Dique (2/2)

Quando eles chegaram, a garoa havia se intensificado. Durante as noites comuns, o rio pascoal brilhava pela luminosidade que caia do luar, como um paraíso paisagístico que habitava um pequeno canto escondido em Florença. Entretanto, as nuvens no céu esconderam a lua atrás de si, como se não quisessem que Lucas o visse.

— Você está pegando alguma coisa? - Gregório realmente estava confuso.

— Não, apenas fique aqui. - Lucas abriu a porta do carro, ouvindo o leve "ah" de Gregório, que também havia aberto a porta e batido a cabeça contra o teto.

— Não posso simplesmente sentar e esperar enquanto você sai na chuva nesse estado - ele levou as palmas para proteger os olhos das gotas pesadas que caiam. Quando olhou de um lado para o outro, apenas escuridão os cercava. O dique no lago pascoal não parecia o lugar tranquilo de repouso comum, mas sim uma ponte para o abismo, levando-os direto para a escuridão eterna.

— Porra, eu já volto - sua voz estava baixa — Então podemos ir para sua casa ou seja lá onde infernos você queira ir quando acabar - ele respondeu, finalmente vendo o rosto de Gregório mostrar uma expressão de luta antes de voltar para o carro. Entretanto, aqueles olhos ainda o fitavam através das janelas fechadas.

 O frio anterior nos becos do subúrbio não se comparava ao frio de agora. Todo os arredores estava coberto por uma mata tropical, e o grande rio Pascoal, adjunto com a garoa que se intensificava a cada segundo, apenas aumentava a atmosfera tempestuosa que os rondava.

O pequeno bastardo havia ficado no carro, o idiota nem perguntou o que ele iria pegar ou aonde, quando claramente a única cabana pelas redondezas não o pertencia, e ele não tinha a mínima intenção de invadir a propriedade. Pelo menos, se ele não o tivesse enterrado a suposta coisa no chão, coisa que ele não tinha feito e o cérebro de bagre com certeza não pensaria.

 Ele se afastou, o carro tornando-se cada vez menor à medida que ele andava. Quando seus pés tocaram a ponte, um aroma típico, que o lembrava madeira úmida invadiu seus sentidos. Tudo estava escuro como o breu, sua visão embaçada pela chuva que caia drasticamente. Seus passos se tornaram pesados, até chegar na última estaca de madeira que se elevava pelo canto inferior da ponte. Ele tateou por momento, não sabendo se o tremor de seus dedos era influenciado apenas pelo frio ou pela ventania que se tornava cada vez mais violenta, seu corpo chegando a balançar uma vez ou outra.

( Em relação a ponte do dique, tentei procurar alguma que expressasse a cena que eu estou descrevendo. Esse é o dique de tororó. Então, caro leitor, apenas remova a paisagem urbana do fundo, e imagine essa cena em uma noite fria e chuvosa.)

Quando seus dedos tocaram uma superfície metálica fria, ele avançou por um instante antes de puxá-la cuidadosamente. Ele olhou para o camafeu na palma da mão, enquanto a corrente fina de prata pendia de um lado para o outro. Abrindo suavemente o relicário, ele esfregou levemente o polegar contra a fotografia borrada no pingente, que ainda estava coberto de pequenos restos de madeira, após o longo tempo de espera no interior da estaca.

Um líquido quente logo turvou sua visão. As gotas pesadas, que se misturavam com os rastros da chuva que perpassava seu rosto, caiam diretamente contra a face indistinguível da mulher, que sorria pacificamente na fotografia.

Um sorriso auto depreciativo pendia em seus lábios. Pilar passou seus últimos dias doando todo o afeto que ela acumulou durante anos em seu coração para um desconhecido, se ela soubesse disso, com certeza estaria se revirando no túmulo agora.

Se ela descobrisse isso antes, ele realmente gostaria de saber como ela reagiria. Se seus olhos, que eram sempre calorosos, iriam se voltar com ódio para ele?

