Capítulo 2: O canto da maledicência

^^^“ Não poderia pedir ao meu coração para esquecê-lo... Seria egoísmo de minha parte.”^^^

♔ ELENA CROMWELL

— Já disse-lhe, minha senhorita. – Anna leva outro pedaço do pão quente aos lábios e o enfia com veracidade na boca, enquanto o mastiga e limpa as mãos na barra do vestido surrado. — Há coisas aí!

Dou de ombros, enquanto remexo o meu ensopado com a colher.

— A megera segunda não está sorrindo pelos cantos atoa.

— Não quero falar sobre a minha irmã, Anna. Principalmente se for coisas ruins. – Levo a colher aos lábios e tomo um pouco do caldo, sentindo seu delicioso sabor preencher as minhas papilas gustativas e inundar os meus sentidos.

Anna cozinha tão bem, que eu poderia passar o resto da minha vida limpando toda a residência Cromwell, se isso significasse comer todas as suas refeições preparadas! Pensei, enquanto tomava mais algumas colheradas do ensopado de legumes com carne de cordeiro cozida.

— Meia-irmã! – Anna lembra e franze o cenho, como se pensar em Meredith como minha irmã de sangue, fosse um insulto.

— Não compartilhamos do mesmo sangue, mas por contrato, somos uma família... De qualquer forma... – Forço um sorriso, tentando não pensar muito nisso.

— Famílias não escravizam uns aos outros. – Suas palavras soam mais aferidas do que deveria parecer.

— Eles só almejam o meu bem... – Digo baixo, mesmo que esteja tentando me convencer de algo que sei perfeitamente que não é verdade.

Meus olhos fitam a mulher anosa, com os cabelos presos num coque alto, enquanto rugas do tempo compõem a sua pele branca. Seus olhos são azuis claros, os mais lindos que já vi, assim como uma nascente de rio escondida por vinhas longas.

— Minha senhorita... – Anna suspira e coloca a mão em cima da minha, onde repousava na superfície de madeira da mesa. Sinto a sua pele gelada se entrelaçar com a minha e levantando o meu olhar, encontro ternura e acolhimento num sorriso inteiro em seu rosto.

— Elena... – A corrijo novamente. — Sabes que formalidades são apenas com a minha família, Anna. A amo como uma segunda mãe!

Anna suspira, e com um esboço de sorriso, aperta firmemente a minha mão, que prevalece em cima da mesa.

— Minha intenção não é fazê-la se sentir mal. Sabes que lhe prezei por alverido, desde quando nem as primaveras chegaram à sua primeira estação.

Sorrio. Anna é como uma segunda mãe para mim, como havia mencionado antes para a mesma. Desde quando era apenas uma garotinha, ela sempre esteve ao meu lado, como um laço que nos unia fortemente. Talvez, seja por isso que prefiro estar junto dos criados do que na residência Cromwell em si.

A porta da cozinha se abre abruptamente e Charla passa por ela, enquanto segura um cesto talhado com alguns lençóis sujos dentro do mesmo. Anna retira a sua mão de cima da minha e me lança uma piscada rápida, como se quisesse me reconfortar, acima de tudo.

— Não acreditariam em mim, quando eu lhes contar... – Charla é uma das poucas criadas que ainda restara na residência, no entanto, é a única que não poupa a língua quando o objetivo é meter-se nos assuntos alheios.

— Não estamos interessadas nas suas fofocas. – Anna abana a mão em frente ao rosto, mas com um baque, Charla larga o cesto em cima do balcão e corta as palavras de Anna.

— O rei dará um baile em homenagem ao noivado de seu primogênito.

Volto a atenção na minha tigela com metade do ensopado, Anna também não parece interessada no assunto, já que é de costume da família real, festejar por motivos banais, como, o nascimento dos filhotes de vossas cadelas, por exemplo. No entanto, prefiro guardar os meus pensamentos atrás dos meus lábios fechados, pois não quero ter a última visão da minha vida, por um algoz empunhando um machado gigante em meu pescoço.

