A manta escorregou de meu rosto, eu não me atrevi à pega— la nem a me mover por medo de ser vista. No outro extremo da cabine, Caleb se voltou, e a imensa casca de metal balançou. A silhueta deu um passo e apoiou a mão na porta quebrada. Fechei os olhos temendo o que se aproximava: uma fria pistola apontada, algemas me prenderiam os pulsos...
— Eve— Sussurrou por fim uma voz familiar.
Olhei pela janela quebrada: Arden tinha a roupa encharca e os cabelos colados na cabeça. Por baixo da tênue luz, distingui seu rosto, crispado despreocupação.
— Está ai? Está bem?
— Sim, sou eu. — Apareci em um lugar visível sob a luz da lua—. Estou bem.
Subiu em um salto para o helicóptero, afundando as botas no lixo. Me deu um olhada em seguida reparou em Caleb dormindo, como se uma pergunta que tivesse em mente tivesse sido finalmente respondida. Por fim se instalou em um assento.
— Você voltou... — Mexi na lanterna de plástico sem tirar os olhos de Arden, que tremia de frio e pingava como se tivesse acabado de sair do rio. Dei-lhe minha manta.
Ela se abaixou sobre uma caixa e abriu um pacote de comida desidratada.
— Enfim... — Encolheu os ombros— Estou morta de fome. Mordeu uma cenoura seca, sem tomar conhecimento de mim.
— Estava preocupara comigo? — Perguntei me inclinando para ela.
Parou de comer e virou a cabeça para observar Caleb.
— Não— se apressou em dizer — Mas não sabia se estaria a salvo com
ele.
Quis lhe dizer que lhe importava minha segurança, e que por isso a resposta certa era sim, estava preocupada comigo, mas me contive. Ao ver sua roupa encharcada, me perguntei se não a havia julgado mal. Talvez fosse algo mais do que a garota que levou anos insistindo que preferia comer sozinha a perder tempo com as outras. Tirou os sacos de alumínio vazios e soltou um breve arroto.
— Quer a manta? – perguntou oferecendo—a, e, momentaneamente ficou pendurada como uma cortina entre nós. Neguei com a cabeça e disse:
— Fique com ela.
A luz da lanterna atenuou porque restava pouca carga na bateria; antes de se apagar de todo e de ser vencida pelo sono, a última coisa que vi foi o rosto pálido de minha companheira.
No dia seguinte Caleb se adiantou e foi afastando o mato com facão para abrir o caminho. Esperamos que seu cavalo voltasse para a margem, mas quando o sol saiu, tivemos que partir.
— Levaremos todo o dia para chegarmos até o acampamento – informou– com um pouco de sorte estaremos lá antes da noite.
Caminhamos por uma rua coberta de musgo. O sol havia saído compondo um amanhecer rosa amarelado, mas nesse momento o céu voltou a cobrir com nuvens.
— Não podemos ficar muito no acampamento – disse dignando—se a conversar com Arden— Servirá para nos abastecer, mas devemos seguir caminho para CALIFIA.
Seguia obcecada com o encontro com os soldados do rei. Ainda era muito cedo e não havia rastros do 4x4, olhava com frequência para traz e estremecia ao ouvir os estridentes trinados dos pássaros nas copas das árvores.
Arden espantou uma mosca com a mão.
— Não me importo que me diga – murmurou e começou a tossir e espirrar – Este caminho tem partes mais fáceis? — perguntou ao mesmo tempo em que afastava um galho de seu rosto.
— Não demoraremos a encontrar um povoado. – Caleb se abaixou para passar por baixo de um galho — Cuidado. – E olhou para o céu, coisa que fazia continuamente.
Antes de começarmos a andar, Eu e Arden tivemos que aguardar, enquanto brincava com uns gravetos na terra e observava durante vários minutos as sombras que projetavam. Após decidiu qual a rota que devíamos seguir como se tivesse conversado com a terra em um idioma estranho que nós ignorávamos.
— Parece que consulta um relógio – E apontei para o sol.
— Claro, é minha bússola e meu calendário. — E levou o dedo ao queixo em uma surpresa fingida – Pelo visto existem coisas que não sabe...
Me voltei para observar Arden, que limpava a sujeira das unhas, sem interesse em nada. Me convenci que Caleb era melhor para nossa segurança: havia ficado comigo no rio e me havia escondido no helicóptero, ainda não entendia porque? Não compreendia suas motivações nem acreditava que podíamos confiar cegamente nele. Também não gostava da forma que zombava de mim, nem na sua insistência na noite anterior de fazer perguntas que não queria responder.
— Escuta, Caleb – Falei dizendo seu nome – Agradecemos sua ajuda, mas não te pedimos nada.
— Sim, já me disse isto antes: faz uma hora..., esta manhã... e quando aceitou ir para o acampamento – respondeu ele – Vocês ficarão uma noite, se abastecerão com nossa comida, e logo as acompanharei até a Estrada oitenta para que continuem até Califia. Já entendi perfeitamente.
Nos conduziu até outra estrada que desembocava em uma fila de casas arruinadas. O rio as havia inundado, deixando uma marca marrom na altura do telhado a trinta centímetros acima das portas. Sobre uma fachada de tijolos havia mensagem escrita com Spray: Estou morrendo, Socorro.
— Têm fome? Perguntou Caleb.
Sem nos dar tempo para a resposta, subiu uns degraus podres e entrou na casa.
— Suponho que seja a hora de comer... – murmurou Arden, e o seguiu. O chão de madeira do interior da casa estava tombado e partido, nas paredes crescia um mofo negro. Tapei o nariz com a camiseta para me proteger do odor. Em um canto do lugar havia um gigantesco armário do que não sabia o que, cujo o painel dianteiro caído tinha uma forma de estrela.
