O DIA SEGUIA TRANQUILO. Dália estava sentada em uma poltrona, diante de uma lareira na biblioteca, observando a madeira crepitar à medida que uma brisa gélida sacudia as pesadas cortinas nas janelas. Uma sensação de solidão se abateu sobre ela, fria e cortante, e ela se sentiu incomodada. Já fazia um tempo desde a última vez que algo assim acontecia, e, talvez, devesse dedicar esse fato à presença constante de sua criada pessoal: Ivy.
A mulher não saíra do seu lado desde sua saída do ducado, sempre tentando fazer o máximo para servi-la do jeito que Dália merecia ser. A garota não podia negar que, naquela altura, já se sentia acomodada com a presença da serva; que a valorizava e sentia sua ausência.
No entanto, por mais que quisesse tê-la por perto, Ivy estava na cozinha do castelo naquele momento — a mando da garota —, ajudando no preparo do jantar e das demais comidas que ainda seriam servidas durante o dia. Não tinha nem duas horas que a mulher voltara de uma visita à Valin, a principal cidade do grão-ducado.
Tudo isso fazia parte das etapas do grande — e arriscado — plano de Dália. Tanto do primeiro quanto da contramedida, para caso alguma coisa desse errado. Agora, só faltava comprovar suas suspeitas não esclarecidas por Anh. Essa, talvez, fosse a parte mais difícil.
Um suspiro baixo saiu dos lábios da garota, e ela se pegou pensando no encontro com o rapaz loiro no jardim.
Quem era o amigo dele? O que fazia ali de verdade? Por que se esquivara de todas as suas perguntas?, Dália se questionava incansavelmente. Sua mente parecia um turbilhão de ideias, de teorias, umas mais loucas do que outras.
Além disso, havia outra questão: a mudança que vira o semblante de Anh sofrer. O jeito que ele se tornou outro diante dos olhos dela, quase como se uma máscara tivesse caído… Fora mesmo uma simples alucinação? Acontecera de fato? Ela não sabia, e, por mais que quisesse afirmar que não se importava, durante aqueles poucos instantes, sua mente só conseguia pensar nisso.
Não era uma coisa que Dália podia controlar. Ela gostaria de lidar com as coisas da mesma forma que lidava com os problemas no ducado; de maneira alheia e simplória. Mas ali… Ali parecia que tudo estava contra ela, e esse desejo era frequentemente ignorado por sua mente cansada.
Então, aliado a essas preocupações e anseios — contra a vontade de Dália —, havia mais uma coisa tirando sua paz, e até conseguindo suprimir a solidão que ameaçava consumir seu peito: a ideia de ser vestida como uma boneca para a cerimônia de casamento.
Para o desgosto da garota, o dia seguinte seria recheado de pessoas dizendo o que ficava melhor nela, para ela. Como no dia antes de sua saída do ducado, ela seria tratada — ou, no mínimo, imaginava ser — como um objeto de decoração que precisava estar à altura de tudo ao seu redor.
Ela tinha que ser a mais linda e deslumbrante. Tinha que arcar com as expectativas. Tinha que ser a fantoche perfeita… E não era novidade o quanto isso a incomodava, fazia seu estômago revirar. Dália odiava não poder tomar suas próprias decisões, ser ela própria, mesmo que, em toda sua vida, quase não tivera chance de o fazer.
Dália mordeu os lábios, com mais força do que o pretendido, e sentiu um gosto metálico alcançar sua língua. Xingou baixinho — como um papagaio que repete as palavras que ouve às escondidas de seus donos — e se pôs a pensar na grande cerimônia que mudaria — ou terminaria — sua vida para sempre.
Infelizmente ou não, Dália não sabia ainda quem seria o responsável — ou a responsável — pela organização da cerimônia de casamento. Pouco tinha informações sobre isso, se já estavam preparando tudo ou deixariam para ser elaborado na manhã seguinte.
Embora isso não a incomodasse, ela não conseguia evitar se sentir curiosa. Como a maioria das coisas referente ao Grão-Ducado de Vespehlla, a cerimônia de casamento e tudo que a envolvia era um mistério. Ninguém lá fora tinha boatos relevantes, ou no mínimo reais, a serem falados. Tudo eram especulações, muitas sem nenhum pingo de sentido.
O pensamento fez Dália soltar um risinho de escárnio baixo. Esse pequeno ato levou embora parte do peso em seu peito, mas, como se sua alegria sempre fosse um prato cheio a ser descartado, um som atrás dela atraiu sua atenção e a garota se pôs alerta ao ouvir:
— Aceita chá? — A voz rouca e firme de Arion ecoou atrás dela, e ela se sobressaltou ao perceber que quem surgira ali era ele.
