Isabel
Na primeira luz da manhã, os salões do castelo começavam a ganhar vida. Eu entrei no salão de jantar, ainda sonolenta, e encontrei Ricardo já à mesa, mastigando um pedaço de pão com manteiga. Bufei ao vê-lo, mas um leve sorriso traiu meu aborrecimento. A presença de Ricardo era uma constante em minha vida, uma que eu apreciava de formas que ele talvez nunca compreendesse totalmente.
"Bom dia, irmão. Vejo que começou o dia cedo, como de costume," disse, acomodando-me à mesa e pegando uma maçã do cesto.
"Claro, irmã. Não posso perder um momento sequer da sua gloriosa companhia," respondeu Ricardo, com aquele olhar sarcástico de sempre.
Ri e revirei os olhos, mordendo a maçã. "Você é impossível, Ricardo. Sempre tão... entusiástico."
"E você, minha cara Isabel, é a personificação da paciência e da serenidade," retrucou ele, com um sorriso malicioso.
Apesar de nosso sarcasmo constante, havia um carinho genuíno em nossa troca de palavras. Era assim que demonstrávamos nossa amizade sólida, apesar das circunstâncias que nos uniram como irmãos bastardos. Ricardo e eu tínhamos passado por muita coisa juntos, e cada piada e provocação só fortalecia nossa conexão.
Os dias seguintes no castelo foram uma mistura de tensão e risos. Os rumores sobre o ladrão misterioso que rondava o castelo começaram a se intensificar. O que antes era apenas roubo de comida agora incluía ouro e joias. O rei estava furioso, seus gritos podiam ser ouvidos ecoando pelos corredores, mas nossos corações eram tomados por uma estranha compaixão pelo ladrão. Havia algo de injusto em todo aquele cenário que nos inquietava.
"Esse ladrão é um problema, mas talvez não seja o inimigo que o rei quer pintar," comentei uma noite, enquanto conspirávamos em segredo na biblioteca. O ambiente estava abafado pelo calor das tochas e pelo peso de nossas preocupações.
Ricardo cruzou os braços e acrescentou: "Concordo. Ele está apenas tentando sobreviver, assim como muitos de nós aqui." Sua voz era firme, mas havia uma tristeza subjacente que eu podia perceber.
Leonardo, que estava sentado ao nosso lado, ainda pensativo sobre sua própria decisão de vida, olhou para nós e sugeriu algo ousado. "E se ajudássemos o ladrão? Deixássemos joias e ouro em lugares fáceis de encontrar. Assim, talvez possamos mudar algo neste lugar."
Antes que pudéssemos responder, Míriam, irmã de Leonardo, entrou na sala com seu habitual sorriso maroto. "Ah, então é isso que vocês estão tramando? Parece divertido. Contem comigo!" Ela sempre estava à procura de uma aventura, de uma maneira de agitar as coisas.
Míriam era uma força da natureza, sempre pronta para aprontar algo. Sua energia era contagiante e, apesar de suas travessuras, ela sempre trazia um ar de leveza para nossas discussões mais sérias. A ideia de Leonardo era arriscada, mas fazia sentido. Conspiramos em sussurros, planejando maneiras de deixar os itens de valor em locais estratégicos. A sensação de fazer algo contra a tirania do rei nos unia ainda mais. Era como se estivéssemos encontrando uma nova razão para nossas vidas naquele tempo. Se o rei quisesse a cabeça do ladrão, faríamos o possível para frustrar seus planos. Afinal, o ladrão era um símbolo de resistência, uma faísca de esperança em meio à opressão.
No entanto, enquanto tramávamos essas ações ousadas, o tempo não parava. A cada dia, a data do baile se aproximava, trazendo consigo uma mistura de ansiedade e excitação. O grande salão do castelo estava sendo preparado meticulosamente. Cortinas de veludo vermelho, candelabros dourados, mesas fartas de comidas exóticas. Eu me sentia uma peça num tabuleiro de xadrez, prestes a ser movida para uma posição crucial.
