18

Caleb e eu cavalgamos pelo bosque, contornando as árvores. Depois de ter visto os soldados na noite anterior, os garotos maiores haviam estado de guarda o dia todo, vigiando para que não houvessem voltado à área. Ninguém falou comigo, ninguém se atreveu sequer a me olhar. Até que encontraram rastros recentes de pneus na estrada que saía do lago, não acabou meu confinamento. Caleb apareceu em nosso quarto quando estava atendendo Arden, e me convidou a sair da casa com ele. Não me importou ter que colocar roupa de garoto (umas bermudas de algodão desgastadas e uma camisa folgada), nem arrumei o cabelo para esconder. Alegravame sair ao ar livre e longe da úmida cova, do covil subterrâneo e da besta do Leif.

Quando chegamos a um lugar limpo com grama, Caleb esquadrinhou as árvores e a borda rochosa.

—Por aqui não tem nada. —Fez girar o cavalo— Teremos que encontrar um posto de observação.

O céu, de uma intensa cor laranja, estava cheio de vaporosas nuvens recortadas de vermelho. Seguimos o rastro de um javali por um campo e uma pedreira, até que um desprendimento de uma pedra o assustou. Em seguida decidimos procurar um veado. Montei na garupa do cavalo, desfrutando da liberdade de estar em campo aberto. Mas o encontro da noite anterior seguia rodando em minha cabeça.

—Seu amigo Leif... —comentei, tratando de reconstruir a relação de Caleb com ele: como podia viver e trabalhar, dia atrás dia, com semelhante bruto? Havia conhecido Caleb há dois dias e ainda não o havia visto atuar de forma suspeita: não havia me abandonado no rio, nos tinha proporcionado café da manhã e comida para Arden e a mim, além de toalhas e água da chuva limpa para nos lavarmos, e ainda tinha arrumado nosso quarto enquanto dormíamos— Seu amigo Leif é um verdadeiro encanto —conclui incapaz de esconder a ironia.

O garoto tirou a vista do rochoso precipício que tínhamos a frente; levava a aljava com as flechas no ombro.

—Lamento que te assustou a noite. Enfureceu-se por causa dos soldados. —Deslizou a mão pelo pescoço do cavalo, desenrolando os nós das espessas crinas negras— Está convencido que inventou a história da menina. Não tem como argumentar com ele.

—E porque iria mentir? Se a vi — disse mantendo-me atrás dele— Estava só aqui fora, e ele quase ameaçou.

Caleb negou com a cabeça enquanto cavalgávamos pela encosta da montanha; os passos irregulares do cavalo nos faziam oscilar de um lado para outro. Ele tão pouco acreditava que eu tivesse visto a menina, mas sim a "alguém".

—Leif nem sempre tem sido assim. Antes era... —Fez uma pausa, buscando a palavra correta— Era melhor.

Abaixamo-nos para passar embaixo de um galho.

—Custa imagina-lo. —As folhas me acariciaram as costas ao inclinar-me, mas procurei manter a separação entre ambos.

Caleb mostrou ser cauteloso e ao fim disse:

—Leif era divertido, muito divertido. Passávamos o dia inteiro desmontando casas, tijolo a tijolo, carregando os materiais em caminhões que os transportavam à cidade de Areia, e ele compunha canções enquanto trabalhávamos. —Virou a cabeça para olhar-me e, corando, esboçou um espontâneo sorriso.

—Que tipo de canções? Do que você está rindo?

Voltou a olhar para frente e respondeu:

—Não creio que gostaria de saber.

—Tente.

—Ok, mas depois não se queixe. —Tossiu, fingindo seriedade, e cantou com uma voz totalmente desafinada—: "Minhas bolas estão suando, minhas bolas estão suando, não posso evitar que suem as bolas, nãooo, nãooo, nãooo!"

Inclinei para um lado para olha-lo e reparei nas rugas que formavam ao redor dos olhos e nas tênues manchas marrom que lhe pontilhavam a bochecha.

—Onde está a graça? O que é isso de "bolas"? Por acaso jogavam com bolas?

Caleb jogou as rédeas do cavalo e se lançou para frente em pleno ataque de gargalhadas.

—O que? O que aconteceu?

Demorou um pouco em recuperar a compostura.

