13

  Nunca tinha visto uma noite tão escura, iluminada unicamente pelos raios que de vez em quando cortavam a escuridão do céu. Levamos duas horas no trajeto. Abracei Arden com os braços, agradecida pelo espaço que me separava de Caleb.

Enquanto  avançava por uma estrada coberta de mato, permaneci em silêncio, repassando todas as formas pelas quais o garoto poderia nos matar ou nos obrigar a fazer coisas erradas. Entre todas as mentiras que as professoras havia nos contado, havia algo de verdade. Depois de ver como os bandidos esfolaram o animal vivo, compreendi que os homens eram tão violentos e cruéis como nos haviam dito.

Lembrei—me da inocente Ana Karenina, oprimida por seu marido Alexei e logo seduzida por seu amante Vronsky. Demonstrando sua pena, a professora Agnes nos havia lido a cena do suicídio da protagonista. ―Quem dera Ana soubesse vocês sabem! — dizia – Quem dera!

  Não me deixaria enganar. E quando chegássemos ao acampamento de Caleb, comeríamos e esperaríamos a tempestade amainar. Não tinha a intenção dedormir, e sim permaneceria acordada e alerta, encostada contra uma parede. E pela manhã, quando o céu recuperasse sua perfeita cor azul, nós marcharíamos.

Ardem e eu, sozinhas.

  — Como e que conhece nosso colégio? — Perguntou minha companheira, que apenas havia falado para perguntar a Caleb detalhes sobre o caminho que havíamos tomado.   Afastei meu rosto das costas de Arden, sentindo um repentino interesse pela conversa.

  — Sei mais coisas do que gostaria sobre os colégios, — Caleb mantinha os olhos fixos nos caminho – Ele também era órfão.

   — Então também existem colégios para garotos – concluiu Arden—. Eu sabia. Onde?

  — A cento cinquenta quilômetros ao norte. Mas não colégios, são mais campos de trabalhos. Sei as coisas que viram em seu colégio: as atrocidades que se acometem e a utilização das garotas como bestas de cria. Mas asseguro...  – Fez silêncio por um momento. Logo falou lentamente e com profundidade, como se conhecesse aqueles segredos há muito tempo – Garanto que os garotos também têm sofrido, talvez até mais.

  Duvidei de suas palavras. Sempre eram a mulheres as que sofriam nasmãos  dos homens: eles iniciavam as guerras, eles haviam contaminado o meio ambiente e o mar com fumaça e petróleo, haviam arruinado a economia  e superpovoado o antigo sistema carcerário. Mas Arden me beliscou o braço com tanta força que soltei um gemido.

   — Tem que desculpa—la – explicou — Era a sabichona do colégio.

Caleb fez um gesto afirmativo, como se aquilo revelasse uma grande verdade sobre mim. Logo em seguida, se inclinou para frente e incitou o cavalo para que acelerasse o passo. Subimos a galope uma grande ladeira, cujo topo estava a uns quinhentos metros. As árvores estendiam seus galhos pelo terreno cheio de mato, criando sombras ameaçadoras, e chovia cada vez mais; as gotas caiam como pedrinhas, golpeando minha pele.

  — Oh não – Caleb freou o cavalo no meio do barro. Segui seu olhar: havia um 4x4 do governo a menos de cem metros de nós. Apesar da chuva, distingui os faróis traseiros vermelhos.

   O garoto tentou que o cavalo desse a volta, mas era muito tarde. Um raio de iluminou a riscou a escuridão e iluminou nossos rostos.

   — Estão presos! Por ordem do rei de Nova América! – gritou uma voz pelo megafone.

   — Vamos! — Pressionou Arden – Já!

   Caleb fez o cavalo girar e voltamos pelo caminho pelo qual havíamos subido. Eu não podia deixar de olhar para traz. O 4x4 também estava fazendo a volta e, ao fazê—lo, seus pneus salpicavam no barro. Estavam nos perseguindo, e os olhos destemidos dos faróis dianteiros iluminavam nossas costas.

  — Parem em nome do rei ou usaremos a força!   Não, não; não pode estar certo, disse para mim mesmo agarrando—me as costas escorregadias de Arden.

   Talvez fosse pelo aguaceiro, pelo barro ou o peso da terceira pessoa, mas o cavalo ia mais lento do que antes. O 4x4 ia se aproximando.

   —Não podemos seguir por este caminho – disse Caleb – Irão nos alcançar. – Apontou para um bosque denso, e o cavalo galopou em sua direção – Obediente!

  Me agarrei a Arden  desesperadamente. O cavalo se afastou do caminho, e em questão de segundo estávamos no meio do denso bosque. Os grossos galhos das árvores açoitavam meus braços e costas.

  — Abaixa a cabeça! – Ordenou Caleb.

As luzes do 4x4 desapareceram atrás de nós. O veículo havia parado no caminho.

  — Não falta muito para chegar – comentou Caleb, enquanto pulávamos por causa dos desníveis do terreno. Não sabia para onde íamos, mas confiávamos que chegaríamos logo.

   O cavalo serpenteava entre as árvores, até que por fim parou diante de um rio de uns nove metros de largura. Caleb desmontou e ajudou a mim e Arden a desmontar. Deu uma palmada na garupa do animal, e este saiu correndo. Durante alguns momentos o bosque ficou em silêncio.