Na noite do baile, o salão estava deslumbrante. Cada detalhe parecia ter sido pensado para impressionar os convidados. Eu estava nervosa, mas também curiosamente ansiosa pelo que estava por vir. Ao meu lado, Leonardo estava impecavelmente vestido, mas seus olhos ainda guardavam a sombra da decisão que precisava tomar. Ricardo, por outro lado, parecia imperturbável, lançando piadas sarcásticas enquanto observava os nobres dançarem. E Míriam, com seu sorriso travesso, já planejava alguma brincadeira que, de alguma forma, sabia que animaria a noite.
A música cessou de repente, e todos os olhares se voltaram para o centro do salão. O rei ergueu-se de seu trono improvisado, seu semblante solene. Meu coração acelerou, antecipando suas palavras.
"É com grande alegria que anuncio o casamento de minha filha Isabel e do valoroso Leonardo, marcado para o próximo mês," proclamou o rei, sua voz ressoando nas paredes do salão.
Aplausos e murmúrios encheram o ar. Senti meu rosto corar enquanto lancei um olhar rápido para Leonardo. Ele sorriu de forma encorajadora, embora eu soubesse que por dentro ele estava dividido. A decisão de Leonardo sobre ficar ou voltar ao futuro estava cada vez mais próxima, e isso pesava em seu olhar.
Ricardo, ao nosso lado, sussurrou: "Bem, parece que a nossa pequena peça finalmente encontrou seu palco."
Sorri para Ricardo, reconhecendo a ironia em suas palavras. Por mais que odiássemos o rei, sabíamos que nossos destinos estavam entrelaçados de uma maneira que nem mesmo o tempo poderia desfazer. A decisão de Leonardo, o ladrão do castelo, nosso casamento iminente – tudo era parte de um jogo maior. E juntos, estávamos determinados a jogar até o fim.
Na semana que se seguiu ao anúncio do casamento, o castelo entrou em uma espécie de frenesi. Os preparativos estavam em pleno andamento, e os servos corriam de um lado para o outro, tentando cumprir as exigências do rei. Enquanto isso, nós quatro continuávamos com nossa missão secreta de ajudar o ladrão. Cada noite, deixávamos pequenos tesouros em locais onde sabíamos que ele poderia encontrar. Era um jogo perigoso, mas necessário. A cada sucesso, sentíamos uma pequena vitória contra o regime opressor do rei.
Um dia, enquanto caminhava pelos jardins do castelo com Ricardo, ele virou-se para mim com um sorriso enigmático. "Você percebe o que estamos fazendo, não é? Somos cúmplices. Estamos nos rebelando de uma forma que nunca imaginamos."
"Sim," respondi, pensando no impacto de nossas ações. "Estamos plantando as sementes de algo maior. Algo que o rei nunca poderia entender."
Os dias passavam rapidamente, e a data do casamento se aproximava. O baile de noivado havia sido apenas o começo. Leonardo continuava dividido entre sua vida no futuro e o que ele havia começado a construir conosco no passado. Nossa missão secreta de ajudar o ladrão se tornava mais arriscada a cada dia, mas também mais necessária.
Naquela noite, quando todos os preparativos para o casamento estavam quase completos, fui até a torre do castelo em busca de um pouco de paz. Precisava refletir sobre tudo o que estava acontecendo. Para minha surpresa, encontrei Leonardo lá, olhando pela janela com um ar pensativo.
"Leonardo," chamei suavemente, entrando no pequeno recinto. "O que faz aqui?"
Ele se virou lentamente, seus olhos refletindo a luz das estrelas. "Isabel, preciso te contar algo. Algo importante."
Meu coração bateu mais rápido. "O que é?"
Leonardo respirou fundo e começou a explicar. "Eu não sou deste tempo. Sou do futuro. Fui trazido para cá por um gato, um ser misterioso que tem o poder de atravessar o tempo. Ele me trouxe aqui para cumprir um propósito, embora eu ainda não saiba exatamente qual é."
Fiquei em choque, as palavras dele girando em minha mente. "Do futuro? Como isso é possível?"
"Eu sei que é difícil de acreditar, mas é a verdade. E agora, esse gato voltou, oferecendo-me a chance de retornar ao meu tempo. Estou dividido, Isabel. Não sei se devo ficar ou ir."
Olhei para ele, tentando processar a revelação. "E o gato... é o mesmo que me visita todas as noites?"
