Passamos muito tempo em silêncio. Quando por fim deixamos o perigo para traz, recuei na garupa do cavalo, me afastando o máximo possível do garoto. Pertencia a uma espécie estranha, meio selvagem. Não era um tipo sofisticado como os que povoavam as páginas de O Grande Gastby. Também não se parecia com os homens violentos que havia visto em meu primeiro dia de liberdade. Ao menos havia me salvado a vida, ainda que acreditasse que por motivos inconfessáveis.
Vestia calças manchadas e rasgadas em seus tornozelos, os cabelos, trançado em dreadlocks, chegavam até os ombros. Diferentemente dos bandidos, não usava uma pistola, o que não me consolava muito, pois era tão forte e musculoso quanto eles. Eu não sabia que pensamentos ruins nutriam comigo, uma garota que havia encontrado sozinha na floresta, assim comecei a descolar a camiseta de meus seios.
— Não sei o que pensa em fazer, mas não fará – disse, empertigando—me para parecer mais alta. Pelo canto do olho vi três coelhos mortos pendurados no pescoço do cavalo; tinham as patas amarradas com cordas. Ele voltou—se
para me olhar e sorriu. Apesar de sua higiene deficiente, tinha os dentes retos e brancos.
— E o que penso em fazer? A verdade é que ficaria muito contente em saber.
Trotamos por uma estrada, cujos corrimões mal se viam por baixo do mato. A distância se via uma ponte meio destruída.
— Estou certa que quer ter relações sexuais comigo – respondi com toda naturalidade.
O garoto riu, dando uma gargalhada grave e retumbante, enquanto dava algumas palmadas no pescoço do cavalo.
—Quero ter relações sexuais com você? — Repetiu, como se não tivesse ouvido bem.
— É claro – afirmei em voz alta – E fique logo sabendo, não permitirei. Nem que... — Busquei a metáfora adequada.
... Fosse o último homem sobre a face da terra? — Olhou para a vasta paisagem desolada e esboçou um sorrido maldoso. Seus olhos eram da cor uva verde.
— Isto mesmo – confirmei. Fiquei satisfeita que falasse pouco e soubesse utilizar as palavras. Não teríamos tantos problemas para nos comunicar como havia imaginado.
— Fico contente – respondeu—. Porque não tenho a mínima intenção de encostar em você. Não faz meu tipo.
Ri, até que me dei conta que o garoto não estava brincando. Mantinha o olhar fixo no horizonte a frente enquanto guiava o cavalo para fora da estrada e o conduzia até uma rua coberta de musgo, encorajando—o para que não tropeçasse nos buracos da calçada.
— O que quer dizer com isto de que não sou tipo? — Quis saber.
A epidemia havia matado muito mais mulheres do que homens. Eu era uma das poucas mulheres que existiam em Nova América, uma garota culta e de boa aparência e por isto sempre soube que seria o tipo para qualquer homem.
O garoto me deu uma olhada e encolheu os ombros.
—Psss! – murmurou.
Como que psss. Uma garota tão inteligente e trabalhadora como eu. Me haviam dito que era bonita. Eve era a mais inteligente do colégio! Não lhe ocorria dizer algo mais que ―psss?
Percebi um ligeiro movimento de ombros e me esforcei para olhar seu rosto, percebi, pela primeira vez, que estava mexendo comigo: enganada.
— Se acha muito bonito, não é verdade? — Provoquei, desviando o rosto, para não visse que estava vermelha.
Puxou as rédeas e dirigiu o cavalo para a ponte em direção do sol poente. Com já era o entardecer, o céu adquiriu uma tonalidade azulada dos hematomas; havia nuvens carregadas e ao longe se ouvia o estrondo de uma tempestade.
— Será melhor que leve de volta onde me encontrou. Meu gigantesco amigo está me esperando. Ele é perverso e... Sanguinário – Acrescentei ao final repetindo a que havia ouvido os bandidos dizerem.
O garoto respondeu em jocoso:
— Estou te levando pra lá.
Bom assim, já sei— afirmei olhando ao redor. Não sabia exatamente onde stávamos. Ainda não havíamos chegado ao WALL MART, e não se via a estrada por perto. À esquerda se erguiam dois postes que amarelos que assinalavam um antigo campo de futebol onde cresciam pés de milho.
— Há algo que não saiba? —Perguntou virando—se e esboçando outro sorriso. Desviei o olhar e fingi que não vi a covinha na bochecha direita nem o brilho nos seus olhos, como se estivesse iluminado por dentro. A professora Agnes chamava de ―ilusão da intimidade. Seria aquilo?
