No Breu

ATRAVÉS DA PEQUENA JANELA, presente no quarto escuro, Dália observava a aproximação de uma carruagem. Não era um veículo chique e requintado; era uma carruagem simples, com um cocheiro mal vestido sentado à frente e um cavalo magro a puxando sem muita vontade.

Não demorou muito para a jovem constatar que se tratava de alguém vindo até ali em busca de trabalho, na melhor das hipóteses. Como Diord era um duque muito abastado, sempre tinha aqueles ousados o suficiente para deixar suas famílias e lares para tentar a sorte procurando serviços — muitas vezes pouco rentáveis — com o Duque. Quase sempre acabava com uma negativa, muito antes deles pudessem se aproximar do portão.

Mas, para surpresa de Dália, assim que a carruagem foi parada, bastaram três palavras do cocheiro para os portões serem abertos. Alguns minutos depois, de dentro do veículo, saiu uma figura alta, vestida com túnica azul marfim e com um capuz cobrindo todo o rosto.

Era inevitável para Dália não se sentir curiosa. Mesmo com suas mãos e corpo ardendo graças a briga com madame Iluneia na manhã anterior, ela forçou-se para ver mais do estranho, que se aproximava com grande elegância de Alzzefre. Os dois trocaram algumas palavras por alguns minutos, e logo o mordomo saiu em disparada para dentro da mansão, o que fez o estranho relaxar o suficiente para abaixar o capuz e mostrar, sem nenhum temor, seu rosto.

O coração de Dália disparou ao olhar para o homem parado ali. Ele era alto, muito mais que Diord, e tinha seus longos cabelos loiro-dourados, como raios de sol, caídos em seu ombro, amarrados em um rabo de cavalo solto.

Daquela distância, Dália não conseguia ver a cor dos olhos do estranho, mas, quando ele olhou na direção de onde ela estava presa, pôde imaginar que seriam negros como nanquim ou de um azul tão profundo quanto o oceano.

Independente de qual fosse a resposta certa, somente a sensação — embora pouco provável — de estar sendo observada por ele fez a jovem arrepiar.

Dália balançou sua cabeça para afastar a ideia, o que a deixou meio zonza. Olhou pela janela mais uma vez, pronta para observar com maior atenção o estranho, mas apenas viu Alzzefre o guiando rumo à porta. Suspirou. Não havia mais o que ser visto.

Desanimada, permitiu que seus pés deslizassem pela cabeceira da cama, devolvendo-a para escuridão do cubículo onde passara um dia inteiro. Ali embaixo, no breu, não havia muito o que observar. Mesmo com a luz que vinha de fora, apenas parte da cama ficava visível, acompanhada por um tapete que lhe servira de cobertor nas noites mais frias.

Não era a primeira vez — embora fosse a última — que Dália passava um dia inteiro, ou até mais que isso, trancada ali. Aquele era o quarto do medo, o Cubículo da Vergonha, como Iluneia adorava chamar todas às vezes que a obrigava a ficar mergulhada naquela escuridão, sempre com a desculpa que era apenas um pequeno castigo.

Outro suspiro irrompeu os lábios de Dália, mais amargo do que o último, e ela se permitiu sentar sobre a cama dura — na parte sem luz. Quando se sentiu um pouco confortável, abraçou seus joelhos e observou o vazio, enquanto sua cabeça girava e o incômodo em seus olhos — causado pela exposição à luz — pouco a pouco sumia à medida que eles se acostumavam com a escuridão.

Seus braços doíam, o rosto queimava e parecia inchado. Se estivesse na luz, as marcas roxas presentes em cada canto de sua pele exposta deixaria qualquer um surpreso, se não assustado. Era um fato que madame Iluneia pegara muito pesado na noite anterior, deixando cicatrizes que, se não fossem curadas com urgência, ficariam ali para sempre.

E isso sem contar os danos psicológicos.

Toda vez que apanhava, por menor que fosse o motivo, Dália sentia-se um lixo humano. Percebia até onde ia sua linha de inferioridade em comparação com aquela família, o quão eles poderiam afetá-la e marcá-la por toda eternidade.

Diferente deles, que tinham poderes altos de cura graças à forte magia que corria em suas veias, ela era menos que uma mera infeliz. Não tinha muitos dons além daqueles que serviam para substituir Penélope em seus afazeres tediosos. Era calma — para não repetir a palavra vazia — e mantinha-se sempre em estado de alerta, reservando poucos momentos para agir como uma garota aristocrata normal. Como um ser humano sem amarras.

Mas eram esses poucos momentos — cada vez mais raros — que sempre a levavam até o Cubículo da Vergonha. Como chorar após ouvir apenas uma verdade amarga ou bisbilhotar o corredor apenas por curiosidade e preocupação. Sorrir para um empregado ou falar algo que não deveria. Coisas pequenas, que lhe garantiam uma dor física, emocional e uma solidão que ela jamais desejaria para seu pior inimigo.

