14

  Caleb me ajudou a saltar sobre um fosso, sem soltar minha mão. Corremos sobre as rochas e troncos partidos. Chegavam até mim os ruídos que os homens faziam abrindo passagem com dificuldades pelo espesso bosque.

   — Vão até a margem! — gritou um deles.

   Caleb continuou avançando como se conhecesse todas as  fendas das pedras caídas, os lugares cobertos de musgo dos troncos podres. Eu não tirava os olhos de suas pernas, para seguir suas pegadas.

   Viramos em uma curva e perdemos as lanternas de vista. Através da chuva consegui  apenas divisar uma estrutura a nossa frente,  desmoronado junto  à margem do rio. Parecia uma imensa barata morta.  Caleb correu até ele. Eu só tinha visto um helicóptero uma vez em minha vida, nas páginas de um livro da biblioteca, mas reconheci os hélices dobrados e a cabine semelhante a uma capsula.

   — Depressa... Entre— murmurou, e quebrou os restos de uma janela.

 Me encolhi para entrar na concha enferrujada, e a escuridão me envolveu. O garoto entrou atrás de mim, pisando na poeira do chão.

   —Ai vem eles –  sussurrou enquanto me arrastava para os assentos dianteiros.  A chuva que açoitava o para—brisa produzia um som ensurdecedor e incessante.

   — Temos que nos esconder –  disse, e enquanto apalpava as entranhas mofadas do aparelho, toquei um objeto bolorento, da metade de meu tamanho: seguramente um assento do passageiro que havia se quebrado durante o acidente. Nos metemos debaixo, e o som da tempestade silenciou nossa respiração.

   Me amontoei junto a Caleb na escuridão, debaixo do assento que cheirava a umidade, e percebi o contato de seu corpo: meu ombro contra o seu, minha perna contra a sua. A proximidade era alarmante, mas não me atrevi a me mover.

  As vozes dos soldados ganharam intensidade quando chegaram a margem. Uma lanterna iluminou a parte superior do helicóptero, e os vidros quebrados cintilaram. Caleb, a quem quase não se distinguia apesar da luz, levou um dedo aos lábios em sinal de silêncio.

   — Devem ter dado a volta no bosque. Vou à margem e te espero na estrada – disse um homem muito próximo. Sua lanterna iluminou o interior do helicóptero, e a luz pousos em um monte de lixo. Depois baixou para a cabine acidentada e ao esqueleto do piloto, ainda preso ao acento. Por fim iluminou meu sapato direito, a única parte de mim que não havia escondido.

   Vá embora – pensei, e rezei para que a luz se afastasse de meu pé—. Não está vendo nada. Fechei os olhos e  ouvi outra voz distante, gritando algo. A luz sumiu —. Nada.

  Ouvi passos do outro lado do para—brisa, e pouco depois o bosque ficou em silêncio. Ficamos ali, amontoados debaixo do assento destruído, até que parou de chover.

  — Talvez haja comida  aqui dentro  –  disse Caleb ao fim  e,  esticando as pernas, se afastou do assento. – Ajude—me a procurar.

  Tateei na escuridão procurando me afastar do esqueleto do piloto. Pouco depois encontrei uma espécie de corda amarrada a uma caixa metálica bastante grande.

  — Isto? – perguntei entregando minha descoberta a Caleb.

  Ele agitou a caixa. Após um som alto, uma luz se acendeu.

  — Muito bem— respondeu com um sorrido.  – Uma lanterna. Talvez? A segurou e começou a abri—la, a luz se tornou mais intensa.

  Enquanto esvaziávamos o conteúdo da caixa no chão, procurando entre latas e sacos de papel de alumínio, estudei seu rosto. O rio havia limpado quase toda a sujeira de sua pele, que nesse momento era brilhante e suave; umas poucas sardas manchavam seu nariz. Mas se mostrava impossível deixar de olhar para detalhes fortes e angulosos de seu rosto, nem dos ossos que se deixavam perceber por baixo da pele. Sabia que devia temê—lo, mas, apesar disto, sentia uma fascinação. Qual palavra a professor a tinha usado para descrever seu marido, aquela que Eu e Pip riamos nos colégio? Caleb, apesar das unhas negras e do cabelo embaraçado, era quase... Belo!

  Me deu um pequeno saco de papel alumínio.

  — E agora por que está rindo?— Perguntou com curiosidade.

  — Por nada – me apressei em responder. Aproximei o saco de meus lábios e bebi a agua quente.

  — É esta a cara que faz quando soldados armados a perseguem?

   — Esfregou a pele para secar a chuva de seus braços, ombros e rosto. Por acaso é divertido?

  — Esqueça.

  Abriu então uma lata com uma pasta marrom.

   — Por acaso... –continuou enquanto lambia a tampa—, ria de mim?

   —Nem de brincadeira— Observei como levava a lata até a boca e a esvaziava o conteúdo com a língua. Fazia barulho para mastigar com a boca aberta, de modo que qualquer atração desapareceu imediatamente— Que nojo!  – murmurei.

  — Não parece apetitoso? Pois então tem ervilhas desidratada — Me atirou outro saco. Comi as ervilhas secas em silêncio, mas não deixava de me olhar—Você e essa garota... — Apontou com a cabeça—. São amigas ou não?

   Enfiei outra ervilha na boca, mas não engoli até conseguir umedece—la. Lembrei—me perfeitamente do momento em que havia decidido que Eu e Arden éramos tão diferentes que nunca seriamos amigas: participávamos de uma corrida no jardim. Cursávamos o sexto ano do  colégio, e como Pip tinha menstruado esta manhã, se sentia muito incomodada com os absorventes que a doutora Hertz havia lhe dado, mas Eu e Ruby a havíamos convencido a correr conosco, embora não quisesse. Quando chegou próximo ao lago e esperava sua volta, Arden abaixou seu short.