 Se seus abraços se tornariam um afastamento cruel, se seu sorriso caloroso se tornaria indiferença nua.

Gregório, a qual a grama no túmulo possuía dois metros de altura, não compartilhava relação consanguínea com ele. Muito menos Adriana, que nesse momento havia se reunido com seu marido em outro plano. Ele devia estar feliz por Gonçalo, seu suposto pai, já ter morrido quando ele chegou. Se ele soubesse que havia abraçado o filho de outra pessoa, enquanto observava sua esposa passar por toda a dor novamente, ele provavelmente retalharia contra ele sem piedade.

Florença não era familiar, nem o México, nem o orfanato.

Ele não pertencia a lugar nenhum. Sequer o calor que ele lutará tanto para aceitar, era seu. Como se no meio de uma tempestade, quando ele estava ferido e cansado, alguém lhe desse comida e abrigo, tratando de suas feridas e mostrando algum calor afetivo. Apenas para depois ser expulso impiedosamente, as feridas não curadas abrindo-se de uma forma ainda mais excruciante, como se o mundo inteiro mal esperasse vê-lo morto.

Quanto a Marcelo, ele se lembrou de não conseguir reagir. Como se sua garganta estivesse sufocada por algodão, impedindo-o de gritar, de perguntar por quê.

Quando se lembrou do homem que o observava com olhos amorosos, enquanto cuspia todos os seus cálculos preparados durante anos, cada pequeno jogo, cada pequena manipulação...

Ele não queria pensar, Marcelo poderia ser chamado de família? De casa? Quanto mais ele pensava nisso, mais frio seu corpo ficava.

Quando o som rítmico da chuva batendo contra às águas turbulentas do rio Pascoal soou em seus ouvidos, ele escutou uma voz familiar.

Era Marcelo.

Ele havia se aproximado em algum momento, talvez por seu estado profundo de epifania, ele não tenha escutado os gritos urgentes do outro homem.

— Eu pensei ter dido para você esperar - o estado de Marcelo não era muito melhor que o seu. O homem estava encharcado da cabeça aos pés. Seus braços levemente levantados, enquanto a água da chuva escorria constantemente pelo seu rosto, seus cílios inquietos pela ventania. — Temos um acordo.

 A posição de Lucas não mudou. Suas costas levemente curvadas, enquanto segurava o pingente na palma. Ele desviou levemente o rosto para Marcelo, erguendo um sorriso que era mais feio que chorar.

— Você poderia me lembrar em que momento eu concordei com seus termos? - sua voz estava rouca.

A expressão de Marcelo era dura.

— Não vamos conversar sobre isso aqui, volte agora.

— Voltar? - Lucas desviou o rosto, voltando seus olhos para a fotografia danificada no relicário, cada vez mais encharcada. — Você poderia me dizer, para onde?

— Não faça brincadeiras sem sentido, minha paciência está se esgotando. Vamos para casa, ainda temos muito o que conversar.

Essa frase parecia ter tocado seu ponto sensível.

— Conversar? - Lucas respondeu, sua voz aumentando gradualmente — Não temos nada o que conversar, volte para sua maldita casa. Desde que estava no meu nome, já é seu, não é mesmo? Volte para o México, volte para a puta que pariu! Apenas me deixe em paz, porra!

 Marcelo parecia não querer mais esperar, sua impaciência nítida em seu rosto. Ele se aproximou rapidamente, e vendo o outro se aproximar, Lucas se afastou alguns passos para trás, inconscientemente movendo a mão bruscamente, quando ele viu, apenas o brilho metálico da corrente era visível, antes de afundar lentamente nas profundezas do lago.

