10

Não demorou a ficar sem comida. Os armários das casas estavam vazios, pois as supervisões haviam saqueado depois da epidemia. Resolvi comer amoras, mas uns punhados não eram suficientes para acalmar as dores do meu estômago. Assim que fiquei doente: cada vez caminhava mais e mais devagar, até que andei um quilômetro sem descansar. Sentei-me ao pé de uma árvore, apoiada em suas raízes retorcidas enquanto contemplava os veados pularam entre a grama alta.

Às vezes, pouco antes do sol se pôr, puxo as coisas da minha mochila para observá-las. Sempre buscava a pulseira, tão pequena que apenas cabia em três dedos.

Eu era órfã, como todas as alunas do colégio, aonde havia chegado depois que minha mãe se contagiou com a epidemia. Não conheci meu pai. Aqueles objetos eram a única coisa guardada de meu passado, além de algumas memórias –mais sentimentos- minha mãe desenrolando o cabelo molhado e cheiroso enquanto eu o desenrolava. Em certa ocasião li curiosidades sobre pessoas as que haviam amputado algum membro: os braços continuavam doendo e as pernas que não tinham, eles chamavam de membros fantasmas. Sempre me pareceu a melhor forma de descrever meus sentimentos sobre minha mãe, que havia se convertido em dor por algo que uma vez tive e que perdi.

Continuei meu caminho, me apoiando cada vez mais nos galhos. A longe eu vi uma piscina de plástico cheia de água da chuva, um brilhante Oasis turquesa rodeado de ervas daninhas. Pisquei imaginando se não seria uma ilusão causada pelo calor. Corri até ela e me joguei no chão com meus lábios tocando a água fria. Questionei-me quanto tempo ficaria ali e se essa água seria própria para consumo, mas minha garganta seca ficou tão grata que bebi sem parar ate que meu estomago se revirasse. Quando me virei, vi um reflexo na superfície da água: há a alguns metros havia uma casa, e uma luz no seu interior.

Eu olhei para o brilho que a luz emitia, enquanto o sol descia pelas copas das árvores. Não sabia quem morava naquela casa nem se me ajudariam, mas tinha q verificar.

No jardim havia uma área de recreação de madeira muito danificada. As videiras envolviam a oxidada cadeira de balanço, e se inclinava em direção ao solo. Eu deslizei sob a lâmina quebrada, eu fui a uma janela entreaberta e observei o interior. A sala não era pequena: só se distinguia uma poltrona bamba e varias fotografias amassadas na parede. Também vi uma figura encapuzada cochilando em frente a uma lareira.

A fumaça chegava ao teto e saía, seduzindo meu olfato com a promessa de boa comida. A figura pegou um pé de coelho e o devorou por inteiro, e minha boca se encheu de água imaginando o doce sabor que deveria ter.

Eu já os tinha visto antes, vagando fora do muro do colégio, na área da janela da biblioteca. Essas pessoas não pertenciam a nenhum grupo nem ao do rei, acho que eram como marginais que viviam em estado selvagem. Haviam-nos dito que eram perigosos, mas o que vi era uma figura de uma esbelta mulher que acalmou meus temores.

-Olá!- gritei pela janela- Ajude-me, por favor!

A figura se endireitou em um salto e recuou para a parede brandindo uma faca.

-Vá para a luz!- A figura era grande e cobria o rosto, mas o brilho do fogo permitia que se vissem delicados lábios com pedaços de carne.

-Certo tudo bem. - eu disse levantando as mãos. Ao empurrar à cortina, as dobradiças rangeram, e por pouco não caí por causa do susto. Ao fim entrei e esticando as mãos para que as figuras às vissem. – Estou ficando sem comida.

Ela continuou apontando a faca. Vestia um uniforme de batalha verde escuro, como os outros trabalhadores do governo, e um suéter negro com capuz muito grande. Não lhe vi os olhos.

Quando baixei as mãos, reparei em uma mochila aberta que continha um uniforme de colégio. As cores vermelho e azul do escudo da Nova América me deslumbrou. Retrocedi e então reparei nas negras botas de combate, na estrutura elevada, a graciosa marca sobre o lábio daquela pessoa...

-Arden!

Tirou o capuz. Os curtos cabelos negros estavam cheios de sujeira e tinha a pele pálida queimada pelo sol, de modo que ela descascava ate a ponta de seu nariz.

Abracei-a com força, como se fosse à única que me mantivesse de pé, e respirei fundo, sem me importar que ambas estavam com roupas suadas.

Arden estava ali. Viva. Comigo.

-Que diabos está fazendo?- perguntou, afastando-se- Como chegou até aqui?- A ira deformou o rosto, e de repente, lembrei que me odiava.

Sentei-me no chão, atordoada.

-Escapei. Você estava certa. Eu também vi as meninas da sala de cimento- Arden ia de um lado a outro, na frente da chaminé, sem soltar a faca- Segui a placa que indicava oitenta... - Me calei ao me dar conta que ela, certamente, havia feito o mesmo, mas acrescentei- Califia deve estar a uma semana de caminhada, não demoraremos a encontrar a ponte vermelha...

