12

  Passamos muito tempo em silêncio. Quando por fim deixamos o perigo para traz, recuei  na garupa do cavalo, me afastando o máximo possível do garoto. Pertencia a uma espécie  estranha, meio selvagem. Não era um tipo sofisticado como os que povoavam as páginas  de O Grande Gastby. Também não se parecia com  os homens  violentos que havia visto em meu primeiro dia de liberdade. Ao menos havia  me  salvado a vida, ainda que acreditasse que  por motivos inconfessáveis.

  Vestia calças manchadas e rasgadas em seus tornozelos, os  cabelos, trançado em  dreadlocks,  chegavam até os ombros. Diferentemente dos bandidos, não usava uma pistola, o que não me consolava muito, pois era tão forte e musculoso quanto eles. Eu não sabia que pensamentos ruins nutriam comigo, uma garota que havia encontrado sozinha na floresta,  assim comecei a descolar a camiseta de meus seios.

  — Não sei o que pensa em fazer, mas não fará  – disse, empertigando—me para parecer mais alta. Pelo  canto  do  olho vi três coelhos mortos pendurados no  pescoço do cavalo; tinham as patas amarradas com cordas.   Ele voltou—se

para me olhar e sorriu. Apesar de sua higiene deficiente, tinha os dentes retos e brancos.

  — E o que penso em fazer? A verdade é que ficaria muito contente em saber.

  Trotamos por uma estrada, cujos corrimões mal se viam por baixo do mato. A distância se via uma ponte meio destruída.

  — Estou certa que quer ter relações sexuais comigo – respondi com toda naturalidade.

  O garoto riu, dando uma gargalhada grave  e retumbante, enquanto dava algumas palmadas no pescoço do cavalo.

  —Quero ter relações sexuais com você? — Repetiu, como se não tivesse ouvido bem.

  — É claro – afirmei em voz alta – E fique logo sabendo, não permitirei. Nem que... — Busquei a metáfora adequada.

... Fosse o último homem sobre a face da terra? — Olhou para a vasta paisagem desolada e esboçou um sorrido maldoso.  Seus olhos eram da cor uva verde.

   — Isto mesmo – confirmei. Fiquei satisfeita que falasse pouco e soubesse utilizar as palavras. Não teríamos tantos problemas para nos comunicar como havia imaginado.

  — Fico contente – respondeu—. Porque não tenho a mínima intenção de encostar em você. Não faz meu tipo.

Ri, até que me dei conta que o garoto não estava brincando. Mantinha o olhar fixo no horizonte a frente enquanto guiava o cavalo para fora da estrada e o conduzia até uma rua coberta de musgo, encorajando—o para que não tropeçasse nos buracos da calçada.

  — O que quer dizer com isto de que não sou tipo? — Quis saber.

  A epidemia havia matado muito mais mulheres do que homens. Eu era uma das poucas mulheres que existiam em Nova América, uma garota culta e de boa  aparência e por isto sempre soube que seria o tipo para qualquer homem.

  O garoto me deu uma olhada e encolheu os ombros.

  —Psss! – murmurou.

  Como que psss. Uma garota tão inteligente e trabalhadora como eu. Me haviam dito que era bonita. Eve era a mais inteligente do colégio! Não lhe ocorria dizer algo mais que ―psss?

  Percebi um ligeiro movimento de ombros e me esforcei para olhar seu rosto, percebi, pela primeira vez, que estava mexendo comigo: enganada.

  — Se acha muito bonito, não é verdade? — Provoquei, desviando o rosto, para não visse que estava vermelha.

Puxou as rédeas e dirigiu o cavalo para a ponte em direção do sol poente. Com já era o entardecer, o céu adquiriu uma tonalidade azulada dos hematomas; havia nuvens carregadas e ao longe se ouvia o estrondo de uma tempestade.

— Será melhor que leve de volta onde me encontrou. Meu gigantesco amigo está me esperando. Ele é perverso e... Sanguinário – Acrescentei ao final repetindo a que havia ouvido os bandidos dizerem.

  O garoto respondeu em jocoso:

  — Estou te levando pra lá.

Bom assim, já sei— afirmei olhando ao redor. Não sabia exatamente onde stávamos. Ainda não havíamos chegado ao WALL MART, e não se via a estrada por perto. À esquerda se erguiam dois postes que amarelos que assinalavam um antigo campo de futebol onde cresciam pés de milho.

— Há algo que não saiba?  —Perguntou virando—se e esboçando outro sorriso. Desviei  o olhar e fingi que não vi a covinha na bochecha direita nem o brilho nos seus olhos, como se estivesse iluminado por dentro. A professora Agnes chamava de ―ilusão da intimidade. Seria aquilo?