— Sempre há bailes concedidos por vossas altezas reais, Charla. – Anna pega uma faca e começa a picotar algo que suponho ser um punhado de tomilho.

— Claro, claro... – Ela começa a retirar os lençóis do cesto, enquanto os junta em um braço livre.

— Mas este será local.

Meu olhar sobe.

— Queira perdoar-me, Charla... Mas temo não ter entendido... – Entrego, a olhando surpresa.

— Nas terras vizinhas, à dois dias dos campos Cromwell. Todos os nobres da região estarão lá para comemorar e desejar as boas alacridades aos noivos.

— Então... É por isto que Meredith tem se portado de forma tão estranha. – Pensei ter dito nos pensamentos, mas as palavras saem mais altas do que eu gostaria.

— A megera segunda planeja colocar as garras para fora. – Anna, que escutou o que eu disse, responde no mesmo tom.

Charla sorri nasalmente e sem demora, diz:

— Minha senhorita... A família Cromwell não recebeu nenhum convite.

Quase me engasgo com o ensopado e Anna segura o riso.

— Sem escusas, termine!

— O arauto retornou depois de longas semanas longe dos campos Cromwell, e em nenhuma das cartas que portava, estava o convite para as grandes portas douradas do palácio do centro de Durham.

— Meredith e Margot devem estar roendo as unhas de furor! – Sorrio, mesmo que isso signifique que eu não irei.

A aristocracia dói. Apenas os mais nobres e próximos da família real são convidados para os grandes bailes e para o próprio palácio, isto é, duques, marqueses e até mesmo os condes, no entanto, somos uma família de barões, somos quase camponeses e possuímos um bocado de terra, mas isto vem mudando com o tempo... Já que suspeito que papai está falindo aos poucos, foi o que escutei há algumas noites passadas quando ele estava vendendo um terço do terreno do sul para o seu primo de Brindchester.

No entanto, viver com duas sanguessugas sob o mesmo teto, é sufocante! Margot sempre lota o seu armário com mais e mais vestidos caros e com mangas exageradamente bufantes, Meredith não fica atrás, sempre procurando novas jóias para o vosso relicário. Sempre tento manter o suficiente e comer menos para não desperdiçar, e metade dos criados foram mandados embora, justamente por este motivo mórbido, Anna, Carla, Lya e alguns cavalariços foram os únicos de sorte que restaram, até porque, Margot tiraria a própria vida se não tivesse alguém para servi-la ou cozinhar a sua comida. E isso se tornou um motivo para me ver como vossa criada, e meu pai? Nunca fora contra a vontade de sua nova esposa.

— Meredith ainda sonha que casará-se com um duque. – Ambas riem.

— Só se for com o duque de Kent. – Anna responde em tom irônico, pois duque de Kent foi descoberto como uma das maiores farsas de todo o reino, enganando até mesmo a própria família real. No entanto, não passava de um bastardo mentiroso, um camponês que viera de Verona, assim, tirando proveito pelo seu sotaque refinado e aparência chamativa.

— É impossível laçar um duque, principalmente quando se encontra em um nível tão baixo quanto o nosso. – Carla responde enquanto dá de ombros.

— Quem sabe o marquês de Overgaard não sinta-se prestigiado em finalmente pedir a mão da mesma?

— Meredith é o tipo de mulher que almeja mais do que merece. Isso acabará destruindo-a e a deixando sozinha.

Talvez seja por este motivo que a minha mãe se foi, meu pai age de forma que não condiz com os nossos laços, minha figura materna me trata como um animal e minha meia-irmã nunca fora uma amiga de verdade, alguém que eu pudesse contar. No entanto, não quero mais derramar mais uma lágrima sequer por isto, mas me aperta o coração, pensar que assim como Anna retém seus pensamentos sobre Meredith, ela vive uma situação boa, com uma mãe que faria de tudo por ela, enquanto a mim...

