Capítulo 5 . Invisível.

Caminhando em direção ao alto da colina, de onde se avista toda pequena cidade de Campos altos, Alice sente a brisa fria no seu rosto, o casaco velho e furado não lhe aquece como devia, mais ela não se importa, esse horário, o amanhecer, é seu. O momento em que se sente ela mesma, livre das repreensões, chacotas e ordens daqueles que deviam proteger-lhe.

Alice se senta numa pedra, já marcada pela sua presença diária ali. De onde está avista a rua principal, a casa paroquial, as melhores residências da cidade. Admira a casa dos Souza Prates, fechada desde que chegou para morar com a sua tia Mirtes a três anos atrás, de vez em quando vê ela aberta e uma moça fazendo a limpeza. Sempre teve a curiosidade de a conhecer por dentro, se contenta em observar de longe, apenas observar como mera espectadora de tudo, como sempre foi. Essa madrugada foi diferente das outras, antes do Sol nascer um carro para em frente a casa, os portões de entrada são abertos, lá dentro dois homens descem do carro e se dirigem a porta dos fundos entrando na casa. Alice reconhece que um deles é Vinícius Souza Prates, das conversas que ouvira entre a sua tia e prima, por ele estar usando uma bengala guia. Não consegue ver os seus rostos, parecem jovens e fortes. Os primeiros raios de Sol chegam a sua face, Alice precisa ir embora, tem que preparar o café da manhã e ajudar nos serviços da casa, desce a colina rapidamente, o vento e galhos dos arbustos desarrumam ainda mais os seus cabelos, quem a vê imagina ser um garoto correndo por aí, o seu corpo pequeno e estatura baixa não condizem com a sua idade, acaba de completar vinte e um anos, sem nenhum parabéns, bolo ou presentes. O seu cabelo encaracolado, cortado por ela mesma, curto demais não a deixam nada feminina, passa sempre despercebida nos lugares, mais ela não se incomoda, já se acostumou a ser invisível.

Faz as suas tarefas, e na hora do almoço se senta calada a mesa onde o assunto é a chegada do herói de guerra a cidade.

Mirtes: — Sabiam que Vinícius chegou? O herói retorna.

George: — Herói?! Não esqueço as travessuras que ele fazia. Eu era o alvo da maioria delas.

Mirtes: — Agora ele está rico! Cego, mais rico! Seria um bom partido para você Clara?!

Clara: — Está ficando louca mamãe?! Eu me casar com um cego deformado? Nem em sonho!

Mirtes: — Clara, você sabe que o seu pai está endividado, entrando em falência, se quiser manter o nível que gosta precisa dar um jeito. Ou quer trabalhar?

Clara: — Ah! mamãe, é isso que quer para sua filha?

George: — Vou o convidar para passar a tarde aqui, pode até mudar de ideia Clara, infelizmente a sua mãe tem razão, as nossas economias estão no fim.

Alice ouve a tudo calada em seu canto, cansou de ouvir que só dá gastos, que é um peso, mesmo só usando roupas velhas de Clara, que é muito maior que ela, e comendo o mínimo possível além de trabalhar como uma escrava sem direito a nada. Agradece mesmo assim por ter um teto em sua cabeça senão fosse sua tia estaria nas ruas. Ouvir as intenções deles em relação ao recém chegado não lhe agradou, mais quem é Alice para opinar?

Vinícius queria ficar incógnito, rever a casa onde passou sua infância, onde foi feliz, ficar ali por uns dias resolvendo o que fazer da sua vida, mais como em toda a cidade pequena nada passa despercebido o viram chegar de madrugada e a novidade foi passando de boca a boca. Como a sua mãe havia ligado para metade da cidade perguntando por ele, ao meio-dia a cidade toda sabia que ele estava lá. Antes do almoço já havia recebido a visita de vários vizinhos e colegas de infância. Uns querendo rever o amigo, outros para ver como ele está "cego". Recebeu o convite de George para jantar, se lembrou de como a família dele era prepotente, se achavam melhores que todos da cidade não se misturando com os outros, lembrando também das travessuras que ele, Marcos e os seus amigos faziam com a famíliade George. Foi convidado também para uma recepção no salão da igreja, onde toda cidade estará presente.

Marcos: — Vai aceitar os convites? Para quem queria sossego esta bem requisitado.

Vinícius: — Não imaginei que mamãe ligaria para meio mundo a minha procura… o que acha? Devo ir?

Marcos: — Para a cidade é um herói. O herói deles. Vai e vê o que acontece.

Vinícius: — Me leva?

Marcos: — Te deixo lá. Não sou um herói, não fui convidado.

Vinícius: — Talvez seja melhor eu ir e matar a curiosidade de todos de uma só vez. Não verei o rosto de espanto ou pena deles mesmo. E sobre o convite de George será engraçado ouvir como ele vai tratar-me depois de tudo, se melhorou o seu jeito superior, não poderá chamar-me de moleque travesso!

Marcos: — Me lembro como o homem ficou quando jogamos ovos na sua casa! Ele nos mataria se nos alcançasse! — ri.

Vinícius: — E quando soltamos a criação de porcos que ele tinha? Gritava, xingava, vermelho como um pimentão! — ri também.

Marcos: — Éramos felizes e não sabíamos!

Vinícius: — Tem razão. Era feliz... Devo isso a eles… a todos.

Vinícius tem nítidos na sua memória tudo na cidade, conhece cada palmo da rua onde morava, onde viveu até os seus dezoito anos, cada pedra, cada árvore, cada cerca. Por sorte praticamente nada mudou nos últimos anos, o que o deixa mais seguro, saindo pelas redondezas da casa sem precisar da ajuda de ninguém, o seu olfato agora bem mais aguçados o faz reconhecer cheiros que antes passavam despercebidos. Os sons das aves, animais e até do vento o fazem se sentir menos angustiado, afinal a sua visita à terra Natal tem-lhe feito bem.

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