Quando ela se virou, avistou o Grão-Duque parado, de braços cruzados e com pequeno sorriso no canto dos lábios; os olhos viperinos e sedutores. Atrás dele, uma criada segurava uma bandeja com duas xícaras e um bule de chá.
— Vossa Alteza — murmurou ela, pondo-se de pé. Rapidamente, segurou as barras do vestido surrado e fez uma mesura em comprimento. — Eu não esperava encontrá-lo antes do jantar…
— Tive o desejo de vê-la, e aqui estou eu — interrompeu ele, simplesmente. Dália piscou, não muito certa de como deveria se sentir quanto a isso. — Aceita chá? — repetiu, agora mais alto e firme, não dando aberturas para uma resposta negativa.
— Bem… — Dália pensou por alguns instantes. Aquela poderia ser a oportunidade que buscava, e já que não tinha o direito de recusar, não havia porque demorar para aceitar o pedido. Então, forçou um sorriso ao dizer: — Eu adoraria.
Ao ouvir a resposta dela, o sorriso de Arion aumentou e ele fez um sinal para a criada colocar a bandeja sobre a mesinha à frente. Ambos se sentaram, um diante do outro, após a criada ajustar a poltrona de Dália de um jeito que ela fosse obrigada a ficar cara a cara com ele.
Um silêncio pesado recaiu entre os dois enquanto a criada servia o chá nas xícaras. Em um movimento rápido e gracioso, Dália pegou a sua, e levou à boca com certa aflição; queria acabar com aquilo o mais rápido possível. Arion seguiu os movimentos dela com os olhos, reparando em como a garota se deliciou com o gosto amargo do chá-preto — embora adocicado —, e pareceu suspirar baixinho quando um pouco da tensão esvaiu de seu corpo ao sentir a bebida quente tocando a língua.
Pelo que pareceu uma eternidade, ninguém disse nada. Apenas uma tensão, que hora ou outra parecia aumentar, permeou o cômodo e quase fez Dália arfar.
Enquanto isso, a serva ficou em pé, alguns passos atrás de Arion, evitando contato visual com a garota à frente dela. Ao ver isso, o incômodo mal disfarçado da criada, Dália fixou sua atenção em um ponto atrás dela. As expressões fáceis da serva eram uma ótima distração, além de ser um bom jeito de manter a mente ocupada até o momento certo chegar.
— A biblioteca é do seu agrado? — Arion perguntou depois de um tempo, como se quisesse espantar o silêncio que rodeava os dois.
Dália desviou os olhos para ele, franzindo a testa diante da pergunta, e depois encarou o cômodo à sua volta. A biblioteca era enorme, com prateleiras cheias de livros — feitas de madeira —, que iam até o teto. A mesinha de madeira no centro, as poltronas de couro marrom e a ladeira traziam sofisticação para o lugar, enquanto o piso era feito de cerâmica, cor de terra vermelha, cheio de pequenas listras em um tom mais claro.
Um lustre pendia do teto, enquanto vários candelabros mantinham-se acesos nas paredes, o que trazia — junto da lareira — uma luz quente e alaranjada ao cômodo. Era um lugar muito aconchegante.
Dália não pode negar que achara o espaço lindo; que, ao entrar ali por engano, nem sequer considerara voltar; apenas decidiu que ficaria ali até ter tudo pronto, até não poder fugir mais. Só não esperava que Arion iria achá-la, que ele tentaria tomar chá com ela, fosse qual fosse o motivo oculto que movia suas ações.
— Ela é perfeita — disse Dália, após voltar a atenção para o Grão-Duque. Ele levou a xícara à boca, sorvendo o chá, e pareceu satisfeito com a resposta dela. — Vossa Alteza que a organizou assim?
— Não — negou ele, em um balançar de cabeça. — Minha mãe que a decorou — contou, nostálgico. — Ela amava ler.
O tom melancólico que saiu dos lábios de Arion não passou despercebido por Dália. Será que a mãe dele… faleceu?, ela se perguntou, incomodada, e apertou com mais força a alça da xícara antes de devolvê-la junto ao pires à mesa.
— Eu…
— Tudo bem — Arion a interrompeu, não deixando que as palavras, uma condolência que não poderia ser taxada como sincera, saísse da garganta da garota.
Dália esperou que ele acrescentasse algo a mais, que dissesse que aquilo não era da conta dela ou até a insultasse por sua hipocrisia. Mas Arion não disse mais nada; apenas permaneceu em silêncio, bebericando o chá de um jeito lamurioso. A garota não pôde negar que isso a incomodou.
