A primeira coisa que vi ao abrir meus olhos foi o céu: algo azul e infinito, muito maior do que eu havia imaginado. Durante os doze anos que vivi em um colégio, só havia visto um pedaço de céu que se estendia entre aqueles altos muros. Mas agora estava embaixo dele, percebendo as pinceladas de roxo e amarelo daquele gigantesco guarda-chuva, visível na luz do amanhecer.
Aterrorizada demais para parar, na noite anterior me afastei tão rápida quanto foi possível, caminhei por baixo de pontes em ruínas e caminhei em ravinas até que vi a maravilhosa placa que indicava o numero 80 iluminada pela lua. Descansei então em uma valeta, pois minhas pernas estavam esgotas de tanto que me sustentaram. Tinha a bunda da calça coberta de terra e a garganta seca.
Subi sobre um destaque do terreno, mais alto e plano, e contemplei a manhã, a ladeira estava coberta de um espesso gramado com flores, o capim crescia em um verde deslumbrante, e as árvores se torciam em posições incríveis. Serpenteando para dentro e para fora, umas ao redor de outras. Não pude reprimir o riso quando lembrei as imagens que havia visto do mundo antes da epidemia: fotografias de puros campos de capim cuidadosamente aparados, e fileiras de casas em ruas pavimentadas, cujas coberturas formavam quadrados perfeitos. Aquilo não se parecia nada com essas fotos.
No horizonte vi um cervo correndo por um antigo posto de gasolina. Antes da epidemia, aquilo tudo funcionava graças ao petróleo, mas as refinarias fecharam não sobrou ninguém para trabalhar nelas, atualmente o governo utiliza o petróleo e reparte uma parte em cada escola. O cervo parou para comer o capim que crescia em direção ao céu, enquanto a luz brilhante da manhã rasgava suas assas. Nisso tropecei e, ao cair, senti que havia batido contra uma saliência dura. Dois centímetros e meio de musgo cobriam a estrada.
-Olá!- gritou alguém- Olá?
Morta de medo ao ouvir a voz de um homem, olhei ao redor para ver quem falava, recordava-me das historias dos bosques e dos bandos de renegados que vagam por ele e vivam entre as árvores. Meus olhos param em uma cabana em pedaços, a alguns metros, coberta de hera, a porta estava aberta. Rastejei até ela para me esconder.
-Feche!- exclamou a voz.
Fiquei imóvel. No colégio não nos permitiam falar assim. Se considerava algo de ―má educação‖, e tais expressões conhecíamos, pois apareciam nos livros.
-Feche!- gritou a voz de novo em algum lugar acima de mim.
Olhei para o céu: havia um grande papagaio vermelho no teto da casa, observando-me com a cabeça inclinada.
-Ring, ring! Ring, ring! Quem é? - Bicou algo no telhado.
Havia visto um papagaio em um conto infantil, sobre um pirata que roubava tesouros. Pip e eu havíamos lido nos arquivos, passando os dedos sobre as ilustrações já descoloridas.
Pip... Há quilômetros de distancia acabara de descobrir minha cama vazia, com os lençóis desarmados e frios. Com certeza a formatura mudaria. Certamente, Ruby e Pip pensariam que eu teria sido sequestrada e não as ocorreria que eu teria sido capaz de fugir por vontade própria. Talvez Amélia – a ambiciosa da segunda classe- designada para falar o discurso de abertura da formatura, pronunciaria também o meu e guiaria as demais pela ponte. Quando compreenderiam a verdade? Talvez quando pisassem na costa vazia do outro lado? Ou quando abrissem as portas dublas e se encontrassem na sala de cimento?
Aproximei-me do papagaio, mas voltei.
-Como se chama?- Perguntei assustada com minha própria voz.
O papagaio me olhou com seus olhos negros, parecidos com brilhantes gotas de água.
-Peter! Onde está, Peter?- disse dando saltos sobre o telhado.
-Peter era seu dono?- perguntei. O papagaio abriu as assas como uma garra. – De onde vocês são?- Supus que Peter havia morrido há muito tempo durante a epidemia, ele havia abandonado o papagaio no caos que se seguiu. Contudo o papagaio havia sobrevivido por uma década. Esse detalhe me deu esperanças.