— Você deveria ir à este baile, minha senhorita. – Charla entrega, me interrompendo dos meus devaneios e fazendo-me perceber que estava parada, encarando a tigela de ensopado já vazia.

— C-como...? – Indago.

Anna vira seu olhar para trás, logo após colocar alguns legumes picados dentro da grande panela.

— E-eu não fui convidada. Além do mais, se a minha família recebesse o convite do próprio rei, eu seria obrigada a ficar.

Dou de ombros, enquanto me levanto e pego a tigela da mesa meio suja.

— Sua família, de fato, não foi convidada, mas isto não a impede de ir ao baile.

Anna não tira os seus olhos de mim, enquanto Charla apoia as mãos no queixo e me olha com certo interesse.

— Se alguém descobrisse uma trama dessas, o pescoço de Elena estaria na forca!

— Foi apenas uma sugestão, não é como se algo assim fosse funcionar. Além do mais, Margot nunca permitiria que eu saísse sem a vossa permissão. – respondo, enquanto Anna pega a tigela das minhas mãos e a mergulha no balde com água e sabão, a esfregando com uma bucha amarela e de formato engraçado.

— De fato... – Charla morde o lábio inferior, como se quisesse dizer algo, no entanto ela não se atreve. Apenas pega o cesto talhado novamente e se vira. — Apenas... Tente não dormir tarde, hoje.

Charla se retira da cozinha, deixando um grande ponto de interrogação no ar.

— Ela é jovem, mas não pode deixar que a ingenuidade e insensatez de Charla acentue o seu cérebro, menina. – Anna alerta, apontando com a colher de madeira que segura.

— Ela possui uma coragem que jamais teria, e mesmo que tivesse... Não estamos vivendo num livro de romance, Anna. – Sorrio, enquanto me levanto, fitando, de costas, a mulher mais velha mexendo a panela com os legumes e o caldo dentro, enquanto prova um pouco do tempero.

— Pois bem, lembre-se disso. – Anna me encara de soslaio. — Quanto mais conheço o mundo, mais insatisfeita fico.

A olho surpresa.

— Eu...

— Não a culpo por furtar os meus livros, Jane Austen foi um viço para que eu aguentasse os mais importunos da vida.

— Quando soube? – Indago, surpresa.

— Você é como uma ratinha, minha doce menina. – Anna sorri, antes de se virar novamente e jogar um punhado de salsinha na panela. — Uma ratinha que não sabe esconder os farelos que larga pelo caminho.

— E não está zangada? – Cruzo os dedos.

— Aprecio muito que a leitura a atraia.

Sorrio novamente. — É como ter a mamãe de volta...

Anna fica em silêncio, como se ponderasse nas minhas palavras. Com um suspiro, deixo o meu olhar na janela, fitando o sol, que se esconde atrás das montanhas altas.

— Preciso ir-me. Margot ceifará a minha vida se o vosso aposento não estiver brilhando antes que a lua apareça no céu.

Ao se apressar para sair da cozinha, sinto um aperto no peito, recordando vividamente das palavras que Anna citara de um dos livros que furtei de seu quarto para ler escondido. Orgulho e preconceito, de Jane Austen.