— Não seria bom ter algo para acompanhar o chá? — perguntou Dália, de repente, o que atraiu os olhos do Grão-Duque para si. Ele a encarou de um jeito avaliativo e intenso, o que quase a fez corar.
— Juella — chamou ele, e a criada se pôs ao lado dele em um segundo. — Busque algo para acompanhar o chá — ordenou para ela, que saiu a passos rápidos dali após assentir em confirmação. — Enquanto Juella não chega com os petiscos, irei dizer o segundo motivo de ter vindo aqui.
— Segundo? Qual seria o primeiro?
Arion ergueu a sobrancelha, parecendo curioso sobre a pergunta dela. Dália não demorou muito a perceber que ele já havia lhe dito, e sentiu o rosto enrubescer ao notar isso.
— Eu já lhe disse, bela incógnita. Sobretudo, tive o desejo de vê-la.
As palavras de Arion não deveriam ter pegado Dália de surpresa, mas ela se sobressaltou ao ouvi-lo, e dessa vez sentiu as bochechas e orelhas esquentar. Não pelo que ele disse, não, foi o tom — provocativo, divertido, sentimental —, e o apelido que ele proferiu, de um jeito tão informal, que a deixou sem chão.
— Isso… É… Bela incógnita?
— Combina com você — respondeu ele, simplesmente. — Mas não se preocupe, não irei usá-lo quando tiver alguém por perto para não deixá-la desconfortável ou se você não desejar.
Uma escolha. A decisão era de Dália, e isso a surpreendeu ainda mais. Não esperava que Arion a apelidasse de um jeito tão íntimo, mas, ele não só o fizera como estava lhe permitindo escolher. Isso soou imaginável — e até mentira — ao ouvidos da garota quando respondeu:
— Eu realmente posso…
— Claro, o direito é seu.
Dália piscou. Direito, uma palavra estranha para ela. Mas, diante da situação, da forma como aquela conversa mudou drasticamente, só pôde assentir. Era seu direito.
— Eu não… achei ruim — balbuciou, a voz sumindo ao final.
Ao ter a confirmação que queria, que almejava, os lábios de Arion se curvaram para cima, e ele devolveu a xícara para a bandeja. Em seguida, se curvou sobre o pequeno e refinado móvel de madeira, indo na direção de Dália com uma lentidão que trouxe calafrios para ela.
Dália estremeceu ao perceber isso. O que ele pretendia?
— Você não deveria morder seus lindos lábios — murmurou ele, tocando o lábio inferior de Dália com as pontas dos dedos.
A garota parou de respirar enquanto Arion a tocava ali, com os olhos azuis tão focados em limpar algo que ela sequer via.
Quando ele encerrou o movimento, ela percebeu um líquido vermelho brilhar contra a pele bronzeada dele: sangue. O sangue dela, de quando mordera o lábio há poucos minutos antes. Nem reparara que havia se cortado tanto… E nem iria, se ele não tivesse feito aquilo. Ela não pôde evitar se sentir estranha quando pensou nisso.
Depois de um segundo, que pareceu horas agonizantes para ela, Arion ergueu as belas íris até alcançar as de Dália, tão intensas, tão mortais, que a garota só pôde suspirar.
Arion se inclinou ainda mais na direção dela, os olhos vidrados e a expressão transbordando um sentimento que a garota vira outras vezes, em outros rapazes, mas não acreditava até então avistar no Grão-Duque: cobiça.
O coração de Dália disparou no peito; a respiração curta e rápida. Mais alguns centímetros e os lábios dos dois se encontrariam. Ele a beijaria. Isso era um sonho? Ou um pesadelo? Ela não soube, não ligava mais; só queria saber o que aconteceria assim que ele estivesse perto o suficiente para ela sentir o hálito de chá-preto atingir à face. O que sentiria? Nojo ou… anseio?
Qual emoção surgiria dessa simples ação?
Mas suas dúvidas não puderam ser sanadas, não quando batidas na porta a fez se sobressaltar e se afastar do toque do Grão-Duque, que pareceu decepcionado. Depois de Arion voltar com seu ar formal, cortante e bem indiferente, murmurou um "entre". Juella surgiu à porta, com uma tigela de porcelana sobre uma bandeja de prata.
Bolinhos reluziram à luz alaranjada das velas quando ela parou diante dos dois.
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Atualizado até capítulo 73
Comments
Syl Gonsalves
meu sonho (mas, tem sonhos que só são isso: sonho).
2025-01-29
1
Ruby
se ele é parecido com o outro mago que te levou ao palácio, talvez sejam irmãos. Também não acharia estranho ele ser a Alteza disfarçado, sei lá kkkkk
2025-02-18
2
Suzi Ozorio
😍😍😍😍😍😍
2023-06-24
1