Leonardo assentiu. "Sim. Ele está sempre por perto, observando, esperando o momento certo para intervir."
As peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar em minha mente. Tudo fazia sentido agora. "Então, você tem que decidir entre voltar para o futuro ou ficar aqui... conosco."
Ele olhou para mim com intensidade. "Sim. E essa decisão está me consumindo."
Toquei seu braço, tentando oferecer algum conforto. "Qualquer que seja sua escolha, estaremos aqui para você. Mas saiba que você já faz parte de nossas vidas agora."
Leonardo sorriu, mas havia tristeza em seus olhos. "Obrigado, Isabel. Suas palavras significam muito para mim."
Naquela noite, depois da revelação de Leonardo, senti como se uma sombra tivesse descido sobre mim. O peso de suas palavras apertava meu peito, e a ansiedade começou a se infiltrar como um veneno lento. Fechei-me em meu quarto, tentando ordenar meus pensamentos, mas tudo parecia caótico e desesperador.
Não consegui dormir. A imagem de Leonardo indo embora, deixando-me para trás, insistia em me assombrar. Ele voltaria para um tempo ao qual pertencia, e eu ficaria presa aqui, destinada a um casamento com o conde, um homem que mal conhecia e menos ainda desejava. As paredes do quarto pareciam se fechar ao meu redor. Cada batida do meu coração soava como um tambor de guerra, um prelúdio para uma batalha perdida.
"Não posso suportar isso," murmurei para mim mesma, sentindo lágrimas quentes rolarem pelo meu rosto. A raiva começou a borbulhar junto com o medo. Como ele podia pensar em partir agora, depois de tudo que passamos juntos?
Os dias seguintes foram um borrão de emoções intensas. Evitei Leonardo a todo custo. Cada vez que pensava em sua escolha, uma onda de raiva e tristeza me dominava. Não queria vê-lo, não queria ouvir suas justificativas. A traição parecia insuportável.
Ricardo, percebendo meu estado, tentou me consolar. "Isabel, você precisa falar com ele. Fugir não vai resolver nada."
"Eu não posso," respondi, minha voz trêmula. "Se ele decidir partir, como posso viver com isso? Como posso me casar com o conde sabendo que poderia ter sido diferente?"
"Mas você precisa enfrentar isso. Fugir só vai prolongar a dor," insistiu Ricardo.
Míriam, com seu jeito travesso, também tentou me animar, mas mesmo suas brincadeiras não conseguiam afastar a sombra que pairava sobre mim. Leonardo, por sua vez, parecia tão perdido quanto eu. Podia vê-lo à distância, seus olhos cheios de perguntas não respondidas. Mas eu não estava pronta para encarar aquelas perguntas.
Finalmente, dois dias depois, não pude mais evitar. Leonardo me encontrou na biblioteca, onde eu tentava me distrair com um livro. Ele entrou sem ser anunciado, a tensão em seu rosto clara como o dia.
"Isabel, precisamos conversar," disse ele, sua voz firme.
Levantei o olhar, a raiva finalmente transbordando. "O que mais há para dizer, Leonardo? Você vai embora, vai nos deixar!"
"Não é tão simples," respondeu ele, tentando se aproximar. "Você não entende o que estou passando."
"Não entendo? Como pode dizer isso? Estou aqui, presa neste lugar, enquanto você tem a escolha de voltar para sua vida! E se você partir, vou acabar casando com o conde. É isso que você quer para mim?" As palavras saíram ásperas, cheias de dor.
Leonardo recuou um pouco, chocado com minha explosão. "Isabel, eu te amo. Mas essa escolha não é fácil. Estou dividido entre dois mundos, dois futuros."
"Então escolha," eu disse, minha voz trêmula. "Mas saiba que sua escolha afeta não só a sua vida, mas a minha também. Se você for embora, será como se estivesse me abandonando."
O silêncio caiu entre nós, pesado e opressor. Leonardo olhou para mim, a dor em seus olhos espelhando a minha. "Eu... preciso de tempo para pensar," disse ele finalmente, antes de sair da sala.