A chuva estava densa, e o nível da água há muito havia subido acima do normal. Era provável que em algum momento, deixasse a ponte submersa. A água normalmente calma estava turbulenta. Quando Lucas ergueu o rosto novamente, sua expressão estava vazia. A cena a sua frente era como um filme em câmera lenta, a distância, ele conseguiu ver o corpo de Gregório se aproximando rapidamente, o homem provavelmente estava gritando alguma coisa, havia uma expressão de urgência em sua face enquanto ele corria. Ele não entendeu, esse homem vivia em prol das emoções? Talvez ele simplesmente gostasse de ser um degenerado. Quanto a Marcelo, ele estava ali, seus lábios abrindo e fechando, dizendo coisas que ele não conseguia entender, um zumbido maçante atravessava sua cabeça como uma lança.

Ele apenas viu o rosto de Marcelo mudar. pela primeira vez na vida, ele conseguiu ver um medo genuíno na expressão do outro. Ele estava há alguns metros de distância, então quando viu Marcelo erguer o braço, como se quisesse segura-lo, ele riu.

Não era uma risada auto depreciativa, fria ou de desdém.

Era apenas um sorriso, um sorriso por finalmente ter conseguido roubar uma expressão, fosse amor ódio, ou medo.... De Marcelo, ele estava feliz.

A cena a sua frente logo acelerou novamente, e a visão de Marcelo logo se tornou uma imagem residual borrada. Ele havia pulado, ou caído? Ele não se lembrava bem.

Ao contrário do que se esperava, antes do frio cortante após ficar submerso, um calor desconhecido logo deslizou pelo seu corpo. Como um ninho macio, que esperava pacientemente o filhote recém nascido.

O peso em seus pulmões logo se tornou maior, seu instinto fazendo seu corpo girar e se contorcer, todavia, inútil. Ele não tinha mais forças para mexer um músculo, então apenas suportou a dor lacinante que o sufocava dolorosamente.

Em algum momento, ele pensou ter sentido um toque suave. Como um abraço totalmente protetor, ele não hesitou em descansar por um segundo naquele calor residual, que logo se perdeu antes que todos os seus pensamentos e seus sentidos desaparecessem.

...----------------...

Quando Gregório notou que algo estava errado, já era tarde demais. Ele havia notado o carro familiar parado há alguns metros, antes de sair rapidamente do carro e correr em direção ao dique. Quando ele se aproximou, viu apenas duas figuras a distância. Uma delas era a silhueta familiar de Marcelo, e o outro homem próximo ao limite da ponte era Lucas, que estava obviamente sendo confrontado pelo outro. Ele tentou gritar algumas vezes, mas nenhum dos homens parecia nota-lo, ele rangeu os dentes, apressando os passos, sentido as roupas cada vez mais encharcadas grudarem em seu corpo.

Entretanto, em um momento, sua pupila dilatou. Marcelo havia se aproximado de Lucas em algum momento, e o outro homem se desequilibrou. Quando chegou, apenas uma ponte vazia o aguardava, o Rio pascoal, ao contrário da face pacífico, hoje era como um redemoinho sugador de homens, puxando-os contra suas profundezas.

Lucas e Marcelo não estavam mais em lugar nenhum.

...----------------...

Alguns carros de amontoavam lado a lado, policiais fardados se direcionando em uma direção fixa. Fitas amarelas cercavam uma grande extensão do local, enquanto homens em roupas de banho mergulhavam e submergiam nas redondezas do lago.

Era a décima segunda hora desde o desaparecimento dos dois homens no lago Pascoal.

Gregório permaneceu a distância, recostado contra seu carro enquanto fuvama um cigarro. Um policial se aproximou, dizendo algumas palavras enquanto o oferecia um copo de café, que logo foi recusado. O policial suspirou, com pena do homem antes de voltar para sua base.

O dique, no final, não ficou submerso. Após a chuva, ele cumpriu bem sua função, e além do fato do nível da água estar levemente acima, não era de fato uma coisa ruim. O sol lentamente se escondeu atrás das nuvens, o tempo cinza e nublado fazia com que a atmosfera se tornasse cada vez mais inconveniente.