  Permanecemos em silêncio por um tempo, escutando a tempestade distante, até chegamos ao lugarejo onde havia visto Arden da última vez.  Reconheci um balanço quebrado que tinha a borracha do pneu queimada. Uma gata selvagem, com a barriga enorme, vagava pela rua.

O garoto parou olhando um jardim coberto de ervas e apontou para uma pequena figura, oculta atrás da folhagem.

— Este é seu ―gigantesco amigo?

  Arden saiu pouco a pouco de seu  esconderijo. Tinha os joelhos das calças molhadas e manchadas de barro, como se estivesse engatinhando pelo chão.

  Desci do cavalo, esperando que ela me interrogasse, mas estava muito absorta observando o garoto para reparar em minha presença. Ficamos os três calados um instante; somente se ouvia a refestelar do cavalo. Arden acariciou sua faca com a mão.

   O garoto fez um gesto negativo com a cabeça, e disse:

 — Também é  paranoica?  Vamos ver se acerto: acabou de abandonar o colégio? Verdade?  – Desmontou com grande agilidade. O céu trovejou, e o garoto acariciou o pescoço do cavalo para tranquiliza—lo. – Chiss, Lila – sussurrou.

— O que você sabe do colégio? – perguntou Arden.

   — Mais do que você acredita. Me chamo Caleb  –  respondeu estendendo a mão para cumprimenta—la; ela permaneceu imóvel, observando a sujeira acumulada embaixo das unhas e entre os nós dos dedos do garoto. Logo relaxou os ombros e pouco a pouco retirou a mão da faca. Meu olhar ia de um para o outro sem parar.

  Ele a havia impressionado.

  —Arden...   — sussurrei esperando que não tocasse o garoto. Ela percebeu uma tatuagem que ele tinha no ombro: um círculo com o  emblema de Nova

América— Arden, vamos preparar o jantar – Dava conta que aquela presença masculina era tão surpreendente para ela como para mim, mas não podíamos continuar ali, a escassos centímetros dele. Em perigo. Comecei a caminhar e fiz sinais para que ela me seguisse, mas ela não se moveu.

 Não consegui caçar nada – disse, e se afastou de Caleb. Deu uma olhada nos três coelhos que estavam pendurados no pescoço do cavalo. Em seguida, abriu a bolsa que levava pendurada da cintura e mostrou seu interior: estava vazia.

  As nuvens da tempestade nos cercavam. Um trovão estremeceu o ar. Deu uma topada em pedra do caminho.  Se soubesse  teria pegado  uma  das latas  que brinquei  com o filhote. Tínhamos em perspectiva outra noite gelada e chuvosa, sem nada para comer.

   Caleb montou de novo e disse:

  — Em meu acampamento existe muita comida se lhes  quiser vir.

  Ri do convite, mas minha companheira olhou para mim, para Caleb e para os coelhos.

  — Não... — murmurei entre os dentes. Peguei em um dos seus braços, para afastá—la do cavalo, mas tinha dos dois pés firmes no chão.

  — Que tipo de comida?  — Perguntou.

  — De tudo: javalis, coelhos, frutas silvestres... Há pouco tempo matei um cervo.  — Apontou para o horizonte cinza, estendendo a mão par um lugar invisível—. Está a menos de uma hora a cavalo.

  Continuei retrocedendo, passo a passo. Mas Arden, com a cabeça inclinada, tentava desfazer um nó de seus curtos cabelos negros. Quando a segurei, ficou tensa.

  — Como sabemos que é de confiança? – Perguntou Arden.

  — Não sabem – Respondeu Caleb, encolhendo os ombros – Mas nem tem nem cavalo nem comida e se aproxima uma tempestade.  Talvez valha a pena tentar.  — Minha companheira levantou os olhas para as nuvens carregadas e depois dirigiu um novo olhar para sua bolsa vazia. Após alguns instantes se solte de mim. Deu a volta no cavalo e montou atrás de Caleb.

  —Aceito sua oferta – disse acomodando—se.

  Fiz um movimento negativo com a cabeça, decidida a não me mover.

  — Que nada. Não iremos ao seu ― ―acampamento‖. – Desenhei no ar as aspas.

Tinha certeza que se tratava de um truque.

  — Está bem. Mas se estivesse em seu lugar, não gostaria de estar só e muito menos com este tempo.  – Caleb apontou para as densas nuvens de tempestade, que avançavam rápido e cresciam, ameaçando despejar agua sobre a floresta; logo fez o cavalo girar e se foi trotando. Arden me acenou um adeus com a mão, sem se incomodar em virar a cabeça.

Olhei o campo pelo qual havíamos passado: os girassóis se inclinavam, empurrados pelo vento.  Não sabia onde ficava a casa nem se estava muito longe; não sabia ascender um fogo, nem caçar e sequer tinha uma faca.

Cravei as unhas na palma de minhas mãos.

— Espera – gritei, e sai correndo atrás do cavalo – Espere—me.

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