03

Depois de pentearmos os cabelos e escovarmos os dentes, lavamos o rosto e vestimos camisolas brancas que chegavam até os tornozelos, me recostei, me fingindo muito cansada. Nos dormitórios não se falava em outra coisa que não o desaparecimento de Arden. As meninas enfiavam as cabeças nos quartos para divulgar a última fofoca: havia aparecido um broche entre os arbustos, e a diretora estava interrogando uma guarda no portão. Em meio a todo aquele imbróglio, desejava uma das coisas mais difíceis de conseguir no colégio, algo tão raro que nem sequer se podia falar:  queria estar só.

- Noelle acredita que Arden se escondeu nos aposentos da Doutora – comentou Ruby a Pip\, controlando as cartas que tinha em suas mãos. – Passo. – Haviam se sentado na estreita cama gêmea de Pip\, e jogavam com um baralho que haviam pego na biblioteca do colégio. As velhas cartas de ―a procura de nemo‖ estavam gastas e rasgadas\, algumas inclusive\, manchadas com suco de figos secos.

- Estou certa de quer escapar da cerimônia – acrescentou Pip\, cujo rosto sardento esta salpicado de pontinhos de pasta de dente\, o que ela denominava seu ―removedor de sardas milagroso‖. Me olhou\, esperando que especulasse sobre o paradeiro de nossa companheira ou que comentasse algo sobre os grupos de guardas que revistavam o terreno iluminando-o com lanternas. No entanto\, não disse uma palavra.

Não parava de pensar no  que Arden havia me contado. Era certo que nos últimos meses a diretora Burns havia se mostrado muito preocupada com nossa dieta, insistindo que devíamos comer bem; supervisionava nossas análises de sangue e pesagens semanais e procurava que todas tomássemos nossas vitaminas. Inclusive enviou Ruby a Doutora Hertz quando teve uma regra uma semana depois das outras meninas.

Me cobri com uma manta leve até o pescoço. Desde de pequena me haviam dito que existia um plano para mim, um plano para todas nós: doze anos no colégio, e depois, a mudança de prédio e a aprendizagem de uma profissão durante quatro anos: depois iriamos para a Cidade de Areia, onde nos esperavam a vida e a liberdade, e ali trabalharíamos e viveríamos, sob o governo do rei. Sempre ouvia isto das professoras; não havia motivos para não fazê-lo. Inclusive aquela teoria de Arden me parecia absurda. Por que nos ensinavam a temer os homens se íamos ter filhos e famílias? Por que nos educavam se estávamos destinadas somente a parir? Que significava a importância que davam a nossos estudos, o ou muito que nos estimulavam para perseverássemos.

- Oi\, Eve\, Ouviu o que te disse? – Pip interrompeu meus pensamentos. Ela e Ruby estavam me olhando.

- Não...\, o que?

Ruby pegou as cartas; seu cabelo negro abundante ainda era irregular onde Arden o havia cortado.

- Queremos uma prévia de seu discurso antes de deitarmos.

Deu-me um nó na garganta ao pensar em meu discurso final: três páginas escritas a mão e dobradas na gaveta de minha mesa.

- Se espera que seja uma surpresa -  respondi após alguns instantes. Havia escrito um texto sobre o poder da imaginação na construção de Nova América. Mas naquele momento pareceu-me duvidosas as palavras que havia escolhido e o futuro que havia descrito.

Ruby e Pip me observavam com firmeza , mas desviei a vista, incapaz de sustentar seus olhares. Não podia contar-lhes o que Ardem havia dito : que a liberdade da graduação não era mais eu fantasia, algo para nos manter tranquilas e contentes.

- Está bem\, seja como quiser – Pip apagou a vela de sua mesa.  Pisquei para adaptar os olhos para a escuridão\, e pouco a pouco distingui seu rosto redondo sob os raios de luar que se filtravam pela janela - Mas somos tuas melhores amigas.

Após alguns minutos se ouviram os tênues roncos de Ruby; sempre primeira a dormir. Pip olhava para teto com as mãos sobre o peito.

- Mal posso esperar para me formar – sussurrou – Vamos aprender coisas\, coisas de verdade. E dentro de alguns anos sairemos para o mundo\, iremos para a nova cidade que está longe dos bosques. Será incrível\, Eve. Seremos como ...como pessoas de verdade. – Se voltou para mim\, e esperei que a tênue luz não lhe permitisse ver as lágrimas que enchiam meus olhos.

Me perguntei que vida teríamos eu e Pip. Ela queria ser arquiteta, como Frank Lloyd Wright, e construir casas novas que não se deteriorassem, ainda que ninguém cuidasse delas, casas com refúgios cheios de comida enlatada, onde não se poderia introduzir o menor vírus mortal. Eu lhe dizia que , quando terminássemos nossas carreiras, viveríamos juntas na Cidade de Areia; teríamos um quarto com camas enormes e janelas de onde veríamos os confins da Cidade, onde viviam os homens, muito distante de nós, aprenderíamos a esquiar nas encostas íngremes cobertas de neve, que nos havia falado a professora Etta, e poríamos em prática nossa boa educação nos restaurantes com imaculadas toalhas de mesa e talheres de prata; neles, escolheríamos a comida no menu e pediríamos para que preparassem a carne como  mais no agradasse.

- Eu sei. - Me veio um nó na garganta -. Será genial.

Sequei meus olhos disfarçadamente, agradecendo que a respiração de Pip por fim se acalmasse. Mas me assaltou a culpa e o medo, cada vez maior, de que o dia seguinte talvez não estivesse pronunciando um ingênuo e genial discurso, sim conduzindo-as ao aniquilação.

Mais populares

Comments

adri

adri

estória de conto fantasia estou gostando

2023-08-03

0

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!