Sylwen

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Capítulo 1 - Decadência

O líquido rubro e viscoso escorria lentamente para fora da ferida aberta, desenhando trilhas irregulares, antes de gotejar pesadamente no chão.

    Deslizei os dedos cautelosamente pelo líquido espesso e desconhecido, sentindo sua textura viscosa grudar levemente na pele. Levei-os ao nariz, e o cheiro ferroso invadiu minhas narinas de imediato, fazendo-me recuar instintivamente com uma leve contração do rosto. Nunca, em toda a minha vida, tinha visto algo assim em Orinthar. Um calafrio percorreu minha espinha enquanto meus olhos analisavam a substância com crescente inquietação. Sem hesitar, abri o bornal e agarrei um frasco pequeno, que sempre carregava comigo. Precisava coletar uma amostra — examinar o que era aquele líquido estranho.

    Quando o frasco ficou cheio, segurei-o firmemente e encarei o líquido com uma expressão confusa. Algo estava errado, muito errado. Respirei fundo, apoiando a mão no tronco ferido, e murmurei em um tom reconfortante:

    — Não se preocupe, Orinthar. Eu vou descobrir o que é isso.

    Mas antes que pudesse esboçar qualquer outra reação, vozes ásperas cortaram o silêncio atrás de mim.

    — ALTO!

    Virei-me num sobressalto. Dois soldados se aproximavam com expressões furiosas. Seus olhares alternavam entre a ferida aberta no tronco e o frasco em minha mão.

    — O que pensa que está fazendo com Orinthar? — Um deles esbravejou, cerrando os punhos.

    — O quê? Eu... eu não fiz nada! — Protestei, sentindo o pânico subir à minha garganta.

    — Não adianta mentir... Pegamos você no flagrante envenenando Orinthar!

    — Espera...Garruk...Lorcan... voces não acham que logo eu...!

    Antes que eu pudesse reagir, Lorcan avançou com rapidez. Um golpe certeiro no meu estômago me fez dobrar o corpo e cair pesadamente no chão. A dor explodiu em minha barriga, e eu soltei um gemido ofegante, tentando recuperar o fôlego enquanto a visão se turvava. Quando finalmente olhei para cima, ainda tonta, Garruk e Lorcan estavam à minha frente. A respiração estava acelerada, o coração batendo descompassado, mas o que mais me atingiu foi a confusão. Eles me conheciam desde criança, pessoas em quem eu confiava. Como podiam estar agindo assim? Eles eram os soldados mais respeitados de Aurelith, conhecidos pela honra e pela lealdade. O que tinha acontecido para que me tratassem dessa forma?

    Garruk, com um olhar impiedoso, agarrou a lança e avançou em minha direção com uma ferocidade surpreendente. No último segundo, consegui desviar, o vento cortando meu rosto enquanto a lança cravava com um estrondo no chão, espalhando terra e pedaços de pedras ao redor. Meus olhos estavam arregalados, o coração batendo descontrolado,  minha respiração estava pesada e errática. O choque da situação quase me paralisou, mas a adrenalina me empurrou para cima. Com um esforço desesperado, levantei voo, as asas batendo com força para me afastar rapidamente.

    Aquilo era impossível... Ele tinha tentado me matar? A dor e a incredulidade queimavam em minha mente enquanto eu voava em direção ao palácio. Precisava chegar até meu pai, imediatamente. Ele saberia o que fazer.  Quando finalmente me aproximei da entrada um grito furioso cortou o ar.

    — Segurem ela! — A voz grave de Garruk ecoou.

    Ao seu lado, Lorcan apontava diretamente para mim, sua expressão tomada pela fúria.

    — Ela envenenou Orinthar!

    Os soldados hesitaram por um breve instante, trocando olhares incertos entre si.

    — O que estão esperando? Vão logo! — Bradou Lorcan, impaciente.

    Dessa vez, não houve mais dúvidas. Em um único movimento sincronizado, as asas dos guardas se abriram e, num turbilhão de vento e aço, eles alçaram voo, vindo em minha direção. Meu coração disparou.

        Sem alternativas, parei abruptamente no ar, fingindo uma manobra de rendição, apenas para mudar de curso no último instante. Virei no ar e disparei para longe do palácio, sentindo o vento chicotear meu rosto. Sobrevoei Aurelith com velocidade, mas os soldados não desistiam. A cada esquina, mais deles se juntavam à perseguição, formando um enxame implacável atrás de mim.