Quando ele foi chamado, seus pés travaram por um segundo, antes de andar lentamente atrás do homem vestido de branco pelo corpo todo. Quando se aproximou da ponte, os policiais abriram espaço para ele, se afastando lentamente como se fosse um entendimento tácito.

Na ponte, um cobertor de papel alumínio se estendia no chão. Dois homens estavam anotando alguma coisa antes de notarem os dois se aproximando.

— É um familiar?

— Um amigo. Ele estava aqui quando aconteceu.

Os dois homens voltaram seu olhar para ele antes de balançar a cabeça, assentindo. O homem de branco a sua frente logo se curvou, levantando o papel metálico.

Ele desviou os olhos, olhando para as ondas leves e pacíficas do rio Pascoal.

Lucas estava morto.

...----------------...

O corpo de Lucas não foi reivindicado. Se a situação permanecesse, ele seria enterrado como indigente, ou até mesmo virando um cadáver na mesa de experimentação de algum estudante de medicina.

Gregório cuidou de toda a papelada, enterrando-o em um cemitério de prestígio em uma região afastada da cidade.

Olhando para a foto em preto e branco no túmulo, ele se abaixou lentamente, sentando na grama verde antes de colocar um buquê de rosas, com tons variados de pêssego ao lado da fotografia.

Pegando um cigarro no bolso, ele suspirou a fumaça entre as narinas.

— Eles não me permitiram levar você para o México, para ser enterrado junto a família Hernández.

— Eu pensei que eles teriam alguma consideração por você, afinal, o que você fez por aquele clã nos últimos anos não foi brincadeira. - ele riu, como se estivesse realmente conversando com um Lucas sorridente na moldura.

— Mas no final, você também não é muito melhor que eu quando o assunto é amor fraternal.

— Bom, eu acho que me precipitei. Você é o pior, cara.

— Sério, eu nunca conheci uma pessoa tão fodida quanto você.

— Você poderia ter voltado comigo aquela noite, eu ainda me pergunto o que você estava pensando. Eu deveria ter ido atrás de você - seu sorriso esmaeceu lentamente — ou simplesmente não deveria tê-lo deixado sair do meu carro, sabe? Eu teria te trancado enquanto você me olhava com raiva, mas pelo menos você estaria vivo agora, seu estúpido.

— Você deve estar feliz agora, você conseguiu o que queria. Sinceramente, tenho inveja de você. Aquele bastardo do Marcelo não hesitou por um segundo antes de pular, enquanto eu apenas fiquei olhando, chocado, antes de chamar os bombeiros.

— Eu pensei em chamar a polícia, mas acho que chamando um, eu já ganho o combo completo. Eles vieram todos juntos, e te encontraram lá um pouco tarde. Se tivesse te pegado mais cedo, você teria uma aparência decente para ser velado de caixão aberto - seu sorriso se ergueu novamente, batendo levemente a ponta do cigarro contra o mármore escuro — Eu gostaria que você tivesse se lembrado de mim primeiro, sabe? Quando éramos crianças, você era uma pessoa mais gentil. Como pôde crescer e se tornar tão idiota?

Ele se levantou, agasalhando lentamente suas roupas.

— Marcelo nunca foi encontrado. Um memorial foi feito para ele ao lado da família Hernández no México. Mas acho que isso não é algo que você deva se preocupar, esse bastardo com certeza deve estar debochando de mim ao seu lado agora mesmo - ele mordeu o cigarro, apagando-o antes de joga-lo em um canto casualmente.

— Eu não virei mais aqui. Essa é a última vez que nos encontramos, Lucas. Você estava certo....

— Adeus.

......................

• fim do primeiro arco.

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Comments

litlle_little

litlle_little

/Smile/ obrigada, autora, depois desse capítulo eu vou precisar de dois psicólogos e sete psiquiatras.

2023-11-09

5

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