que me espantasse com um gesto. Mas nada. Somente outro estremecimento nas pernas, outro gemido.

Pronunciei as palavras que não havia dito a minha mãe, as que me queimava a garganta aquele dia de julho em que os caminhões cruzaram  a barricada, as que desde então se havia deixado aqui, junto ao meu coração, convertidas em um grande quadro.

  Minha memória regressou a época de meus cinco anos, quando descia a escada sem fazer barulho: minha mãe tinha deixado de esperar que os médicos a visitassem depois de escutar nas noticias que só atendiam os ricos. Aquele dia abriu a porta de seu quarto e eu corri abraça-la, mas me tampou a boca com um lástico e me arrastou até a rua, gritando com a voz afogada, pedindo aos caminhões que parassem.  Agarrei à caixa de correio quando ela voltou correndo para a casa, sem beijar-me sequer por medo do contagio. Tentei agarrar-me ao poste de madeira, mas me soltaram dele e me colocaram na parte de trás do caminhão; caí indefesa entre os fortes braços da mulher que me segurava.

  —Por favor, não me deixe  —  pedi a Arden com os olhos fechados, balançando com o som da minha própria voz. Lhe apertei a mão outra vez e a coloquei de boca pra cima—Preciso de você.

  Como não se moveu, afundei a cabeça na almofada e me rendi às lagrimas. Talvez nunca mais se recuperasse e talvez nunca regressássemos juntas a estrada que conduzia à Califia.

  Horas depois uma luz cegante me acordou.

  Havia alguém na porta do quarto, apontando o meu rosto com uma lanterna. A silhueta se moveu e a luz iluminou o chão. Esfreguei os olhos, tratando de identificar a minúscula figura que tinha em frente: apenas me chegava a cintura, os cabelos lhe caiam sobre os ombros, e um amplo e vaporoso tutu lhe rodeava a cintura.

  Pisquei na escuridão, mas a pessoinha continuava ali, era real, em vez de ser fantasmagórico resto de um sonho.

  —Como se chama?  —perguntei a menina, enquanto minha vista se adaptava a escuridão. Ele retrocedeu— Venha, se aproxime. —Fiz um gesto com o braço para anima-la, mas antes que pudesse adicionar nada, saiu correndo pelo corredor em penumbra.

  Levantei na cama, totalmente acordada. Não sabia como havia entrado a pequena naquele acampamento masculino, mas compreendi que tinha que segui-la. Fui correndo ao corredor: ela se distanciava pelo túnel, apenas visível entre as luzes das lanternas.

  —Espera! —gritei — Volte!

  Desapareceu atrás de uma brusca curva.

  Contemplei o corredor vazio: o túnel corria entre curvas e as percorri, procurando através dos ocos negros dos lados, nos  que dormiam os garotos. A menina continuava correndo na minha frente. Em um dado momento, o túnel se dividiu, e ela virou por um caminho escuro. Fui atrás da pequena, acelerando o passo.

  —Não vou te fazer mal — sussurrei, urgente—Pare, por favor!

  Eu andava com rapidez e facilidade, mais rápida que nunca. Me sentia bem estar de pé, mover-me; a cada metro que corria, minha mente se acalmava, e não ouvia mais o som da minha própria respiração. Não tardei muito em ver a difusa silhueta diante de mim. Então me encontrei ante uma nova curva do túnel, que desembocou no exterior embaixo de um céu cheio de estrelas.

  A menina correu entre as árvores, gritando como se si tratasse de um divertido jogo. Fui atrás dela até que chegou à outra encosta da colina e se meteu em um vasto terreno de elevados arbustos. Inclinei para respirar, quase vencida pelo esforço. Quando me levantei, me dei conta de que a menina tinha desaparecido. Me encontrava só na escuridão e fora do refugio.

  Não devia continuar; seria uma loucura vagar pelo bosque, procurando à pequena pelas colinas. Se pudesse retornar ao túnel, contaria a Caleb que aquela criatura havia escapado e estava só. Mas quando dei a volta, não vi mais que sombras. Caminhei para as arvores, mas a floresta era demasiada densa. As folhas sussurravam embaixo dos meus pés e os galhos rangiam sobre minha cabeça. Quando cheguei ao lugar que achei que estava a saída, não encontrei a colina, mas uma costa rochosa que descia até o lago.