Passei os dias seguintes em um torpor de ansiedade e raiva. A ideia de perder Leonardo me corroía por dentro, mas o medo de me casar com o conde era igualmente aterrorizante. Sentia-me presa em um pesadelo sem fim, onde cada decisão parecia levar a um sofrimento maior.
Então, na véspera de um novo jantar real, um mensageiro veio me buscar. "O rei solicita sua presença no jantar desta noite," anunciou ele formalmente.
Senti um calafrio percorrer minha espinha. O rei sabia jogar suas cartas, e esta convocação só podia significar uma coisa: mais pressões e expectativas. Preparei-me relutantemente, vestindo um vestido apropriado para a ocasião. Quando finalmente desci ao salão de jantar, vi Leonardo já sentado, seu rosto uma máscara de emoções reprimidas. O conde estava ao seu lado, conversando animadamente com o rei.
Sentei-me ao lado de Leonardo, o silêncio entre nós quase tangível. Ele olhou para mim, seus olhos cheios de desculpas não ditas. Eu desviei o olhar, a dor ainda crua demais para ser enfrentada. O conde lançou-me um sorriso, mas tudo o que eu conseguia sentir era uma sensação de desespero.
O jantar começou, mas para mim, a comida parecia areia em minha boca. O rei, percebendo a tensão, tentou animar a conversa, mas suas palavras caíam em ouvidos surdos. Cada momento parecia um prelúdio para uma decisão que poderia mudar tudo.
Enquanto cortava a carne, minha mente vagueava por um mar de pensamentos turbulentos. Se eu matasse esse conde maldito, talvez finalmente estaria livre de todas as obrigações que me aprisionavam.
"Querida, você está tão calada esta noite," observou o rei, quebrando o silêncio tenso à mesa. Eu apenas sorri de forma forçada, sentindo o olhar de Leonardo sobre mim, como se ele soubesse o que estava acontecendo em minha mente.
Ele era o motivo pelo qual eu queria queimar este castelo por inteiro. Como podia dizer que me amava em uma noite e na próxima estar planejando ir embora? Como se eu não fosse nada para ele? Foi tudo apenas uma ilusão da minha mente?
"Há algo de errado?" Ouvi a voz de Leonardo pela primeira vez naquela mesa, interrompendo meus pensamentos sombrios.
"Obviamente há algo de errado," respondi com amargura, olhando diretamente para ele e percebendo que ele não estava falando comigo.
"Só..." sua voz foi cortada por uma tosse violenta, seu rosto começando a ficar vermelho enquanto lutava para respirar.
Ele se afastou da mesa e caiu no chão sem ar.
"LEONARDO!" Míriam saltou de sua cadeira, horrorizada, enquanto observava a sopa. "TEM MORANGO NA SOPA, CHAMEM UM MÉDICO!"
O pânico se espalhou pela sala enquanto todos corriam para ajudar Leonardo. Meu coração batia forte, uma mistura de medo e culpa enchendo meu peito. Não importava o que tivesse acontecido entre nós, eu não desejava esse destino para ele.
Meu corpo estava gelado, mas em um momento, consegui reagir e me abaixei para olhá-lo. "Vai ficar tudo bem, só respira, por favor," eu sussurrava enquanto ele forçava a gola da roupa que usava, buscando ar desesperadamente. "EU SEI O QUE FAZER!"
Só havia uma opção. Corri diretamente para meu quarto em busca daquele que poderia nos ajudar. Não havia cura para ele aqui; não havia como salvar meu único amor nessa época. Ele precisava voltar.
Ao entrar no quarto, o vi deitado sobre minha sacada e, de imediato, me ajoelhei ao seu lado. Qualquer um que me visse naquela situação poderia me chamar de louca ou bruxa.
"POR FAVOR, LEVE-O DE VOLTA! EU NÃO POSSO PERDÊ-LO," implorei ao gato. "Por favor, ele é tudo que tenho. Eu prefiro vê-lo partir e saber que está bem a vê-lo morrer. Por favor, por favor..."
Eu estava de olhos fechados, não ouvia mais nada, apenas chorava. Mas logo, uma luz muito forte atravessou a escuridão de meus olhos, e um sono profundo me fez cair.
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Atualizado até capítulo 20
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