Se olhar bem de perto verá
Que esse rosto sorridente
Não consegue sustentar
Essa dor que não deixa escapar
E por dentro se afoga
Já não pode respirar
"Estou contigo, não te assombres, não te abandono. "
*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*
Terminei de lhe dar o resto de comida que já estava ficando fria no prato quando o telefone começa a chamar novamente.
Hoje é dia das ligações, elas devem ter combinado.
-Quem é?
- Tia Paula.- Falo sentindo estranheza, fazia tempos que ela não me ligava.- Tia Paula, como vai?
- Não vem com essa rapazinho, porque você ainda não passou aqui em casa?- Lembro que Henrique já deve ter avisado a ela que estou na cidade.
O casal Paula e Vitor Martin eram como uma segunda família para Aaron e eu, eles também eram os melhores amigos dos meus pais e nos deram muito apoio depois do acidente.
-Eu vim a trabalho, cheguei ontem e ainda não tive tempo.
-Passa o final de semana aqui então, eu estou com saudade de você!
Eu queria pensar num modo de recusar, toda vez que nos víamos era a mesma conversa insistente sobre deus. Eles não entendiam que eu me sentia bem como estava e não queria mudar, por outro lado era bom estar com pessoas conhecidas que não são do trabalho e eu ainda considerava muito o Thiago como meu amigo, mas nós não éramos mais crianças para ficar indo na casa um do outro para brincar.
-Eu tenho que ver com o Aaron se ele quer ir...- Planejo dizer "não, porque meu irmão não quis".
-Aaron também veio? Que maravilha!!!- Ela se anima do outro lado.- Conversa com ele e pergunta se ele vem ficar um tempo comigo...
-Só um instante tia.- Coloco o telefone de lado e falo com meu irmão- Aaron, a Tia Paula quer saber se você quer passar o final de semana na casa dela...
Termino de falar balançando a cabeça em negativa, balançando o dedo e gesticulando um "não" mas sem expressar som.
-Claro que eu quero!- Ele responde numa altura que tenho certeza que ela ouviu do outro lado da linha. Esse miserável me paga!
-Nós vamos tia, passar o final de semana com vocês!- Falo por entre os dentes num sorriso forçado de ódio.
-Perfeito! Espero vocês sábado de manhã?
-Eu estava pensando mais para depois do almoço...
-Não, nada disso, eu quero vocês no café!- Passo a mão na testa e depois esfrego os olhos cansado. Merda, como recusar sem parecer ignorante?
Qualquer pessoa normal saberia como responder, mas eu não sou uma pessoa com aptidão sociais e não queria ser grosso com ela.
-Tá bem tia, estaremos aí para o café.
Fuzilo Aaron com os olhos.
-Thiago e Taís ficarão tão felizes quando souberem... Até sábado então.
-Feliz?- Pergunto para Aaron depois que a ligação foi encerrada.
-Estou, você não tem amigos e vai ser bom rever os antigos.
-Eu não preciso de amigos, eu tenho você!
-E ainda assim passou cinco anos sem me ver.- Ele fala sério, mas posso sentir a mágoa.
-Eu nunca deixei de te ligar.
-Não é a mesma coisa.- Eu sei, penso.
-Só espero que ninguém mais me ligue essa noite.- Mudo de assunto enquanto tira a toalha que havia feito de babador enquanto o alimetava.
Aaron só não tinha o movimento dos ombros para baixo, e o pouco que ele tinha na mão usava para movimentar o controle da cadeira elétrica que usava, o computador e tablet, assim ele conseguia trabalhar home office, com a evolução da tecnologia ele também podia fazer coisas simples como realizar uma ligação por meio de comando de voz, como provavelmente fez ontem quando chegou de viagem. Ele podia não movimentar o corpo mas a mente era quase de um gênio.
Eu estava absolutamente sem fome, então levo meu irmão para a cama, passo a sonda recolhendo a urina, e escovo seus dentes. No início de tudo eu que passava a maior parte do tempo cuidando dele, posso ter ficado longe nos últimos anos mas ainda sabia como realizar os cuidados.
Monto o suporte do tablet e deixo ele estudando algo sobre leis. Verifico se está tudo bem para ele ficar sozinho enquanto vou dar uma volta por aí, esfriar a cabeça. Olho no relógio e eu ainda poderia encontrar a academia aberta esse horário, resolvo ir ver se consigo o lugar para treinar.