  Girei e corri para o outro lado do bosque, quase sem respiração, lembrando-me de quando estava junto ao rio, molhada da chuva e os soldados que me caçavam com as armas na mão, e de quando vi Caleb de costa diante de mim, meu rosto no anuncio, as palavras que Arden tinha pronunciado: Pertence ao rei. Como podia ter sido tão estúpida e ter abandonado o refugio e saído em plena noite, enquanto os soldados continuavam me procurando? Haviam me advertido.

   Diante de mim se elevava um muro rochoso de uns três metros de altura.

Comecei a correr tão depressa para ali, que estava a ponto de chorar contra ele.

Devia encontrar-me atrás da montanha, mas a escuridão não permitia comprova-lo.

Caminhei junto ao muro na esperança de rodear o montinho cheio de grama que ocultava a entrada do refugio quando ouvi um ruído atrás de mim. Não tive tempo de virar-me nem de correr. Em um instante uma mão me pegou o braço.

  —Que diabo faz aqui? —perguntou Leif, sacudindo-me. A difusa luz das estrelas apenas permitia ver rosto tenso. Tentei soltar-me, mas me segurou com mais força—.Te disse para não sair do refugio.

—Já sei — murmurei, atormentada pela dor que sentia no pulso—Sinto muito. —Não me atrevi a adicionar nada mais. Nem sequer me atrevia a respirar.

  —Quem te disse que podia sair? —me agarrou. Seu lábio superior esboçava uma careta de desgosto, deixando descoberto um dente quebrado—Por acaso foi o Caleb?

  —Não, não... Saí atrás de uma menina, que começou a correr e desapareceu por aqui, mas não...

  —Uma menina? —Leif riu, ainda que o riso soasse mais bem um escarnio—No acampamento não tem meninas.

  —Esta me machucando — disse, mas ele não soltou meu delicado pulso. Me arrastou para frente; seus energéticos passos ressonavam no caminho.

  —Cometeu uma estupidez saindo. Por isso estou de guarda. Durante a noite somos mais vulneráveis..., acima de tudo tem vocês.

  —Eu sei — afirmei, cansada do assunto. Enquanto puxava e para a encosta oposta da colina, senti como se me paralisava a circulação do sangue na mão devido a preção que exercia com os dedos.

  Por fim me soltou. Apalpou a lateral de um montículo coberto de grama, e me revirou o estomago ao pensar no que podia fazer-me. Mas retirou um pedaço de madeira, revelando outra entrada ao refugio.

  —Esta noite eu vi os soldados — disse com calma, para que me inteirassebem das palavras—. Fazia meses que não apareciam por aqui. E, de repente, estão aqui, percorrendo aquela saída —Mostrou uma montanha atrás das árvores.

  Esperou que eu dissesse algo, talvez que raciocinasse e me desculpasse; e ainda que o tentei, não consegui pronunciar a palavra.

  —Vamos, entra—rosnou— Não queremos que aconteça nada a nossa querida Eve, verdade?—Seus olhos eram frios pedaços de mármore negro afundados nas bacias.

   —Não — respondi desviando seu olhar— Claro que não. —Me meti no túnel, encantada de livrar-me dele.

  —Seu quarto é o terceiro à direita — indicou. Em seguida a pedra coberta de musgo se fechou na minha costa e me trancou de novo no estreito corredor.

  Quando cheguei à caverna, me aliviou ver o resplendor do familiar rosto de Arden a tênue luz da lanterna. Ainda assim me estremeci; tremia e notei o coração a ponto de arrebentar. Leif havia indicado onde estava meu quarto muito rápido.

Rápido demais.

Mantendo a costa colada na fria parede, ouvi ecos no túnel e temi que aqueles olhos negros, parecidos com duas gotas brilhantes, aparecessem e me pegasse quando menos o esperasse.

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