Marietta
Era um daqueles dias ensolarados, em que as pessoas se protegiam do calor com sombrinhas e chapéus, exibindo sorrisos largos enquanto caminhavam pelas calçadas movimentadas. No entanto, naquela tarde, o hospital permanecia gelado. Lucas, por vezes, se questionava internamente sobre o quanto as bactérias detestavam o ambiente, se sofriam tanto quanto ele com o frio que permeava o lugar. Ele estava inquieto. Com um som seco, uma porta próxima se abriu, revelando uma mulher de meia-idade em uma cadeira de rodas. Seu rosto exibia marcas de cansaço, rugas profundas que a envelheciam, uma pele notavelmente pálida e olheiras profundas sob os olhos. Lucas observou seu corpo frágil, parecia estar cinco vezes mais magra do que da última vez que a vira. No entanto, assim como antes, nos olhos estreitos, permanecia aquele olhar indiferente. Atrás dela, um homem alto a acompanhava. Ele olhava à frente, como se Lucas não existisse, mas ao se levantar e bloquear sua passagem, não teve escolha senão fixar os olhos no outro homem.
— Como está a tia? - Ele perguntou solenemente.
— bem.
Era uma resposta breve, fria e direta, como todas as vezes em que Marcelo se dirigia a Lucas, como se fossem completos estranhos. Como de costume, Lucas riu, murmurando um "que ótimo". Adriana, a mulher na cadeira de rodas, parecia alheia a situação, recostado-se completamente na cadeira, como se o mundo além de seus pensamentos não a afetasse. No quarto do hospital, Marcelo colocou cuidadosamente a mulher na cama, como se temesse quebra-la.
Lucas observou todo o processo com indiferença, ciente do quanto Marcelo o desprezava. Ele não podia mandá-lo embora, não quando ambos sabiam que era graças a Lucas que Adriana havia vivido por tanto tempo, e ele controlava, até onde podia, quanto tempo ela ainda viveria.
— A medicação está sendo efetiva até certo ponto. Se não fosse pelo transplante de urgência, acredito que a Sra. Adriana não teria tido uma recuperação tão tranquila. Mas o tratamento está apenas começando, é necessário que ela permaneça internada para que o processo seja monitorado. A senhora Adriana está em uma condição delicada...
No corredor, a alguns passos de Lucas, o médico aconselhava calmamente. A expressão de Marcelo era dura, mas havia uma pitada de preocupação em seus olhos. Em um devaneio, Lucas se perguntou se fosse ele quem estivesse ali, deitado, definhando em direção a uma morte possível, se Marcelo agiria de alguma forma. Seus lábios se torceram e ele fechou os olhos levemente... Ele conhecia a resposta. Se fosse ele... Certamente, Marcelo não poderia ficar mais feliz, todos os seus problemas seriam resolvidos... Ou será que ele iria visitá-lo? Levaria flores, diria para se recuperar rápido? Ah, claro que não... Se uma coisa dessas acontecesse, ele teria certeza, ou Marcelo estaria completamente enlouquecido, ou outra pessoa teria tomado posse de seu corpo.
Lucas permanecia no quarto, observando a figura de Tia Adriana. A atmosfera entre eles era gélida. Enquanto a mulher enfrentava inúmeras adversidades, seu semblante permanecia sereno, sem um franzir de testa.
Neste momento, um lampejo de memória o levou de volta a uma época distante. Ele se lembrou de um dia em que, ainda criança, tentou preparar uma lasanha. O desastre quase incendiou a casa, trazendo a ira de seu pai alcoólatra que o deixou marcado de hematomas verde e azul por todo o corpo. Dias depois, Tia Adriana lhe apresentou um livro de receitas com um sorriso suave. Não havia outro motivo para querer preparar uma lasanha, senão que, certa vez, Marcelo disse a ele que não era ruim, e desde então, se tornou sua obsessão a fim de agrada-lo.
Apesar de sua natureza reservada, Marcelo, na época uma criança séria, se esforçou para ajudar Lucas a preparar a lasanha em segredo. O sentimento de farinha entre os dedos e a colaboração silenciosa marcaram Lucas profundamente. Naquele momento, ele encontrou um vislumbre daquela família que tanto ansiava, mas que ainda, de alguma forma, parecia fora de alcance.
Ao retornar do devaneio, Lucas encarou a realidade da situação forçada que se tornara. Um suspiro de resignação escapou de seus lábios. A lembrança daquela lasanha, tão repleta de significado, agora parecia uma dolorosa ironia de como ele tentara forçar um lugar para si mesmo nesse estranho arranjo familiar.
O caminho de volta do hospital era permeado por um silêncio pesado, como se as palavras tivessem sido banidas do interior do carro. Tia Adriana, que Lucas mantinha no hospital com certa indiferença, parecia um mero fantasma de preocupação em seu retrovisor.
Ao chegarem em casa, Marcelo, que não trocou sequer uma palavra, desapareceu no quarto, deixando um eco silencioso no ar.