    O conflito dentro de mim era aterrador. Se eu parasse agora, se tentasse me explicar, saberia que seria morta antes mesmo de conseguir emitir uma palavra. Mas, se eu continuasse a fugir, as suspeitas sobre mim só cresceriam.

    Eu precisava de tempo. Tempo para que tudo se acalmasse, para que as evidências fossem analisadas, para que a verdade emergisse. Não podia continuar assim, sendo caçada. Precisava encontrar um lugar para me esconder, e esperar a poeira baixar.  A partir dali, poderia buscar uma forma de falar com meu pai ou meu irmão. Eles não deixariam essa acusação absurda recair sobre mim—disso, eu tinha certeza.

    E eu sabia exatamente para onde ir!

    Depois de alguns minutos, finalmente avistei meu esconderijo. Antes apenas um cenário para brincadeiras inocentes, agora se tornava meu único refúgio, ainda que temporário, me daria o tempo necessário para recuperar o fôlego e planejar o próximo passo.

    O esconderijo ficava dentro de uma grande árvore, seu tronco oco formando uma câmara oculta da vista de qualquer um. A única passagem era uma abertura estreita, mas o suficiente grande para que eu me esgueirasse para dentro. Assim que entrei, conjurei uma bola de luz, que flutuou ao meu lado, lançando sombras suaves nas paredes rugosas de madeira.

    Talvez fosse mais seguro esperar ali até o amanhecer. O lugar estava em completo abandono há anos. Poeira e teias de aranha cobriam cada canto. Depois de horas em silêncio absoluto, a dor da pancada que havia recebido começava a latejar intensamente. A cada respiração, sentia um puxão doloroso no estômago, e várias vezes a dor me fazia perder o ar, deixando-me tonta e fraca. Foi então que um som distante cortou o silêncio, um leve estalo que veio de algum lugar fora do refúgio.

    Com o coração disparado, me levantei cuidadosamente, tentando ignorar a dor que ainda me atormentava. Invoquei a minha Nodachi¹, que surgiu em minha mão rapidamente. Ajoelhei-me perto de uma fresta na casca da árvore e espreitei cautelosamente pela abertura. Mas, por mais que meus olhos tentassem ajustar-se à escuridão, não conseguia distinguir nada.

    — Syl! — A voz masculina quebrou o silêncio.

    Meu corpo enrijeceu no mesmo instante, o susto acelerando ainda mais meu coração. Mas, ao me virar e reconhecer quem era, um alívio morno se espalhou pelo meu peito. Fiz minha espada sumir tão rápido quanto apareceu.

    — Malrik! — Exclamei, indo ao encontro dele. — O que está acontecendo?  — Perguntei angustiada.

    Ele balançou a cabeça, a expressão carregada de incerteza.

    — Eu não sei ao certo... Mas todos os guardas estão atrás de você.

    Um frio percorreu minha espinha.

    — Mas eu não fiz nada! Você acredita em mim, não é, Rik?

    — Claro, minha irmã. — Malrik segurou minhas mãos trêmulas, apertando-as com firmeza. — Sei que jamais seria capaz disso.

    Soltei um suspiro trêmulo. Pelo menos alguém estava ao meu lado.

    — E o pai? O que ele disse?

    O silêncio de Malrik me deixou inquieta.

    — Fale logo, irmão! Nosso pai... o que ele disse?

    Ele abaixou levemente a cabeça antes de responder, a voz grave carregada de pesar.

    — Bem... ele pediu sua prisão... agora todos os soldados estão atrás de você.

    Coloquei as duas mãos sobre a boca, tentando desesperadamente conter as lágrimas que ameaçavam cair, queimando meus olhos.

    — Escute, Syl... — disse Malrik com a voz tensa, mas firme. — Você precisa fugir, ir para longe. Eu vou encontrar uma forma de provar sua inocência.

    — Mas... — minha voz falhou, perdida entre o medo e a incredulidade.

    — É o único jeito. Se te pegarem, provavelmente será morta! — A urgência em suas palavras fez meu peito apertar.

    Eu não queria fugir, não queria abandonar o único lugar que conhecia como lar, o único lugar que ainda me dava alguma sensação de segurança. Mas a realidade se impôs, e eu sabia que ele estava certo. Não havia como provar minha inocência naquele momento. Era a única escolha.