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Comments

Evelyn Victria

Evelyn Victria

Muito fofa a ana

2024-02-09

9

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Capítulos
1 Notas da autora
2 Agradecimentos/ Epígrafe
3 Prólogo
4 Capítulo 1: Era uma vez...
5 Capítulo 2: O canto da maledicência
6 Capítulo 3: Entre os laços do rancor
7 Capítulo 4: O amargor das palavras
8 Capítulo 5: Cinzas do passado
9 Capítulo 6: A impetuosidade de amar
10 Capítulo 7: Uma marca indelével
11 Capítulo 8: Outro lado da moeda
12 Capítulo 9: O canto da serpente
13 Capítulo 10: Motivações
14 Capítulo 11: O inesperado
15 Capítulo 12: O céu, a lua, a figueira e você...
16 Capítulo 13: Cada segundo...
17 Capítulo 14: O lorde Albertin
18 Capítulo 15: Décima oitava primavera
19 Capítulo 16: O destino é real
20 Capítulo 17: O caminho para a liberdade efêmera
21 Capítulo 18: O palácio real
22 Capítulo 19: Minueto
23 Capítulo 20: Deleitando-se com o fel
24 Capítulo 21: Decisão inusitada
25 Capítulo 22: Um dia após o outro
26 Capítulo 23: Agraciada a primeira vista
27 Capítulo 24: A visita do duque
28 Capítulo 25: O amigo do duque
29 Capítulo 26: Sentimentos vazios e arrependimentos
30 Capítulo 27: Pensamentos insanos, ações proibidas
31 Capítulo 28: Noite entre lua e cinzas
32 Capítulo 29: O duque do inverno
33 Capítulo 30: Promessas e arrependimentos
34 Capítulo 31: As fases da hipocrisia
35 Capítulo 32: Inocente pesadelo
36 Capítulo 33: A sorte entre abutres
37 Capítulo 34: A partida
38 Capítulo 35: Campos desconhecidos
39 Capítulo 36: Segredos sujos
40 Capítulo 37: Inseguranças
41 Capítulo 38: A primeira noite
42 Capítulo 39: A perversidade transvestida
43 Capítulo 40: Um pedido de desculpas
44 Capítulo 41: Aprender é ainda mais difícil do que descobrir
Capítulos

Atualizado até capítulo 44

1
Notas da autora
2
Agradecimentos/ Epígrafe
3
Prólogo
4
Capítulo 1: Era uma vez...
5
Capítulo 2: O canto da maledicência
6
Capítulo 3: Entre os laços do rancor
7
Capítulo 4: O amargor das palavras
8
Capítulo 5: Cinzas do passado
9
Capítulo 6: A impetuosidade de amar
10
Capítulo 7: Uma marca indelével
11
Capítulo 8: Outro lado da moeda
12
Capítulo 9: O canto da serpente
13
Capítulo 10: Motivações
14
Capítulo 11: O inesperado
15
Capítulo 12: O céu, a lua, a figueira e você...
16
Capítulo 13: Cada segundo...
17
Capítulo 14: O lorde Albertin
18
Capítulo 15: Décima oitava primavera
19
Capítulo 16: O destino é real
20
Capítulo 17: O caminho para a liberdade efêmera
21
Capítulo 18: O palácio real
22
Capítulo 19: Minueto
23
Capítulo 20: Deleitando-se com o fel
24
Capítulo 21: Decisão inusitada
25
Capítulo 22: Um dia após o outro
26
Capítulo 23: Agraciada a primeira vista
27
Capítulo 24: A visita do duque
28
Capítulo 25: O amigo do duque
29
Capítulo 26: Sentimentos vazios e arrependimentos
30
Capítulo 27: Pensamentos insanos, ações proibidas
31
Capítulo 28: Noite entre lua e cinzas
32
Capítulo 29: O duque do inverno
33
Capítulo 30: Promessas e arrependimentos
34
Capítulo 31: As fases da hipocrisia
35
Capítulo 32: Inocente pesadelo
36
Capítulo 33: A sorte entre abutres
37
Capítulo 34: A partida
38
Capítulo 35: Campos desconhecidos
39
Capítulo 36: Segredos sujos
40
Capítulo 37: Inseguranças
41
Capítulo 38: A primeira noite
42
Capítulo 39: A perversidade transvestida
43
Capítulo 40: Um pedido de desculpas
44
Capítulo 41: Aprender é ainda mais difícil do que descobrir

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