Queria perguntar mais coisas, mas a ave levantou voo e se converteu em uma mancha vermelha no céu azul, eu segui com a vista seu curso até desaparecer na distancia. Reparei então nas silhuetas que havia descendo o bosque dirigindo-se a estrada. Onde estava a sessenta metros, distingui as armas que carregavam nos ombros.
No momento não sabia como reagir sobre aqueles seres estranhos e alienígenas. Eram muito mais altos e forte que as mulheres, e inclusive seu modo de andar era distinto, mais desajeitado, como se fosse difícil andar. Todos usavam calças e botas, e alguns deles iam sem camisa exibindo o tronco moreno e bronzeado.
Avançavam em grupo, até que um deles levantou a escopeta e matou o cervo que estava comendo entre as ruínas do posto de gasolina. O animal caiu ao primeiro disparo, agitando as patas por causa da dor. O pânico se apossou de mim: eu estava na floresta, sobre a luz impiedosa do dia e havia um grupo de assassinos a menos de trinta metros. Eu lutei com a porta da cabana, arrancando as heras, até que encontrei a fechadura enferrujada.
O grupo se aproximou. Continuei mexendo a porta, puxando ela e golpeando com a mão para tentar quebrar ela. ―Abri-implorei- Abri, por favor,” Eu dei outro olhar para a esquina da cabana e vi os homens sob o toldo do posto de gasolina. Rodeavam o cervo. Um dos indivíduos cortou a garganta dele como se fosse um pedaço de fruta. O cervo estremeceu, se retorceu: ainda estava vivo.
Eu dei um puxão na porta, desejando que a diretora aparecesse de repente na estrada e que os guardas me aproximadamente em uma estrada de governo. Voltaríamos pelo caminho que haviam vindo e os homens ira fugir até que virassem pontos negros no horizonte, até que estivessem a salvo.
Mas minha fantasia sumiu, como a neblina consumida pelo sol da manhã. A diretora não me protegeria, e o colégio não era mais um lugar seguro.
Não havia lugar seguro.
A fechadura cedeu no fim, e quase cai de bruços na obscura cabana. Joguei a mochila lá dentro, fechei a porta e caminhei por um estreito corredor que levava a um quarto grande. Sobre as janelas cobertas de sujeira, as videiras estavam entrelaçadas de tal forma que não se via nada. Avancei procurei e comecei a perceber que não era uma cabine, mas uma grande casa ao lado da colina e medo enterrada na grama. Continuei me deslocando tateando pelas paredes. As paredes, enferrujadas e velhas, pareciam de pedra.
As vozes estranhas estavam se aproximando
-Raff, coloque a pele na bolsa e vamos de uma só vez.
-Você começa imbecil de merda- respondeu outro homem. A voz grave e rouca faltava nelas o tom cuidadoso que nos foi ensinado na escola.
Depois de assistir as aulas de “Perigos por causa de meninos e homens” durante um ano inteiro, aprendi todos os pontos fracos de uma mulher perante o sexo oposto. A primeira lição era intitulada “Manipulação e Sofrimento”. Para compreender ela, líamos detalhes de Romeo e Julieta e analisamos o modo que Romeu havia seduzido a jovem para acabar arrastando à morte. A professora Mildred nos deu uma palestra sobre a relação que havia mantido antes da epidemia, e como as alegrias em seguida se converteu em amargas depressões, impregnadas de raiva. Chorou a contar que seu ―amor‖ há havia abandonado depois de sua primeira filha, uma menina que viveu por pouco tempo por consequência da epidemia. Ele havia se escondido atrás de algo chamado ―confusão‖. Na lição de ―Escravidão Domestica‖ vimos antigos anúncios de mulheres que usavam avental. Mas a lição sobre ―Mentalidade de pilhagem” foi a mais terrível de todas.
A professora Agnes nos mostrou imagens ocultas capturadas por câmeras de segurança instaladas em uma parede. Eram embaçadas, mas se distinguiam três figuras: três homens. Encurralando um individuo por todos os cantos, roubaram as provisões que levava e o mataram com um tiro. Durante semanas eu acordava no meio da noite, banhada de suor, pois seguia vendo a chama branca do disparo e o corpo sem vida do homem cair no chão, com as pernas encolhidas.
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Comments
Anailda Silva
vão me desculpar já estou no capítulo 8 e ainda não consegui entender a história
2024-01-26
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