Minutos depois, Marcelo desceu até a porta. Lucas levantou o olhar, observando pelo canto dos olhos as chaves balançando descaradamente entre seus dedos.
— Vai a algum lugar?
A resposta do outro homem veio rapidamente . "Aonde eu for, não é da sua conta."
— Você realmente acha que não me deve satisfações? Voc - Antes que Lucas terminasse de falar, a porta se fechou com um estrondo.
Ele estava sozinho novamente.
Não havia mais o que fazer. A casa estava vazia, não havia uma alma viva dentro daqueles muros, nem mesmo tia Adriana, que o sufocava nas menores oportunidades, jazia silenciosa em outro lugar, não lhe dando mesmo uma olhada. Entrando na cozinha, Lucas grunhiu pesadamente. As velhas lembranças se misturaram à massa da lasanha, os dedos encontrando consolo na textura familiar da farinha. Era como se aquele ato, repleto de significado, fosse uma tentativa de recuperar um tempo que escapava de suas mãos.
A meia-noite se aproximou, o tic-tac do relógio ampliou o vazio ao seu redor. O quarto de Marcelo permanecia vazio, a ausência dele ecoando na escuridão da casa.
Na manhã seguinte, a casa estava impregnada de um silêncio quase palpável, como se a própria atmosfera se enclausurasse naquele vazio. O aroma do café recém-preparado flutuava no ar, um convite frágil em meio à tensão que pairava. Lucas não ousava perturbar o silêncio, apenas seguia o ritual com a precisão de quem conhece cada gesto de cor.
Marcelo surgiu em algum momento, ninguém sabia quando ele havia chegado. Ele emergiu um rosto impassível, sem trocar olhares com Lucas. Uma barreira invisível os separava, e cada passo de Marcelo era um eco surdo dessa distância.
— Marcelo.
Antes que Marcelo voltasse como uma doninha para seu quarto, Lucas o parou.
— Eu vi os remédios, apenas coma. A única coisa que fiz essa manhã foi o café, a comida foi comprada.
Marcelo estalou a língua e lançou um olhar frio, mas inesperadamente caminhou em direção a cozinha.
O café da manhã foi servido em meio a um ballet silencioso de gestos fugazes. As palavras, mesmo que quisessem, pareciam condenadas a permanecer em suas gargantas. A apatia era uma presença constante, como se tivessem aprendido a conviver com ela, aceitando-a como parte indissociável de sua dinâmica.
— Você foi ver alguém? - Lucas perguntou, sua voz carregada de frugalidade.
Marcelo respondeu com um sorriso de desdém.
O celular de Marcelo repousava sobre a mesa, emitindo um zumbido que cortou o silêncio. Ao atender, a voz de Gregório, animada, ecoou pelo cômodo.
— Marcelo! A festa de ontem foi sensacional, precisamos combinar mais vezes! - A voz viva se contrapunha com o clima pesado da sala.
Marcelo ouviu atentamente, seu olhar desviando-se para evitar os olhos inquisitivos de Lucas. A proposta de Gregório era tentadora.
— O nome dela é Luana, vocês até beberam juntos antes! Escute, ela é irmã daquele advogado, Joel. Se você se envolver com ela, nunca mais terá que trabalhar na sua vida! - Uma gargalhada seguida de uma tosse foi ouvida através do telefone.
Marcelo olhou levemente para Lucas, que o encarava sem piscar, movendo os lábios e soletrando lentamente... "A-DRI-ANA".
— estou com Lucas - ele respondeu - todos no círculo sabem disso.
— Pelo amor de Deus, Marcelo! Estamos falando de uma gostosa aqui! Uma gostosa! Você quer mesmo trocar a Luana pelo Lucas? Sinceramente, eu não perguntaria se fosse outra pessoa. Você sabe que eu não tenho nada contra, você me conhece, eu até gosto de provar uma vez ou outra. Mas o Lucas!? Hahahahah você não acha que isso já durou tempo demais? - provocou, sua voz cheia de falsa sinceridade.
— Não estou saindo.
— espera, espera!! Hoje a noite, ok? As 21:00, a Luana estará lá, e um passarinho me contou que ela está encantada por você! Seu garanhão hahaha *tosse tosse* ...se você não aparecer, eu vou ficar desapontado. - a ligação terminou com um leve farfalhar vindo do outro lado.
Quando Marcelo notou, Lucas já havia se levantando. Não havia expressão em seu rosto. Ele andou calmamente até o armário, encheu um copo d'água até o meio e o bebeu. Havia apenas um detalhe insignificante em seu corpo rígido, algo que apenas Marcelo, que o conhecia como a palma de sua mão, notaria.
Seus lábios estavam levemente franzidos.
— Pensei que tínhamos um acordo - Lucas se sentou, todo seu corpo emitindo um cansaço doloroso. Eram 5 anos, ele pensou que se tivesse cinco anos, ele colocaria Marcelo na palma da mão. Que ele o teria, não importa o quanto o outro o tivesse recusado. Mas não foi o que aconteceu, Marcelo o negava, eles não se tocavam, não conversavam e a única interação que tinham era as discussões por viverem na mesma casa, ou ninharias relativas a tia Adriana.
