Nós sairíamos essa mesma noite para sempre. Não havia como voltar atrás.
Subi a saltos até o primeiro andar e caminhando, deixando as habitações em que as meninas dormiam tão felizes em suas camas. Através de uma porta via a Violet encolhida e sorridente, alvejando o que esperaria no dia seguinte. Estava a ponto de chegar a meu dormitório quando uma luz fantasmagórica iluminou o corredor.
-Quem está aí?- perguntou uma voz rouca.
Virei-me lentamente, o sangue havia gelado em minas veias. A professora Florence estava ao final do corredor com uma lâmpada de querosene nas mãos que projetava sombras negras, ameaçadoras, na parede do fundo.
-Es... Estava... - vacilei. A parte de baixo da camisola gotejava água, formando uma poça ao redor de meus pés.
A professora se aproximou seu rosto salpicado de rugas, expressando raiva.
-Havia cruzado o lago e havia visto as formandas. - afirmou
Confirmei, lembrei de Sophia, estendida na cama do hospital, a quem se parecia os olhos afundados em orelhas, assim como as marcas em seus pulsos e seus tornozelos provocados pelas algemas de couro. A pressão crescia em meu interior como uma chaleira a ponto de explodir. Queria gritar, acordar a todas, agarrar aquela frágil mulher pelos ombros e afundar meus dedos em seus braços até que entendesse a dor, o pânico e a confusão que sofria em aqueles momentos. Em síntese, a traição.
Mas depois de tantos anos de sentar-me em silencio, entrelaçando as mãos sobre o colo, escutando e falando unicamente quando me perguntavam me reduzindo a pura obediência aprendida. E se gritasse em qualquer momento, em pleno silêncio noturno? Não poderia decidir nada que convencesse as demais. Jamais acreditariam que as carreiras prometedoras eram mentira. Pensariam que havia ficado louca, Eve, a menina se desequilibrou por causa do estresse da formatura, Eve, a maluca que devia desaparecer sobre as formandas grávidas. Formandas grávidas! Você ria. E enviaram a aquele edifício um dia antes que as outras me obrigassem a permanecer sempre em silêncio.
-Eu sinto- lamentei- Eu... - E as lagrimas começaram.
A professora Florence pegou minha mão entre as suas e deslizo o dedo sobre as rachaduras que havia acumulando sangue seco.
-Não posso permitir que abandone o recinto assim.- Seus ásperos cabelos cinzas grisalhos rasparam em meu queixo cheio de furos.
-Eu sei. Eu sinto. Voltarei pra cama e...
-Não. - disse em voz baixa. Ela olhou para cima: tinha os olhos vidrados - Não deve sozinha nesse estado. - Tirou um lenço do bolso de seu roupão e me deu na mão- Posso ajudar, mas é necessário que se limpe. Rápido. Se a diretora souber, trancará nós duas. Recolha suas coisas e se reúna comigo lá em baixo.
Eu queria abraça-la, mas ela me empurrou para a porta de meu quarto. Quando estava a ponto de entrar no dormitório, disposta a acordar Pip e Ruby, me chamou e disse em um sussurro:
-Eve, vá sozinha, não diga nada a ninguém. - Protestei, mas se manteve firme- Não há mais remédio- disse muito séria, e iluminou o corredor com medo de alguém estivesse vindo.
Andei pelo quarto no escuro e guardei minhas coisas sem fazer um ruído na única mochila que possuía. Pip estava imóvel em sua cama. ―Você vai sozinha‖, a ordem ressoava em meus ouvidos. Mas havia passado a vida toda fazendo o que me mandaram, e no fim haviam me enganado, Despertaria a Pip e pediria que a professora nos ajudasse. E se Pip não acreditasse? E se ela acordasse as demais? E se a professora Florence decidisse que não podia ajudar a ambas, por que nunca conseguiríamos sair sem que nós víssemos? Então estaria tudo perdido para ela e para mim. E para sempre.
Fechei o zíper da mochila, eu gostaria de ter mais tempo. Pip afundou o rosto pálido no travesseiro e, para respirar, seus lábios faziam um assobio. Uma vez na biblioteca li um dos livros anteriores à epidemia que foi o testemunho do amor, cuidar de outra pessoa ou dizer algo tão simples como ―Sua vida vale a pena‖. Sim era certo, nunca havia amado nada como a Pip, ninguém havia me amado como ela me amava, estava ao meu lado quando eu torci o pulso plantando bananeira no jardim, me consolou quando perdi meu broche azul favorito, que havia pertencido a minha mão, e era a única que cantava comigo no banho canções que havíamos descoberto em velhos discos dos arquivos. Let it be, let it be! Zumbindo com voz sempre desafinada enquanto espuma deslizava riscando seu rosto. Whisper words of wisdom, let it beeee.
Caminhei indo para porta, à olhei pela ultima vez. Quando me vejo lembrando da minha primeira noite que passei no colégio, se acostumando a minha cama e me convidou para colocar meu rosto no seu pescoço, depois, apontando para o teto, me disse que nossas mães nos viam no céu e que nos amariam mesmo estando lá.
-Vou voltar para te buscar –sussurrei, quase me afogando com as palavras- Eu prometo. – insisti.
Se eu não saísse nesse momento, eu nunca sairia, atravessei o corredor, descendo as escadas e fui para o consultório médico onde eu esperava a professora com um saco cheio de comida.
Arrancou os espinhos de minha mão com uma pinça de depilação e as enfaixou, sem deixar de observar a venda que dava voltas e mais voltas. Demorou alguns instantes antes de falar.
-Comecei a trabalhar com especialistas em fertilidade- explicou- O rei acreditava que a ciência era a chave para reabastecer a terra rápida e eficazmente, sem os inconvenientes comportamentos das famílias, do casamento, e do amor. E acreditava que vocês, as meninas, tem medo dos homens, preferiria criar crianças sem eles. E quando as primeiras turmas entraram nesse edifício, alguns deles fizeram isso. Mas o processo é às vezes muito duro, e surgem complicações e me preocupa que isso piore ainda mais.
Fazendo uma observação rápida a gaveta da doutora Hertz guardava nossas injeções semanais, as que nos irritava o tórax e criava muitas dores. Sobre a mesa havia frascos de cristal com vitaminas, distribuídas em compartilhamentos por dias. As tomadas de manhã, tarde e noite, como um doce veneno colorido.
-Então, você sempre soube... Das graduadas?- perguntei.
Ela olhou para fora através das persianas. Quando se certificou que as guardas haviam passado, me indico que seguisse pela porta de trás, por lá que saímos. Uns cachorros selvagens uivaram ao longe, e acelerou meu coração. Corremos ao muro, até que a professora virou se para assegurar que estávamos longe o suficiente para que a guarda não nós visse. Quando respondeu a minha pergunta, seu tom era mais baixo do que antes:
-Primeiro quando a epidemia ocorreu, e posteriormente a vacina agravou isso. O mundo estava consumido pela morte, Eve não havia ordem, as pessoas ficaram confusas, aterrorizadas. O rei assumiu o poder, e tinha que escolher: continuar ou vagar pelas florestas estando sozinho.
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