Arden acertava a lamina da faca na perna ao andar.

-Não pode ficar comigo... Não posso permitir, eu sinto, mas terá que...

-Não, não. - Pensei em ratos gigantes correndo pelas minhas pernas nas noites, nas minhas tentativas frustradas de caçar um coelho. -  Não pode fazer isso, Ardem. Você não me abandonaria.

Arranhando a lamina da faca na perna, produzindo um som irregular que me fez estremecer.

-Isso não é um jogo, Eve, nem são umas breves férias do colégio – Aguçando a voz- Aí fora á homens, cachorros e vários animais selvagens, e todos querem nos matar. Não será capaz de suportar. Eu... Eu não posso me arriscar. É melhor que vá sozinha.

Inclinei-me contra as mãos trêmulas, afundando as mãos no chão enquanto assistia a crueldade de minha companheira. Embora eu tivesse encontrada uma aluna nova na selva que teve a perna partida pela metade, não havia abandonado-a... Não poderia fazer, porque seria equivalente a uma sentença de morte.

-Eu sei que não é um jogo. Por isso devemos continuar juntas. - Eu precisava de Arden, mas não conseguiria convencê-la de que ela precisava de mim. Contudo, tentei recorrer a alguma ideia e apelar a seu aspecto mais frio e calculista. - Posso te ajudar.

Sentou em uma velha poltrona, cuja almofada estava rasgada torcida e cheia de ferrugem.

-Como?- Tirando um besouro morto do cabelo embaralhado e o jogou ao fogo. Dando um riso baixo.

-Sou esperta. Entendo de mapas e bussolas. E seria bom dispor de outra pessoa para manter a guarda.

-Não há mapas, nem bussolas Eve- respondeu- E sua inteligência é de livros- apontando um dedo- Isso não vale nada aqui. Sabe pescar? Sabe caçar? Mataria alguém se tirasse a minha vida ou a vida de outros?

Engoli saliva, a resposta era ―não‖. Claro que não. Jamais havia matado a uma lagarta. Eu julgava a professora das meninas que torturavam esses bichos por puro prazer de vê-los retorcendo-se. Mas queria mostrar a Arden que todos aqueles anos que havia passado na biblioteca, enquanto ela arremessava ferraduras no jardim, realmente havia valido a pena.

-A diretora me concedeu uma medalha de aplicação...

Ela levou a cabeça para trás e soltou um riso.

-Que graça dela! Mas estou bem sozinha. Contudo, você...

Abaixei o olhar, olhando ela como ela me olhava: um galho havia rasgado a camisa do uniforme, tinha as mãos cheias de sangue seco e os braços nus, apesar de fazer frio. Sentia-me fraca, nunca havia me sentido assim no colégio, sem comida, nem agua, nem a menor perspectiva de sustento. As lágrimas começaram a inundar meus olhos.

-Você não entende... Tem pais, um lugar para ir. Não sabe o que é estar sozinha.

Coloquei o rosto entre as mãos e solucei. Não queria apodrecer sozinha na floresta. Não queria morrer ou que um homem me capturasse. Não queria morrer!

Paso um momento até que me dei conta que Arden havia se levantado da poltrona e estava assando outro pedaço de coelho.

-Deixe de se comportar como uma criança- disse me dando a carne inserindo em um bastão. Devorei-a sem me importar que a gordura empapasse minhas mãos e deslizasse para baixo do queixo, esquecendo-me por um momento dos bons modos- Não pode perder mais tempo. Certamente, meus pais já sabem que fugi da escola... E talvez estejam me procurando- ela acrescentou quando acabou de comer.

Estava a ponto de começar a chorar, mas me controlei. Mesmo assim, em meio ao nada, seguia pressupondo de seus pais. Acabaria falando da casa de quarto andares que viviam e que dormiam em camas de casal desde o casamento até a mais terna infância, de quão difícil foi para ela desperdiçar tudo aquilo, embora fosse só por alguns anos... Perdeu as empregadas, as centenas de pratos de porcelana, seus pais que há levavam para o teatro e deseixavam que apoiasse o queixo no palco para ver melhor o espetáculo.

-Esta noite pode ficar. Então vamos ver. – Concedido lançando um cobertor cinza imundo.

Coloquei o cobertor sobre os ombros, enquanto o fogo consumia e deixava um monte de cinzas fumegantes.

-Obrigado.

-Não há de que. –Aconchegando-se na poltrona com vários cobertores que a envolviam como um gigantesco ninho de pássaros. –Aí encontrei um esqueleto a alguns quilômetros daqui. –Soltando uma risada.

Tirei o cobertor com nojo e recostei-me em um canto Não me importava em tremer de frio, como na noite anterior.

A luz do luar me deixou ver as fotografias em sua parede: uma família jovem posava diante de uma casa. Sorriam, entrelaçando os braços, tão ignorante de seu futuro como o meu.

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