    — Eu trouxe isso para você. — Malrik disse, estendendo-me um embornal cheio de suprimentos.

    Olhei o embornal com um cuidado visível, como se cada item ali fosse uma mensagem de carinho. Ele havia preparado tudo com tanta atenção, como sempre fazia. Malrik era meu irmão gêmeo, mas também o mais velho, e desde sempre foi o meu protetor. Ele sempre cuidou de mim, com uma dedicação silenciosa, que raramente demonstrava de outras formas. Era o único além de mim que conhecia o esconderijo, e isso sempre me dava uma sensação de segurança, sabendo que ele estaria ali, em qualquer situação.

    Embora fôssemos fisicamente muito semelhantes — cabelos azuis e olhos da mesma cor — nossas personalidades eram bem diferentes. Enquanto eu tendia a agir impulsivamente, Malrik era mais calmo, sempre refletindo antes de tomar qualquer decisão, ponderando as consequências de cada ação. Ele era a mente sensata, o equilíbrio que eu muitas vezes não tinha.

    Ele me puxou para um abraço apertado, e suas palavras foram suaves, mas cheias de preocupação:

    — Tome cuidado, minha irmã, e não se esqueça, estou fazendo o possível aqui. — Ele se afastou um pouco, suas mãos ainda em meus ombros, e me olhou nos olhos com a intensidade de quem estava fazendo uma promessa. — Assim que eu provar sua inocência, eu mesmo vou te trazer de volta!

    — Obrigada, Rik! — Respondi com a voz embargada, sentindo uma mistura de gratidão e medo.

    De repente, o som de vozes distantes me chamou a atenção. Rapidamente me aproximei da fresta entre os troncos das árvores, espiando cautelosamente. Lá fora, soldados Elunaris pousaram por perto. Bem armados e organizados, vasculhavam a área, seus olhos atentos a cada movimento.

    — Encontrem ela! — Um dos soldados disse, sua voz carregada de impaciência.

    Malrik me olhou rapidamente e sussurrou:

    — Eu vou atraí-los para longe. Aproveite a chance para fugir.

    Eu sabia que não havia escolha. Olhei para ele uma última vez, sentindo uma dor silenciosa no peito, e então assenti. Malrik saiu do esconderijo com uma atitude decisiva e, com uma voz firme, chamou a atenção dos soldados:

    — Ei, vocês! Acho que vi ela indo por ali. — Ele apontou para o lado oposto, desviando a atenção dos perseguidores.

    Num movimento ágil, ele levantou voo, e os soldados imediatamente o seguiram, confiantes de que ele estava no controle. Ainda ofegante, saí do esconderijo com cautela, cada passo cuidadoso para não fazer barulho. Quando me senti segura o suficiente, levantei voo, afastando-me de Aurelith.

    Antes de realmente me afastar, pausei. Olhei para trás, para o lugar que sempre considerei meu lar, o único que conheci e onde tantos momentos haviam sido vividos. Um aperto no peito me invadiu, e os olhos se encheram de lágrimas. Era como se estivesse me despedindo de tudo o que fui, de tudo o que talvez nunca mais pudesse ter.

    Com um último suspiro e os olhos cheio de lagrimas, virei as costas para aquele lugar. Então voei sem rumo, em direção ao Mar de Cristal. Onde eu não sabia o que me aguardava, mas sabia que a partir daquele momento, nada mais seria como antes.

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¹ Nodachi - É uma espada japonesa de lâmina longa, semelhante a uma katana, mas maior e mais pesada. Geralmente se empunha com as duas mãos.

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Gaby G.B.R.

Gaby G.B.R.