— Que isso? – quis saber, apontando—o.
Caleb voltou para sala pisando em livros encharcados e montes de coisas apodrecidas, Eu e Arden o seguimos com certa cautela.
— Uma televisão – respondeu quando chegamos perto da porta da cozinha.
Concordei, ainda conhecia a palavra vagamente. Tinha a aparência de ter contido algo valioso. O desgastado sofá estava em frente dele, como se a família se sentasse em frente dele para olha-lo.
Todos os armários da cozinha estavam abertos e as estantes cobertas por plásticos sujos e latas vazias. Havia várias poltronas jogadas ao chão, cujos assentos deixavam a vista suas entranhas cinzentas e mofadas; o teto caia em pedaços.
— Vai com cuidado – sussurrou Arden, me puxando e apontando um buraco no chão que por pouco não havia caído.
Caleb pulou uma vala e se dirigiu a uma escada que conduzia a um porão escuro.
— Vou ver se a algo lá embaixo.
Enquanto Arden perambulava pela sala, me aproximei de uma geladeira que se encontrava em um canto, sobre a qual havia algumas fotografias e retratos antigos. Em uma das fotos se via um casal jovem com um bebê nos braços; a mulher tinha a franja colada em seu rosto suado, mas a câmera havia captado seus grandes e brilhantes olhos. Abaixo havia um desenho infantil de uma família: os três, o pai, a mãe e a menina estavam cercados por perversos fantasmas, com os contornos pintados a lápis.
Durante aqueles últimos dias junto a minha mãe, eu desenhava tudo o que me ocorria. Me sentava no andar de baixo, diante de minha mesinha de plástico azul, pegava um papel e pintava coisas para ela: desenhos em que estávamos em um parque infantil próximo a casa, como era o carrossel em ela me fazia dar voltas e voltas sem parar. Também a desenhava na cama e punha um médico com uma varinha mágica em suas mãos para que a curasse; outras vezes a representava fora de casa com uma cerca para que o vírus não entrasse. Uma vez feitos, eu os deslizava por baixo da porta de seu quarto para que os visse: seus presentes especiais.
―Beijos – dizia ela, dando pancadinhas do outro lado da porta – Daria um milhão de beijos se pudesse.
Olhei para o rosto da mulher uma última vez e voltei para a sala vazia. Ouvi um ruído em cima e senti curiosidade.
— Arden... — Chamei, e sai silenciosamente. O chão rangia a cada passo, e uma brisa gelada entrava pela janela aberta. Onde esta você?
Entrei em um minúsculo banheiro sem telhas nem piso.
— Arden! – Insisti, o eco repetiu minha pergunta.
Ao fundo do corredor havia uma porta entreaberta. Me dirigi para ela, e no caminho passei por um quarto em havia uma cama quebrada e as molas do colchão estavam a vista.
Me aproximei, junto a parede. O papel de parede havia se soltado em algumas partes e roçava meus ombros nus. Meu pulso se acelerou e comecei a transpirar. Havíamos entrada em uma casa com pressa, mas devíamos ter pensado duas vezes antes de irromper por ela. Sempre havia a possibilidade de que nos vigiassem.
A porta entre aberta estava queimada. Olhei o que havia dentro: era um quarto de criança com um baú cheio de brinquedos empoeirados e as paredes pintadas de um azul brilhante. Havia bichinhos caídos sobre a pequena cama. E peguei um ursinho manco que devia ser muito velho antes até do que a epidêmia.
Tudo aconteceu muito rápido: ouvi passos a minhas costas e cai ao solo com um baque surdo. Gritei quando alguém oculto por uma mascara de palhaço se colocou em cima de mim, me aterrorizando com seu desfigurado sorrido vermelho.
— Não me mate, por favor! – implorei – Não me mate!
O palhaço se deteve um instante, pressionando meu ombro contra piso quadriculado. Logo ouvi risadas sufocadas. Arden retirou a mascara e caiu sobre mim se contorcendo em risadas.
— Por acaso é maluca? – reclamei, e me levantei de um pulo—. Por que fez isso?
Caleb apareceu na porta, transtornado.
— Que aconteceu? Ouvi você gritar. — Levava uma lata enferrujada em cada mão.
Apontei para Arden, que virou para o lado enquanto dava grandes gargalhadas. Acabou chorando de rir e secando as lágrimas com as dobras da camisa.
— Arden me deu um susto de propósito. Isto foi o que aconteceu.
Caleb olhou para nós duas. Tentou dizer algo, mas não foi capaz de articular uma palavra. Meu coração parecia que ia saltar do peito.
— Não tem graça – exclamou por fim –Se tivesse uma faca poderia ter te matado! Andei de um lado para outro, batendo as mãos para enfatizar as palavras.
Arden se ajoelhou e dobrou as costas e encostou o rosto no chão —. Arden olhe para mim; Se importa de levantar—se e me encarar? — Gritei.
Caleb me segurou pelo braço e me obrigou a afastar—me.
No entanto, ela segui de cabeça baixa, seus cabelos eram um emaranhado de fios. Retorcendo—se, bateu no chão com a palma da mão.
—Arden... – repeti mais amável. Tinha os olhos fechados e a face contraída.
Se levantou afinal, respirando com dificuldade. Estendi—lhe as mãos, mas ela não as apertou, sendo que, fazendo um grande esforço, se curvou até se converter em um novelo. Tossia muito forte; não mais nada que seus estertores. Me agachei e apoiei minhas mãos em suas costas, enquanto ela tinha convulsões, tentando liberar os pulmões do peso que a sufocava. Quando se acalmou, ambas baixamos os olhos.
Ela tinha as mãos ensanguentadas.
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