16

  —Ontem a noite estava encharcado-expliquei a Caleb quando chegamos à floresta que rodeava seu acampamento. As tosses Arden se tornaram mais violentas à medida que avançávamos, e seu passo ficou mais cansado, até que parou de caminhar. O garoto e eu fazíamos turnos para leva-la em um carrinho que ele havia encontrado, cujo em um dos lados havia escrito o nome RADIO FLYER.

Enquanto os dentes batiam se inclinou na borda do carrinho para empurrar o muco sangrento dos pulmões. Acabou caindo adormecida, prendendo entre os braços as latas de comida resgatadas do lixo— Certamente se infectou no rio e na chuva.

  —Conheci um garoto que se infectou assim — comentou Caleb.   A levantamos entre nós dois; os braços caíram sobre os nossos ombros.

  —E o que aconteceu?  —perguntei, mas ele não respondeu—  Ouviu-me Caleb?

  —Tenho certeza que isto é diferente — afirmou, ainda que detectei tensão em seu rosto apesar da escassa luz do anoitecer.

  —Eu estou bem —  murmurou Arden, tratando-se de por direita. Tinha

deixado saliva seca nos cantos dos lábios.   Caminhamos pelo espesso bosque cinza, entre folhas que me faziam cócegas no pescoço. Os animais corriam embaixo da grama, e ao longe uivou uma matilha de cães selvagens famintos. Por fim o bosque desembocou num claro, e descobri a visão mais deslumbrante da minha vida: em nossa frente estendia um lago imenso em cuja superfície escura se refletia mil estrelas.

  —O lago Tahoe — informou Caleb.

  Ergui a vista para observar as estrelas brancas piscando. Algumas delas brilhavam tanto, que pareciam quase azuladas; outras borradas na distancia como poeira cintilante.

  —Que esplendor! —Mas a palavra não bastava para descrever o assombro que senti naquele momento, dominada pela imensidão do céu— Olha Arden. —Lhe dei um ligeiro empurrão. Gostaria que tivesse meus quadros e pinceis para capturar ainda que só fosse uma levíssima impressão daquela cena. Mas ali só estamos nós, o negro anel de terra e a brilhante abóboda celeste.   Mas ela se limitou em fazer uma careta, presa na dor.

  —Onde está o acampamento?  —perguntei, amedrontada por causa do assombro inicial— Devemos leva-la para dentro.

  —Ali esta ele  —  respondeu Caleb, aproximando-se de uma íngreme e lamacenta encosta, coberta de matos e galhos quebrados.

  Confusa, olhei o garoto, que pegou um pedaço de madeira podre escondido na terra e, tirando dele, deixou descoberto uma tabua do tamanho de uma porta. O abriu batendo. Depois dele tinha um buraco que penetrava em um lado da montanha.

  —Vamos — disse indicando-me que entrasse.

Encolhi o estomago, e a minha cabeça deu voltas. Em frente à escuridão regressaram todos os meus medos, pois já me havia arriscado muito ao seguir quele garoto. Não me imaginava que o acampamento fosse uma caverna. Sobre a terra, sempre poderia lançar a correr, mas ali embaixo e no escuro...

  —Não... —murmurei retrocedendo—Não posso.

  —Eve, sua amiga precisa de ajuda... Imediatamente—Me estendeu a mão— Entra. Nada vai te machucar.

  Arden estremeceu ao meu lado; tossiu e abriu os olhos um instante para dizer algo que soou Cuidado. Apoiou-se em mim, e eu, tremendo as mãos, a guiei pelo tenebroso túnel. Caleb fechou a porta atrás de mim.

  —Por aqui —  indicou ele, abaixando-se para que Arden apoiasse o outro braço em seus ombros, e assim ajudar-me a leva-la. Avançamos na escuridão; a fria parede de terra me arranhava o lado, e notava a dureza do chão em baixo dos meus pés.

  —Este túnel... Você que encontrou? —perguntei, e minha voz ressoou na caverna.

  Caleb virou à direita e nos conduziu por outro túnel, procurando o caminho na escuridão.

  —O fizemos. —Ouvi ruído de gente a certa distancia. Murmúrios, barulho de panelas, risos baixos.

  —Construíram um túnel na montanha? —insisti. Arden voltou a tossir; os pés já não à mantinha.

  Caleb guardou silencio um pouco.