Dália fechou os olhos. Um arrepio tomou conta de sua nuca e ela gemeu quando abraçou ainda mais os joelhos. Desejara não ser tão inútil, como todos ali alegavam que ela era. Mas havia certa beleza em ser a moça indefesa, ou era isso que Bellion, o filho mais velho de Diord e o mais gentil — se é que poderia usar essa palavra — lhe dissera certa vez. O rapaz tinha em torno de vinte e seis anos, e possuía uma beleza que puxara Diord na juventude. Era lindo, embora igualmente malicioso. Dália podia contar nos dedos às vezes que ele deixou bem claro sua vontade de desvirtuá-la.

O estomago de Dália roncou, tirando-a de seus pensamentos. Não comia desde a festa do chá de Penélope, o que a fazia se arrepender de ter recusado o jantar naquele dia, mesmo sabendo que, se tivesse comido, teria expulsado o alimento assim que a casa ficasse silenciosa. E o pior era saber que não seria a primeira vez.

Ao ser invadida por lembranças de noites sem comida ou vomitando até as tripas, Dália mordeu os lábios. Detestava lembrar do passado, principalmente daquele que fazia bile subir por sua garganta.

Uma batida na porta fez a garota erguer a cabeça. Logo uma criada baixinha, de cabelos negros e olhar severo, abriu a porta e deixou uma muda de roupas sujas e esfarrapadas sobre a cama. Dália observou a criada, não entendendo o motivo de sua visita. A mulher, de no máximo trinta anos, falou:

— Madame Iluneia pediu que te entregasse isso. Vista-se. Ela virá daqui a cinco minutos.

Antes que a jovem pudesse responder, a criada saiu pela porta a passos rápidos. Sem muita escolha, Dália se levantou, sentindo suas pernas bambas, frágeis, e vestiu a roupa. O fedor de esterco vindo das peças esbulhou seu estomago e empurrou sua fome para qualquer canto esquecido e sombrio de sua mente.

...***...

Se houvesse um espelho e luz suficiente para iluminar a figura esguia de Dália no cubículo, ela poderia afirmar que estava parecendo uma criada, moribunda e suja. Talvez, em outra hipótese, uma mendiga adoentada pelas incontáveis surras sofridas de gente sem o menor pingo de consideração.

E tudo isso só a levava a uma pergunta: seria esse um novo castigo arquitetado por Iluneia para humilhá-la? Uma nova forma de mostrar suas origens humildes a quem quisesse ver? Não houve tempo para Dália sequer pensar sobre isso; a porta se abriu, e, como um fantasma perverso, a duquesa surgiu na soleira da porta, fazendo com que a luz — que não incomodara Dália da primeira vez que a porta foi aberta — a obrigasse a fechar os olhos. Somente os abriu de novo quando o riso de satisfação de Iluneia ecoou.

— A origem não pode mesmo ser negada — ela constatou, aproximando-se de Dália para vê-la melhor. A garota sentiu seu corpo se encolher. — Olha para você, a cara de uma vadia sem teto. Nenhum dos vestidos requintados combinaram tanto contigo quanto esses lixos em seu corpo.

— S-Se a... madame diz, é porque é.

— Parece que você aprendeu a lição. Perfeito.

Iluneia sorriu, e Dália fez de tudo para acompanhá-la, mas o máximo que conseguiu foi um leve e trêmulo arquear de lábios.

— Se… se não for muita arrogância a minha perguntar, por que estou vestida assim? — disse Dália, no entanto, logo se arrependeu. A expressão satisfeita da duquesa havia se tornado uma carranca amarga.

— Devido a sua incompetência, agora precisamos gastar dinheiro com um mago andarilho para curá-la se não quisermos problemas com o Grão-Duque. Mas ele não pode desconfiar que você é Dália, muito menos que pertence ao ducado de Lennart. Então, pensei em torná-la uma moribunda que tentou nos roubar e agora está pagando por seu débito após uma pequena punição.

Pequena?, Dália engoliu em seco e cerrou os punhos. Fez de tudo para se manter alheia as palavras da duquesa e não demonstrar emoção quando disse:

— Continuarei aqui até quando?

— Se dependesse de mim, seria para sempre. — A fraca menção a ideia fez a garota se arrepiar. — Mas, como você tem uma tarefa a executar, será até o mago ir embora. Talvez mais um dia ou dois. Quem sabe?

Dália assentiu, sem se sentir desanimada. Antes, ela já não tinha esperanças de sair dali tão cedo. Mesmo que precisasse apenas de um dia para seus ferimentos serem curados, Iluneia faria tudo ao seu alcance para mantê-la presa e sofrendo; no lugar imundo que a duquesa achava que ela deveria para sempre ficar.