Logo ao sair na rua meu celular vibra com uma mensagem. Olho no visor a notificação com o nome do Thiago.
"Hey Cara, minha mãe acabou de falar comigo sobre vc... Tá ocupado?"
"Não. estou livre, porque?"
"Quer ir comigo no clube?"
Lembro que Thiago faz natação e é uma boa um mergulho esse horário, até onde sei as piscinas também são aquecidas.
"Manda aí o endereço"
Volto para o prédio e pego uma roupa para mergulhar, aviso meu irmão onde eu estava indo e logo chega a mensagem com o endereço. Fico aguardando um carro de aplicativo.
O clube não era bem um clube, mas um ginásio com piscinas, pelo horário o lugar estava vazio, apenas via Thiago sentado na borda de uma piscina.
-Olha aí, o mais novo doutor dessa cidade!- Ele me vê e estende a mão num comprimento mais contido enquanto me sento do seu lado.
-Cara, quanto tempo...
- Pois é, como vai o pessoal na sua casa?
-Vão bem, não temos muita novidade depois da última vez que nós conversamos.
-Entendi, e a Taís já casou?- Na última vez que o Thiago me falou sobre ela, me lembro que estava noiva, mas isso já faz mais de ano e nós não voltamos ao assunto.
Thiago sorri e joga a cabeça para trás.
-Graças a Deus, não.- Fico sem entender o que é tão engraçado.
-E você, quando vai parar de enrolar a Camilla?
-Boa pergunta, não sei. Te falei que mudei de hospital?
-Acho que você mandou uma mensagem comentando algo a respeito.
-Então, vou esperar ver como fico nessa adaptação e quando tiver certeza que tenho estabilidade penso em pedi-la em casamento. Casar custa caro!
-Eu não sei, nunca casei e nem pretendo, mas deve ser caro mesmo.
-Ah Tá bom. Você não pensa em se apaixonar, casar, ter estabilidade, filhos...
Eu penso por um momento antes de responder.
-Não, não quero. Eu quero é mergulhar, e agora.- Falo me levantando e tirando a blusa.
Me jogo na piscina espalhando água para todo lado.
-Oh seu demente, molhou minha roupa.- Thiago reclamar enquanto se levanta tirando a roupa e mergulhando em seguida.
Nadamos, competimos para ver quem alcançava a borda oposta primeiro e assim nem vemos o tempo passar até estarmos cansados.
Eu queria estar ali, mergulho e prendo minha respiração. Por um momento penso que a pressão da água é suficiente para afogar meus problemas, minhas mágoas e meus tormentos. Era a primeira vez que eu sentia essa sensação que a água causa, como se o que estava fora finalmente se igualou ao que estava por dentro. Eu queria ficar ali até perder todo o fôlego, mas meus reflexos malditos me fazem voltar a superfície em busca de ar.
Mergulho uma outra vez, eu queria aquela sensação uma outra vez...
A pressão vai aumentando os ecos do universo em meu ouvido, e minha cabeça se perde no azul da água, outro espasmo faz meu corpo se agitar mas me acalmo, minha boca se abrir fazendo bolhas de ar. Dessa vez eu resisto, a vontade de emergir é menor que a vontade de me manter ali.
[...Alex]
-...Alex!
Thiago me puxou depois do que devia ser muitos segundos ou minutos. Eu odiava esses momentos, eu era colocado de frente a uma dor que queria esconder, eu vivia esquecendo que ela ainda existia, mas vez ou outra a gente se encontrava olhando no fundo dos olhos, num ato impensado da perca da razão.
Olho para Thiago que me encarava como se soubesse o que eu tentei fazer e isso me envergonha.
Eu odeio isso, vou de um a um milhão em segundos, a muito tempo eu não tinha uma crise dessas.
-Parabéns, você agora consegue segurar a respiração por mais tempo que eu, andou treinando?
Não respondo
-Vamos embora.- Ele fala sério.
Balanço a cabeça e saímos da piscina sem dizer mais nenhuma palavra.
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"Minha dor hoje tem um porquê
Mesmo que ela insista
Ver teu rosto me mantém
No meu deserto
É impossível caminhar"
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Atualizado até capítulo 20
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