Permanecemos em silêncio por um tempo, escutando a tempestade distante, até chegamos ao lugarejo onde havia visto Arden da última vez. Reconheci um balanço quebrado que tinha a borracha do pneu queimada. Uma gata selvagem, com a barriga enorme, vagava pela rua.
O garoto parou olhando um jardim coberto de ervas e apontou para uma pequena figura, oculta atrás da folhagem.
— Este é seu ―gigantesco amigo?
Arden saiu pouco a pouco de seu esconderijo. Tinha os joelhos das calças molhadas e manchadas de barro, como se estivesse engatinhando pelo chão.
Desci do cavalo, esperando que ela me interrogasse, mas estava muito absorta observando o garoto para reparar em minha presença. Ficamos os três calados um instante; somente se ouvia a refestelar do cavalo. Arden acariciou sua faca com a mão.
O garoto fez um gesto negativo com a cabeça, e disse:
— Também é paranoica? Vamos ver se acerto: acabou de abandonar o colégio? Verdade? – Desmontou com grande agilidade. O céu trovejou, e o garoto acariciou o pescoço do cavalo para tranquiliza—lo. – Chiss, Lila – sussurrou.
— O que você sabe do colégio? – perguntou Arden.
— Mais do que você acredita. Me chamo Caleb – respondeu estendendo a mão para cumprimenta—la; ela permaneceu imóvel, observando a sujeira acumulada embaixo das unhas e entre os nós dos dedos do garoto. Logo relaxou os ombros e pouco a pouco retirou a mão da faca. Meu olhar ia de um para o outro sem parar.
Ele a havia impressionado.
—Arden... — sussurrei esperando que não tocasse o garoto. Ela percebeu uma tatuagem que ele tinha no ombro: um círculo com o emblema de Nova
América— Arden, vamos preparar o jantar – Dava conta que aquela presença masculina era tão surpreendente para ela como para mim, mas não podíamos continuar ali, a escassos centímetros dele. Em perigo. Comecei a caminhar e fiz sinais para que ela me seguisse, mas ela não se moveu.
Não consegui caçar nada – disse, e se afastou de Caleb. Deu uma olhada nos três coelhos que estavam pendurados no pescoço do cavalo. Em seguida, abriu a bolsa que levava pendurada da cintura e mostrou seu interior: estava vazia.
As nuvens da tempestade nos cercavam. Um trovão estremeceu o ar. Deu uma topada em pedra do caminho. Se soubesse teria pegado uma das latas que brinquei com o filhote. Tínhamos em perspectiva outra noite gelada e chuvosa, sem nada para comer.
Caleb montou de novo e disse:
— Em meu acampamento existe muita comida se lhes quiser vir.
Ri do convite, mas minha companheira olhou para mim, para Caleb e para os coelhos.
— Não... — murmurei entre os dentes. Peguei em um dos seus braços, para afastá—la do cavalo, mas tinha dos dois pés firmes no chão.
— Que tipo de comida? — Perguntou.
— De tudo: javalis, coelhos, frutas silvestres... Há pouco tempo matei um cervo. — Apontou para o horizonte cinza, estendendo a mão par um lugar invisível—. Está a menos de uma hora a cavalo.
Continuei retrocedendo, passo a passo. Mas Arden, com a cabeça inclinada, tentava desfazer um nó de seus curtos cabelos negros. Quando a segurei, ficou tensa.
— Como sabemos que é de confiança? – Perguntou Arden.
— Não sabem – Respondeu Caleb, encolhendo os ombros – Mas nem tem nem cavalo nem comida e se aproxima uma tempestade. Talvez valha a pena tentar. — Minha companheira levantou os olhas para as nuvens carregadas e depois dirigiu um novo olhar para sua bolsa vazia. Após alguns instantes se solte de mim. Deu a volta no cavalo e montou atrás de Caleb.
—Aceito sua oferta – disse acomodando—se.
Fiz um movimento negativo com a cabeça, decidida a não me mover.
— Que nada. Não iremos ao seu ― ―acampamento‖. – Desenhei no ar as aspas.
Tinha certeza que se tratava de um truque.
— Está bem. Mas se estivesse em seu lugar, não gostaria de estar só e muito menos com este tempo. – Caleb apontou para as densas nuvens de tempestade, que avançavam rápido e cresciam, ameaçando despejar agua sobre a floresta; logo fez o cavalo girar e se foi trotando. Arden me acenou um adeus com a mão, sem se incomodar em virar a cabeça.
Olhei o campo pelo qual havíamos passado: os girassóis se inclinavam, empurrados pelo vento. Não sabia onde ficava a casa nem se estava muito longe; não sabia ascender um fogo, nem caçar e sequer tinha uma faca.
Cravei as unhas na palma de minhas mãos.
— Espera – gritei, e sai correndo atrás do cavalo – Espere—me.
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