—São... —disse esforçando-se muito— São essas coisas que... —Se interrompeu como se estivesse meditando e logo fez um gesto negativo com a cabeça— Não, sinto muito, não posso. Mas tem graça, Eve. Acredite.

Queria pressioná-lo para que respondesse a minha pergunta, mas meu instinto me disse que era melhor deixar a piada assim, sem mais explicações.

O cavalo continuou subindo pela montanha para um plano. O lago se estendia em nossa frente, refletindo o céu alaranjado, e de lá de cima víamos o campo onde tínhamos perseguido o javali, pedaços do bosque e a margem rochosa da praia.

—Estão lá — exclamou Caleb, mostrando a manada de cervos que bebiam no lago. Apesar de estar muito alta, distingui a dourada pele dos animais e os chifres alcançavam as copas das árvores.

O garoto guiou o cavalo para o caminho.

—E o que aconteceu? —atrevi a perguntar por fim quando estávamos no meio do bosque— Refiro-me à Leif.

Caleb, de corpo ágil, seguia os movimentos do cavalo, como se ambos fossem um. Notei então em uma costura desfeita de sua camiseta cinza que tinha na minha frente, e senti vontade obrigatória de esticar o braço e toca-la, mas mantive as mãos sobre o lombo de Lila.

—Leif tinha um irmão gêmeo, Asher. Quando falávamos com eles, sempre se olhavam de soslaio antes de responder, como se Leif estivesse esperando a reação do seu irmão, ou este estivesse determinando se devia rir ou não. — Atravessávamos o bosque, em direção à margem rochosa— Um dia fomos trabalhar e Asher ficou doente. Agora que penso, não devia ser nada grave, tenho certeza que não. Mas os guardas tiveram medo. Ocorreu pouco depois da epidemia. — Introduziu os dedos entre os cabelos castanhos— Quando voltamos, sua cama estava vazia. Havia desaparecido.

—Morreu? —perguntei. O cavalo se moveu de lugar, e eu lhe acariciei a garupa, agradecendo a sua presença quente e serena.

—Não, não. O levaram ao bosque e deixaram ali.

—Quem?

—Os guardas. Imobilizaram suas pernas com pedregulhos. Aquela noite nós os ouvimos presumir que nos tinham salvado de uma nova epidemia.

Cobri a boca com a mão e imaginei um dos garotos do acampamento sozinho no bosque, doente, com as pernas amarradas contra o chão.

—Foi com se algo quebrou no interior de Leif e nunca voltou a ser o mesmo. A partir de então virou outra pessoa. —O garoto apeou, pegou o arco e as flechas, e se aproximou muito lentamente para onde estavam os cervos na margem. Alguns deles ergueram a cabeça, mas ao vê-lo tão tranquilo e calado, continuaram bebendo.

Avançou um pouco mais e apontou em uma fêmea. A flecha saiu zunindo e, instantes depois, afundou no carnudo pescoço do animal. Os outros cervos dispararam enquanto a fêmea cambaleava. Caleb disparou outra flecha, que feriu o animal nas costas. O cervo, assustado, se meteu na água e tratou de voltar a margem, deixando um rastro sangrento.

—Basta! —gritei, descendo do cavalo, com os olhos cravados nas feridas do animal— Está sofrendo.

Caleb se aproximou do cervo sem se apressar.

—Nada está acontecendo — disse ao animal. Manteve o pescoço com uma mão e pegou a faca— Tudo vai ficar bem. —Sussurrou algo que diminuiu o medo do veado, ele segurou a faca ao pescoço e, com um movimento veloz, ele cortou a garganta; o sangue derramou pela pedregosa margem e tingiu a água de vermelho.

Lágrimas, quentes e incontroláveis, inundaram meus olhos, e estremeci vendo como se escapava a vida do animal.

Eu cresci com a morte: a tinha visto no rosto dos vizinhos que arrastavam sacos de dormir pelos jardins para enterrar os seus; a havia visto pela janela do carro, nas filas de gente, de pele vermelha, que se revoltavam na frente das farmácias; a tinha visto em minha própria mãe, sangrando pelo nariz na varanda...

Mas depois permaneci salva doze anos no colégio: os muros me protegiam, as doutoras nos cuidavam, levava um apito de segurança suspenso no pescoço. Quando Caleb cortou a cabeça da cerva, chorei como nunca. Ali estava esperandome como sempre: a morte, a morte inevitável, em todas as partes. Em todo momento.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!