  —Sim  —  afirmou enfim, e notei sua respiração enquanto andávamos— Depois da epidemia, me levaram a um orfanato improvisado em uma igreja abandonada. Os meninos, garotos e garotas, dormiam nos bancos e nos armários, e às vezes nos juntávamos de cinco em cinco para se aquecer. Só lembro-me de uma pessoa adulta: a mulher que nos abria as latas de comida; chamava-nos de restos.

Alguns meses apareceram os caminhões e levaram as garotas aos colégios. Os garotos foram para acampamentos, que eram campos de trabalho, onde nós passávamos o dia inteiro construindo de tudo. —Quase cuspia as palavras, sem tirar a vista do chão.

  —Quando você escapou? —perguntei. Avançávamos pelo túnel em direção a uma luz que brilhava mais enquanto nos aproximávamos.

  —Faz cinco anos. Estavam começando a escavação quando cheguei — explicou Caleb. Eu queria perguntar-lhe mais coisas, saber quem o havia o organizado e como, mas me dava medo de insistir.

  Dobramos uma curva e a passagem desembocou em uma ampla sala circular na qual havia uma fogueira no centro. A caverna me lembrava a toca de um animal. As paredes de barro estavam revestidas de lajes cinza, e do recinto central saiam outros quatro tuneis. Antes que seguíssemos avançando, uma flecha me roçou o rosto e a ponto de rasgar-me uma orelha.

  —Olha onde você anda! —exclamou rindo um garoto, de músculos grandes e fibrosos, e se aproximou da parede que tínhamos ao lado, onde dois gigantescos círculos formavam um alvo. Cravou os olhos em mim enquanto arrancava a flecha em seguida.

  Nu da cintura pra cima, um grupo de garotos rodeava a fogueira. Quando viram Caleb, se puseram a gritar.

  —Não sabíamos onde você estava — disse um deles, de espessos cabelos negros recolhidos na parte de cima da cabeça. Os demais golpearam o peito com os punhos um modo de saudação primitivo. Me arrepiou a pele quando repararam em  mim e me olharam sem piscar.

  —Ao menos a caça foi um sucesso  —  comentou o da flecha, fixando em minhas pernas nuas e na camisa de manga larga que caía sobre meu peito. Cruzei os braços, desejando ter algo mais com que me cobrir— Olha o que temos aqui, rapazes! Uma senhorita... —Se aproximou, mas Caleb levantou a mão para-lo e o advertiu:

  —Já basta, Charlie.

  Outros dos garotos, de uns quinze anos, saíram de um túnel lateral carregando um javali. Deixaram a presa no chão e, atrás deles, ficou uma trilha de sangue coagulado a partir das entranhas do animal.

  —Leif tem conhecimento? —perguntou um garoto alto e magro, que usava óculos quebrados.

  —Não tardará para ouvir — respondeu Caleb.

  Outro dos ali presentes se ajoelhou junto ao animal morto e afiou duas facas entre si; o ruído agudo e áspero que produziu me pôs os cabelos em pé. Olhou Arden de cima abaixo e, quando se cansou dela, voltou a concentrar-se no javali e fez um corte no pescoço. Lascas de ossos lhe saltaram ao rosto. Fincava a faca uma e outra vez descontroladamente na junta entre a cabeça o corpo do animal. A cada golpe eu estremecia.

  Não parou até que a cabeça do javali se desprendeu e rolou pelo chão. O animal, que uma névoa cinza velava as pupilas, me olhava. Senti vontade de correr pelo corredor,  refazer o caminho, de não parar até estar em pleno ar livre. Mas Arden continuava invalida a meu lado, e lembrei por que estávamos ali. Em quando ela melhorasse, nos iríamos muito longe daquele doentio refugio subterrâneo habitado por uns garotos que me olhavam como se quisessem devorarme.

  Um jovem corpulento, de cabelos loiros emaranhados, jogou lenha no fogo e examinou a frágil figura de Arden.

  —Podem ficar no meu quarto — ofereceu rindo-se, e eu balancei a minha protegida - Não tenho nenhuma objeção em dividir a cama.

  —Não vão ficar no quarto de ninguém — gritou uma voz rouca— Não vão ficar e acabou.

  Um garoto maior saiu de um dos tuneis. Usava calças que chegavam abaixo do joelho; um cabelo cacheado cobria seu peito, ele recolheu o cabelo — negro— em um coque que deixava descoberta a parte superior da costa, sulcada de grossas cicatrizes. O seguia uma fila de garotos maiores, que se dispersaram pela sala. Do medo que tinha, tive arrepios. Eram uns dez, todos mais altos e gordos que eu, e tinham cara de poucos amigos.