 — Você é sortuda, Dália — gracejou Iluneia, atraindo a atenção da jovem.

— Como? — Foi a única coisa que conseguiu dizer.

— Você acabou de ganhar mais alguns minutos comigo. Irei terminar de arrumá-la para chegada do mago. — O sorriso no rosto da duquesa aumentou.

— Me arrumar? Já não estou ruim o bastante?

— Oh, claro que não. Você está apenas razoável. — Iluneia fez um gesto com as mãos, e logo algumas criadas, que Dália imaginou estarem aguardando do lado de fora desde o começo da conversa, entraram. Nas mãos da primeira, uma bacia com um líquido marrom brilhava contra a luz da porta. — Além de que iremos pagar muito caro para te curar. Seria uma pena você ter tão poucos ferimentos, não é? Cansaria o mago à toa.

Ao ouvir isso, Dália voltou seus olhos para as outras criadas. Nas mãos da segunda, a mesma que trouxera as roupas, um chicote de couro reluzia como aço na forja.

— A senhora — ela engoliu em seco —, vai me bater?

— Pense que esse é meu presente final de despedida. Perfeito, não?

Dália não respondeu. Apenas fechou os olhos, odiando a si mesma por ser tão indefesa. Não os manteve assim por muito tempo; logo a sensação do líquido viscoso e gelado — que lhe pareceu lama — atingiu seu rosto, trazendo um frescor para a pele inchada. Ela então abriu os olhos, vendo outra das criadas lhe manchando a pele. A pena presente ali, nas íris dela, feriram muito mais do que as chicotadas que Dália enfrentou depois.

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Comments

Se esse é o pequeno castigo quero nem imaginar o grande

2025-01-15

1

Cherry_Switter

Cherry_Switter

Meu deus...haja paciência pra essa vaca jararaca

2025-01-17

1

Carolini Meneget

Carolini Meneget

Essa mulher tá me dando nojo, bicha safada

2025-01-16

1

Ver todos
Capítulos
1 Parabéns, Dália
2 O Passado
3 Dália Não Vive
4 Por Uma Lágrima
5 No Breu
6 Um Mago Andarilho
7 Sopro
8 Como Boneca
9 Desejo & Pesadelo
10 Viagem Para A Morte
11 Chegada Ao Grão-Ducado
12 De Costas Para A Escada
13 Um Café Da Manhã Esclarecedor
14 O Sorriso Gélido de Arion
15 Um Jantar, Uma Data E Um Toque Afiado
16 Uma Conversa Com A Criada
17 Um Encontro No Jardim
18 Aceita Chá? - Parte 1
19 Aceita Chá? - Parte 2
20 A Costureira Sabe-Tudo - Parte 1
21 A Costureira Sabe-Tudo - Parte 2
22 A Noite Antes Da Cerimônia
23 Antecipar
24 Avisos e Explicações
25 Véu, Grinalda E Tons De Sangue - Parte 1
26 Véu, Grinalda E Tons De Sangue - Parte 2
27 Proposta Irrecusável
28 Conversa No Escritório
29 No Quarto De Dália
30 Assinando Os Papéis
31 Um Confronto & Um Encontro
32 Uma Conversa Com Anh
33 No Escuro
34 No Campo De Treino
35 Lições Ao Amanhecer
36 Embate E Dúvidas
37 Uma Conversa Reveladora
38 Promessa
39 O Peso das Decisões
40 Uma Pista
41 O Confronto Nos Estábulos
42 Uma Jogada Arriscada
43 Selando Um Acordo
44 Caminhos Reais
45 Treinando A Magia
46 Equilíbrio Na Tempestade
47 Uma Recordação Prateada
48 Um Reflexo Selvagem
49 Obrigações
50 Segredos À Mesa
51 No Jardim Ao Amanhecer
52 A Perda De Controle
53 A Dor Da Revelação
54 Origens
55 Reunião E Descobertas
56 O Segredo de Ivy
57 O Plano De Arion
58 Juramento
59 Três dias E Um Beijo
60 Sentimentos
61 Sob A Luz Da Lareira
62 Uma Âncora No Caos
63 O Banquete Começa
64 Tensão Sob A Superfície
65 O Fardo Da Grã-Duquesa
66 O Fim Da Mentira
67 O Confronto Final
68 O Desfecho Da Batalha
69 Desespero E Poder
70 Eco Da Justiça
71 Uma Semana Depois
72 Epílogo - Sob O Sol De Vespehlla
73 Notas Finais
Capítulos

Atualizado até capítulo 73

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Parabéns, Dália
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O Passado
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O Sorriso Gélido de Arion
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Véu, Grinalda E Tons De Sangue - Parte 1
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Um Confronto & Um Encontro
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Uma Conversa Com Anh
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