  Olhei para  traz:  os faróis dianteiros do veículo iluminavam a  enevoada noite; nos homens haviam fechado os portos.

  — Por aqui! – gritou um deles.

  — Por que te perseguem? — Perguntou Caleb.

 Ele nos levou até um penhasco junto à margem do rio, e nos abaixamos.

   — Não perseguem a mim — respondeu, e eu olhei confusa—.  Perseguem você. – Retirou um pedaço de papel do bolso da calça.

   Arden arrancou o papel de suas mãos. Se tratava de uma fotografia embranco e preto de uma menina de compridos cabelos castanhos e lábios generosos em forma  de coração. O papel dizia: Eve. 1,70 metros. Olhos azuis e cabelo castanho. Procura—se, viva. Se a virem, avisem o destacamento do noroeste. Arden o manteve nas mãos, até uma grande gota de chuva borrou meu nome.

  Caleb pôs a cabeça sobre o penhasco; o carro dava voltas lentamente.

  — O encontrei esta manhã na estrada.

  Arranquei o papel das mãos de Arden e contemplei meu próprio rosto. Era minha fotografia da formatura, a única que haviam feito no colégio. No mês anterior uma funcionária do governo se apresentou e escolheu trinta garotas e fotografou uma a uma. Na foto estava diante do lago, e ao fundo se via o edifício sem janelas.

  — E por que me perseguem? Arden também havia fugido.

   Caleb abaixou o olhar; seus cabelos castanhos ocultavam parte de seu rosto.

  — Que? – perguntou Arden— O que ocorre?

O garoto secou a chuva que molhava seu rosto, e explicou:

   — É uma notícia da Cidade de Areia... A princípio  acreditávamos que se tratava de um rumor. – Seus olhos buscaram lentamente os meus— O rei quer um herdeiro.

  Arden negou com a cabeça enquanto olhava para a fotografia.

  — Oh, não...! — Murmurou.

  — O que está acontecendo? Perguntei, o pânico tomando conta de mim.

   Arden voltou seus olhos para o caminho, onde várias lanternas iluminavam as árvores.

    ―- Eve se mostrou uma das melhores e mais brilhantes alunas que já tivemos no colégio. E ainda, é bonita, muito inteligente e muito disciplinada” – As palavras da diretora Burns soaram diferentes nos lábios de Arden. Quase sinistras—. Isso é que havia conseguido pela medalha de aplicação, Eve. Não ia acabar naquele edifício. Pertence ao rei.

Náuseas me reviraram o estomago.

  — O que quer dizer com... Pertencer?

  — Que lhe darias seus filhos, Eve-respondeu, quase rindo.

  Havia retratos do rei nos salões do colégio. Era velho, de têmporas grisalhas, lábios finos e secos, as rugas marcavam seu rosto. Recordei que Maxine havia falado de uma suposta visita do monarca no dia da formatura. Logo me pareceu possível que viesse... Por mim.

   — Claro que os teria. E um espécimen perfeito. Tendo em conta sua educação e todos os elogios das professoras... — continuou Arden, e apertando as têmporas com os dedos.

  Amacei o papel. Não conseguia respirar e o peito me doía. Não quero dar a luz aos filhos de ninguém, e ainda menos dos do rei. Mas ao que parece  que já haviam decido por mim.

  Caleb sentou—se junto ao penhasco sem desviar a vista de nossos perseguidores, que abriam caminho entre as árvores, fazendo grande barulho enquanto esmagavam a vegetação.

  — Não estamos seguros – Disse o garoto enquanto olhava o rio as suas costas – Vamos... Agora.  – Como uma expiração correu até a margem do rio e mergulhou em suas águas agitadas, enquanto a chuva batia em suas costas nuas.

Arden o seguiu de perto e eu demorei um momento para compreender:

queria que cruzássemos o ria a nado.

Me abaixei na margem do rio, imóvel, enquanto Arden mergulha sem nenhuma dificuldade. Atrás de mim as lanternas esquadrinhavam os grossos troncos. As vozes dos soldados estavam cada vez mais próximas.

  —Vamos!  — Ordenou Caleb. Parou, com a altura do peito, para deixar espaço para Arden, que continuou nadando e voltando a superfície para respirar.

   Ele voltou à margem para me buscar.

   — Rápido – Me animou, segurando pelo braço.

   As corredeiras se moviam depressa, mas Arden avançava rio abaixo, arrastada pela corrente.

   — Não sei nadar – confessei, e afastei meu cabelo molhado do rosto.  Minha expressão mudou quando minha companheira chegou à outra margem; estava bem, com a roupa e a mochila encharcadas, mas a salvo— Não me atrevo – acrescentei com a voz hesitante. Os soldados se aproximavam cada vem mais, focando suas lanternas no rio —. Vá – consegui dizer, ainda que não pudesse reprimir as lágrimas; estava perdida. Empurrei Caleb —. Vá.

  Mas ele não se moveu. Voltou seus olhos para as sombras no bosque, após me olhou e segurou minha mão.

   — Não tem problema, Eve – afirmou.

Parei de chorar, surpresa com o calor de sua pele sobre a minha. Estava tão próximo que sentia sua leve respiração. Seus olhos brilharam, iluminados pelo brilho repentino de uma lanterna.

   —Não penso em te abandonar.

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adri

adri

gostando da estória

2023-08-04

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