— um acordo... - Marcelo riu, ele riu até que uma camada aquosa cobrisse seus olhos. Geralmente, não havia expressão em seu rosto. Mas parecia que alguma coisa na ação de Lucas o tinha motivado. Ele se levantou lentamente e se aproximou de Lucas, sentado na cadeira, colocando um braço na mesa e a outra na parte superior da cadeira, de modo que Lucas não pudesse subir ou descer.
— Você não nota... o quão desprezível você é? O quanto eu te abomino? - Ele continuou, dizendo entre os dentes - não se faça da porra da vítima aqui, Lucas. Sabemos o quão baixo e imundo você é, e o quão longe você vai para satisfazer esses seus desejos egoístas... E aquele vídeo, e tudo o que você fez, você realmente vai me olhar com essa maldita expressão, como se eu fosse o cara mal?"
O desdém presente em seus olhos injetados de sangue era palpável.
Lucas se levantou com um pulo, apesar das restrições de Marcelo, seu olhar não carregava tristeza ou culpa, apenas uma apatia impenetrável.
— eu não me importo. Ele riu, mas Marcelo provavelmente nunca saberia o real sentimento por trás desse gesto. — Temos um acordo, você não tem dinheiro para pagar o hospital para tia Adriana, as cirurgias, os remédios, os tratamentos, e eu tenho. Aquele vídeo é o de menos. Eu te dei uma escolha, você poderia ter me recusado antes, mas você me escolheu. Você escutou? Você está aqui por suas próprias pernas, se você tiver capacidade, pode fazer algo por ela você mesmo.
Ele não se lembrava há quanto tempo havia mantido uma conversa tão longa com Marcelo, é uma pena que, se ele fosse escolher, provavelmente não seria assim.
Depois de alguns anos, ele havia notado que quanto menos conversa paralela tentasse manter com Marcelo, menos discussões haveria. Não importa o tópico ou conteúdo, toda e cada frase acabava por levá-los a uma discussão sem fim. Para tentar manter a paz, ele escolheu recuar. Mas ouvindo Marcelo, depois de tanto tempo voltar a trazer certas coisas a tona, um desconforto absurdo o tomou por dentro, a ponto de levá-lo a falar coisas que provavelmente se arrependeria depois.
— Ouça bem, se você ousar dormir com mais alguém... Eu juro que a morte daquela mulher não terá outro culpado se não você.
Jamais ele ousaria levantar a voz para Marcelo em outro momento. Nos últimos cinco anos, ele tinha agido como um santo. Ele era permissivo, abaixava a cabeça, e da maior a menor coisa, tudo era deixado de lado. Como se apenas manter a presença de Marcelo hora outra naquela casa fosse o maior resultado de seu acordo. Mas havia um certo cansaço em seus ombros, ele sabia que Marcelo dormia com outras pessoas. Ele ainda tentava manter algum orgulho, não era para ele que o homem voltaria no final do dia? Mas Marcelo nunca levantou sequer uma palavra de gentileza, o Marcelo de antes de cinco atrás e o Marcelo de hoje eram pessoas completamente diferentes.
Lucas tentou sair apressado, esbarrando no ombro de Marcelo. Mas antes de sequer fechar os olhos, sentiu seu braço sendo puxado.
— Me solte...
Marcelo o segurou ainda mais forte.
— me solta porra!
A mão que o segurava vacilou por um segundo antes de o deixar ir. Ele nem imaginava qual era a expressão de Marcelo, nunca tradado com condescendência por ele, sendo xingado dessa maneira. Entretanto, no momento em que Marcelo o soltou, aliado a força que Lucas usou para sair daquela sala o mais rápido possível, o fez colidir com a mesa. A garrafa de café quente voou, despejando seu conteúdo ardente sobre a pele exposta de Lucas. Um gemido de dor rasgou o ar.
Em um instante, a sala voltou ao silêncio anterior. O aroma amargo do café queimado pairava no ambiente.
Marcelo olhou brevemente para o homem no chão por um segundo antes de agir. Ele agarrou um pano, molhou-o com água fria e o jogou para Lucas.
A porta do quarto se fechou novamente, o som ecoando como um suspiro silencioso.
O dia continuou, passando como um espectro fugaz, com horas se esticando em monotonia. A tarde de sol lá fora contrastava com a quietude opressiva dentro de casa. Cada som parecia amplificado.
Ao se deitar na cama, Lucas sentiu um peso sobre seu peito. O silêncio da noite o envolveu, abraçando-o como uma presença familiar e, ao mesmo tempo, sufocante. Ele se perguntou se um dia seria possível quebrar aquele ciclo, se seria possível resgatar algo que se perdeu no labirinto do tempo. Ele riu, lágrimas escorrendo, ele sabia, tudo já estava perdido. Seja Marcelo, ou qualquer resquício de esperança para com sua vida miserável nesta terra, já havia sido perdido.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 31
Comments
Mira_bel
confia que um passarinho te contou/Smug/
2023-11-09
2