Esperei que o sono me vencesse, mas este nunca chegava. As três horas da madrugada não pude mais ficar deitada. Me levantei, me aproximei da janela e contemplei o lugar. Não havia ninguém, somente uma guarda identificável por suas leves passadas, que percorria o jardim fazendo sua ronda.
Nosso quarto se achava no primeiro andar. Quando perdi a guarda de vista, abri a janela como fazia nas noites quentes, e subi no peitoril. Todos os anos fazíamos na escola simulações: o que fazer em caso de assalto, em terremoto, em uma chuva de cachorros, em um incêndio... Lembrei dos simples e fáceis gráficos que a diretora Burns havia distribuído ao final da aula, e deslizei pela janela, agarrada ao peitoril, me preparando para saltar.
Assim o fiz e me atirei ao solo. A dor me alfinetou o tornozelo, mas me levantei e corri o mais rápido que pude até o lago. No outro extremo da agua resplandecente, o edifício de tijolos contra o céu escuro.
Ao final, cheguei à praia, mas a coragem me abandonou quando as suaves ondas lamberam os dedos dos pés. Nunca havíamos aprendido a nadar. As professoras contavam histórias, de uma época anterior a epidemia, de gente que havia se afogado nas ondas do mar ou na enganosa calma de suas piscinas.
Voltei meus olhos para a janela aberta de meu quarto. Faltava pouco para que a guarda dobrasse a esquina e me surpreendesse com a luz da lanterna. Já me havia encontrado antes entre os arbustos depois do desaparecimento de Arden, com o uniforme manchado de vomito; havia lhe dito que estava muito nervosa por causa da formatura, mas não podia lhe dar mais motivos para suspeita.
Entrei na agua. Na praia estreita existiam uns arbustos espinhentos. Tirei as meias e as envolvi nas mãos para agarrar-me aos galhos pontiagudos. Avancei rapidamente até que a agua chegou ao meu pescoço, havia caminhado apenas cinco metros quando o solo macio cedeu sob os meus pés. A agua chegou à minha boca, e me agarrei nos galhos, cujos espinhos perfuraram a pele por baixo das meias. Não pude reprimir a tosse.
A guarda se deteve no jardim e varreu o gramado e a superfície do lago com a lanterna. Parei de respirar, sentindo meus pulmões alfinetados de dor. Ao final o facho de branco voltou ao gramado, e a mulher desapareceu mais uma vez para dar outra volta no prédio.
Continuei minha jornada por quase uma hora. Me custava muito avançar, parava cada vez que passava uma guarda procurando não fazer barulho. Quando por fim cheguei à praia oposta sentei sem jeito na grama enlameada. As meias que envolviam minhas mãos estavam encharcadas de sangue, a camisola molhada e o frio se apegava ao meu corpo; tirei-a e me sentei sob o monstruoso edifício enquanto a torcia.
Naquela parte do prédio não havia nada, exceto a grande ponte de madeira que cruzava o jardim, preparada para a cerimônia do dia seguinte. A diferença do colégio, ali não se viam flores ao redor do edifício de tijolos. Nos haviam dito que as graduadas estavam muito atarefadas para sair dali, que suas agendas eram mais rigorosas que a do colégio, e que o tempo que não passavam comendo, dormindo o em aula, o dedicavam a aprimorar seus conhecimentos. As Alunas do segundo ano costumavam reclamar, preocupadas com a falta de sol, mas uma atividade tão intensa sempre me havia parecido muito gratificante.
A grama alta me cercava, mas não bastava para me encobrir, de modo que vesti novamente a camisola húmida pela cabeça e comecei a correr até um canto do edifício. Descobri que existiam janelas, a um metro e meio do chão, menos na parte que ficava voltada para o colégio.
Eu estava cheia de esperança, uma sensação de leveza que facilitava meus movimentos. Então encontrei uma torneira enferrujada junto à parede, debaixo da qual havia um balde; eu o virei e, utilizando como um banco, subi para ter uma melhor visão. Ali dentro estava meu futuro, e quando alcançasse o peitoril da janela queria que fosse como imaginado, e não aquilo que tinha ouvido de Arden. Rezei para ver uma série de meninas que se encontrassem em um quarto em cujas paredes tinham pendurado pinturas a óleo de cães selvagens correndo pelo campo. Rezei para houvessem mesas de desenho cobertas de plantas e montes de livros nas mesas. Rezei para que tivesse me enganado, pqra graduar-me no dia seguinte e para que o futuro sonhado se revelasse ante mim como um dondiego (nota: flor peruana que se abre ao receber a luz solar) ao sol ...
Apoiei as mãos no peitoril para ver melhor e juntei colei meu nariz na janela. No quarto, havia, em uma cama estreita, uma menina: uma gaze ensanguentada cobria seu abdômen, tinha o cabelo emaranhados e os braços amarrados com correias de couro.
Perto dela havia outra menina, cujo enorme ventre sobressaia quase um metro enquanto que veias de cor roxa sulcavam sua pele, extraordinariamente fina,. A garota abriu os olhos de cor verde escuro e me olhou um instante; logo os fechou. Era Sofia, a aluna que tinha pronunciado o discurso de final de curso fazia três anos e queria ser médica.
Tapei a boca para reprimir um grito.
Havia filas de catres onde repousavam outras jovens que, em sua maioria, se notava um ventre imenso por baixo da roupa de cama. Várias delas tinham a cintura enfaixada, e em uma menina se percebia cicatrizes – inchadas e rosadas - que serpenteavam pelo lado do corpo. Ao fundo da sala, outra menina gritava de dor enquanto tentava soltar seus pulsos; abria a boca e gritava algo que não consegui ouvir de onde estava.
Nesse momento entraram as enfermeiras pelas portas que se alinhavam ao longo do quarto, semelhante a uma fábrica. Atrás dela apareceu também a Dra. Hertz, cujo cabelo branco desgrenhado era inconfundível. Era ela que nos receitava as vitaminas que devíamos tomar diariamente e nos fazia exames mensais; a que nos deitava em uma mesa e nos picava com instrumentos frios, sem jamais responder nossas perguntas ou nos olhar no rosto.
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