   Antes, já havia dado muitas oportunidades a Arden: Quando brigou com Maxine no banheiro e machucou seus lábios, jurei que se tratava de um acidente; a defendi de outras meninas quando enfrentou a professora Florence e lhe disse que não era sua mãe, que tinha uma fora do colégio e estava viva e que, por tanto, não lhe fazia falta outra mentora; inclusive lhe havia levado algumas frutas silvestres em seu quarto de castigo...Mas o que havia feito com Pip passava do limite.

―Tenho certeza que está muito orgulhosa de você mesma – gritei, enquanto Pip corria para o dormitório com os olhos inchados e vermelhos—. Durante um segundo conseguiu que alguém fosse mais patética que você.‖ Depois desse dia, fiz todo possível para demonstrar  quão pouco me importava e a pena que me dava. Na verdade quase ninguém falava com ela, nem sequer para escutar as estórias sobre sua mansão ou sobre seus pais que trabalhavam na cidade.

  Engoli a saliva; a comida sem gosto por fim havia se umedecido em podia engoli—la.

  — Não..., não se pode dizer que somos amigas.

   Caleb sentou—se, apoiando—se na parte traseira do assento do piloto, e Apoiou a nuca.

  — Por isso fugiu nadando. Não se importa com...

  — Sim – interrompi— Ela só se importa com ela mesma. Sempre foi assim.

  Me observou um instante,  surpreendido, e pois as latas vazias na caixa. Depois pôs a cabeça para fora pela janela quebrada, dando uma olhada, afirmou:

   — Creio que deveríamos passar esta noite aqui. É possível que volte a Chover e os soldados não voltarão até que aja dia. Talvez amanhã Arden apareça.

  —Não aparecerá – murmurei. Havia custado muito para me aceitar e agora que sabia que me procuravam, certamente fugiria para a floresta, afastando—se de mim o mais que pudesse.

   Tiramos algumas mantas finas da caixa de emergência e as estendemos no extremo oposto ao da humidade da cabine.

  — Faltam apenas algumas horas para que amanheça – disse Caleb—. Não tenha medo.

  — Não tenho – afirmei.

  A luz da lanterna ficou mais fraca e finalmente se apagou.

  — Ótimo – acrescentou Caleb. Mas quando dormiu pensei na Cidade de Areia e no homem que esperava lá. O rei sempre havia sido uma figura reconfortante para nós, um símbolo de força e proteção. Mas, naquele momento, seu Retrato do colégio, em que se destacavam suas flácidas feições e reluzentes olhos que pareciam me perseguir, parecendo me ameaçar. Por que havia me escolhido para ter seus filhos se era mais velho que eu mais de trinta anos? Por que eu dentre todas as garotas do colégio? As professoras diziam que o rei era uma Exceção, o único homem em que se podia confiar. Mais uma mentira.

  Sabia que continuariam a me procurar. Ele não desistiria, pois o impulsionava seu compromisso com Nova América. A diretora Burns cruzava suas Mãos sobre o peito quando nos explicava o trabalho do monarca, que havia salvado o povo da incerteza depois da epidemia. O rei afirmava que não havia tempo para discutir, que teríamos que continuar sem olhar para  traz,  sem parar,  sempre  adiante.

―É uma oportunidade – repetia a diretora, com os olhos molhados de lagrimas patrióticas—, Só temos uma oportunidade de reconstrução.

   Minha roupa estava molhada. Espremi a bainha de minha blusa e as calças lenta e cuidadosamente, e a agua gotejou o solo. Quando era pequena, Ruby me perseguiu pelas calçadas, fazendo—se passar por um monstro de garras afiadas e dentes terríveis. Empenhada em fugir a todo o custo, corri entre os baldes de lixo, abri e fechei portas sem parar de gritar. Pedi que parasse, gritando aterrorizada, mas Ruby achava muito engraçado. Quando me alcançou, cai sem folego. A brincadeira havia sido muito real. Jamais esqueci o terror que senti ao ser capturada.

  Me encolhi na fina manta e fechei os olhos, sonhando com o conforto de minha antiga cama, cujos lençóis brancos me convidavam a dormir. Não senti o odor familiar da carne de veado do jantar, as soleiras das janelas da biblioteca, onde Eu, Pip e Ruby nos sentávamos para escutar a fita proibida da Madona escondida por traz do volume da Arte Americana: uma história cultural; e senti o contato do velho rádio toca fitas a pilha em minhas mãos e a espuma dos fones em meus ouvidos enquanto tentava recordar a canção que falava de um homem em uma ilha. Estava pensando nos movimentos de Pip, distraída em uma espécie de baile secreto quando ouvi um ruído do lado de fora. Me encolhi em um canto. Caleb continuava dormindo; o rosto estava relaxado por causa do cansaço. Ouvi de novo o ruído: Três galhos se partiram.

  — Caleb— Sussurrei.

  Mas ele não acordou.

Fechei os olhos enquanto o ruído se ouvia mais próximo, cobri o rosto com a anta e fiquei tensa, morta de medo. Um click, uns ramos quebrados. O inconfundível som da pisada na mata. Afastei a manta de meu rosto e fiquei paralisada. Não podia me mover. Havia alguém fora do helicóptero, a poucos metros de mim, uma silhueta recortada contra a lua.

  E estava me olhando.

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