  —Isto não vai bem — murmurou Arden.

  Caleb se colocou entre e nós, e manifestou:

  —Não a nada que discutir, Leif. As encontrei no bosque. A garota foi atacada por um urso —  Baixei a vista para se esquivar das olhadas—Tem que ficar.

  Uns grossos cílios negros rodeavam os olhos de cor castanho escuro de Leif, que sentenciou:

  —É muito perigoso. Já sabe como o rei fica com o assunto das cerdas. Com certeza a estarão procurando. —Se aproximou, parando a uns poucos centímetros de Caleb. Estava tão perto que vi pedaços de folhas entre seus cabelos, e percebi o cheiro de cinzas que saiam de seus tensos e musculosos braços.

  —Cerdas? —sussurrou Arden, cujo quente respiração roçou meu pescoço—Isso é o que somos?

  —Assim é como eles nos chamam — respondi—Mas não somos.

   O grupo de garotos nos rodeou, bloqueando nossa via de escape. Arden tossiu, estremecendo o corpo por causa do esforço.

  —Esta doente? —perguntou um garoto desdentado, suavizando o gesto. Me fixei na tatuagem que levava no ombro: um circulo com o emblema da Nova América, igual a de Caleb e no mesmo lugar. Dei uma olhada e percebi de que todos os garotos eram tatuados.

  —Muito — respondi. Retrocederam ao ouvir esta palavra e cochicharam; um garoto baixinho e bochechudo disse algo que soou  à epidemia. Arden ergueu a cabeça e a apoiou em meu ombro.

Caleb continuava frente à Leif.

  —Se a deixarmos, a garota morrera. Não deixarei.

Leif fez uma careta de desagrado que me lembrou dum cão rabugento.

  —Ficarão no quarto de hóspede, separadas dos demais — disse enfim. Arden que quase não podia levantar a vista se limitou a olhar-me com os olhos semicerrados—. Não podem subir a superfície sem permissão. E nada de bisbilhotar ou andar incomodando. Entendido?

  Deu uma olhada no garoto que estava a seu lado, que carregava uma pilha de tigelas. Como se fosse algo instintivo, o rapaz se ajoelhou e, enchendo-as de feijão de uma panela que estava no fogo, e os entregou a Leif. Dei um passo, e meus olhos caíram à altura de seus enormes ombros. Me ofereceu uma tigela. Eu a peguei, mas ele não soltou.

  —Bem vindas — disse em um tom que significava tudo ao contrario.

Empurrou-me e examinou meu rosto até que percorreu com a vista meus peitos, minha cintura e minhas pernas. Senti uma onda de pânico e puxei a tigela para me livrar daquele olhar. O soltou de repente, e eu caí para trás. Os feijões derramaram sobre minha camisa. Outro garoto começou a rir às gargalhadas.

  Minhas bochechas arderam, observei a mancha. Não bastava que eu me sentisse desprotegida naquele acampamento, nem que Leif me aterrorizasse, mas Também tive que me humilhar.

—Vamos — disse Caleb, pegando a janta para Arden—Vou mostrar o seu quarto.

—Rodeou com um braço Arden, e caminhamos por um túnel iluminado por filas de lanternas colocadas no chão—. Leif é assim — sussurrou.

Verei a cabeça e vi que este dava um chute na cabeça do javali. Os garotos  recomeçaram suas atividades: de mais alto lançou outra flecha, dois rapazes muito magros se puseram a lutar, enquanto outros se dedicavam, ativamente,  a colocar pedaços de carne em palitos afiados. Me lembrei de O senhor das moscas e do dia em que a professora Florence nos havia lido a cena em que Simon é atacado pela horda de garotos selvagens obedecendo ao líder da quadrilha. "―Quando os homens estão isolados, e o único incentivo é a violência dos demais, é quando são mais perigosos”, havia dito a professora sentada na borda de sua mesa, com o livro aberto sobre o colo. Lembrei o coro de gritos, os olhos que desnudavam po com avidez, a troca de sussurros..., e supus que algumas coisas das que nos haviam dito eram certas.

Apesar de tudo.

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Comments

Silvana Rocha

Silvana Rocha

está muito confusa essa história, já voltei para ler, mas não consegui me encontrar.

2023-12-04

0

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