/Smug/

2025-03-25

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Capítulos
1 Capítulo 1 - Decadência
2 Capítulo 2 - Azul, a Cor da Confusão
3 Capítulo 3 - Raças
4 Capítulo 4 - O Estranho Gentil
5 Capítulo 5 - Medo e Esperança
6 Capítulo 6 - Sentimentos
7 Capítulo 7 - Um refúgio Inesperado
8 Capítulo 8 - Um turbilhão de Incertezas
9 Capítulo 9 - Esperança
10 Capítulo 10 - Os Jogos.
11 Capítulo 11 - Planos
12 Capítulo 12 - O Atalho
13 Capítulo 13 - Atitudes
14 Capítulo 14 - Mudanças
15 Capitulo 15 - O Confidente.
16 Capítulo 16 - O Coração de Orinthar.
17 Capítulo 17 - O Reino de Elarian
18 Capítulo 18 - Uma Nova Ajuda.
19 Capítulo 19 - Confusão e Sentimentos.
20 Capítulo 20 - Asas
21 Capítulo 21 - A Biblioteca.
22 Capítulo 22 - Irmãos
23 Capítulo 23 - Flor de Fada
24 Capítulo 24 - Problemas
25 Capítulo 25 - A Visita.
26 Capítulo 26 - Dúvidas.
27 Capítulo 27 - Inimigos
28 Capítulo 28 - Entre Asas e Muralhas.
29 Capítulo 29 - O Convite.
30 Capítulo 30 - O Baile.
31 Capítulo 31 - Expectativas
32 Capítulo 32 - O Peso da Coroa.
33 Capítulo 33 - A Ausência
34 Capítulo 34 - Uma pequena pausa
35 Capítulo 35 - Confiança
36 Capítulo 36 - Por Aurelith
37 Capítulo 37 - Suspeitas
38 Capítulo 38 - Fúria e Dor.
39 Capítulo 39 - Luto
40 Capítulo 40 - A Culpa.
41 Capítulo 41 - A Prisioneira.
42 Capítulo 42 - Consequências
43 Capítulo 43 - A Última Proposta
44 Capítulo 44 - O Preço da Arrogância
45 Capítulo 45 - Emoção e Cuidado.
46 Capítulo 46 - Recuperação e Lembranças
47 Capítulo 47 - As Primeiras Rachaduras
48 Capítulo 48- Entre algodão-doce e o Fim do Mundo
49 Capítulo 49 - Quando o Silêncio Grita
50 Capítulo 50 - Promessa na Escuridão
51 Capítulo 51 - Porque Você Ficou
52 Capítulo 52 - Entre Panquecas e Pesquisas
53 Capítulo 53 - A Arma Rúnica.
54 Capítulo 54 - Coração no Controle.
55 Capítulo 55 - Conexão
56 Capítulo 56 - Certezas.
57 Capítulo 57- Detalhes e Revelações.
58 Capítulo 58 - Momento a Dois
59 Capítulo 59 - O Pedido
60 Capítulo 60 - Entre Sonhos e Realidade
61 Capítulo 61 - Dente-de-leão.
62 Capítulo 62 - No Fio da Promessa
Capítulos

Atualizado até capítulo 62

1
Capítulo 1 - Decadência
2
Capítulo 2 - Azul, a Cor da Confusão
3
Capítulo 3 - Raças
4
Capítulo 4 - O Estranho Gentil
5
Capítulo 5 - Medo e Esperança
6
Capítulo 6 - Sentimentos
7
Capítulo 7 - Um refúgio Inesperado
8
Capítulo 8 - Um turbilhão de Incertezas
9
Capítulo 9 - Esperança
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Capítulo 16 - O Coração de Orinthar.
17
Capítulo 17 - O Reino de Elarian
18
Capítulo 18 - Uma Nova Ajuda.
19
Capítulo 19 - Confusão e Sentimentos.
20
Capítulo 20 - Asas
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Capítulo 21 - A Biblioteca.
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23
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26
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29
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34
Capítulo 34 - Uma pequena pausa
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Capítulo 36 - Por Aurelith
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Capítulo 39 - Luto
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42
Capítulo 42 - Consequências
43
Capítulo 43 - A Última Proposta
44
Capítulo 44 - O Preço da Arrogância
45
Capítulo 45 - Emoção e Cuidado.
46
Capítulo 46 - Recuperação e Lembranças
47
Capítulo 47 - As Primeiras Rachaduras
48
Capítulo 48- Entre algodão-doce e o Fim do Mundo
49
Capítulo 49 - Quando o Silêncio Grita
50
Capítulo 50 - Promessa na Escuridão
51
Capítulo 51 - Porque Você Ficou
52
Capítulo 52 - Entre Panquecas e Pesquisas
53
Capítulo 53 - A Arma Rúnica.
54
Capítulo 54 - Coração no Controle.
55
Capítulo 55 - Conexão
56
Capítulo 56 - Certezas.
57
Capítulo 57- Detalhes e Revelações.
58
Capítulo 58 - Momento a Dois
59
Capítulo 59 - O Pedido
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Capítulo 62 - No Fio da Promessa

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