Os dias que se seguiram foram surpreendentemente tranquilos. Dante continuava a cuidar de mim com a mesma dedicação de sempre e, como prometido, arrumou um quarto para mim. Fiz questão de ajudá-lo na limpeza, embora a poeira acumulada desafiasse minha resistência. A cada espanada ou movimento da vassoura, uma nova crise de espirros me atacava, mas isso não me impediu de continuar.
Quando terminamos, abri a janela para deixar o ar fresco circular pelo ambiente recém-limpo. O colchão agora estava coberto com lençóis macios e cobertas perfumadas, e as minhas roupas estavam dobradas e organizadas no pequeno armário. Dante também instalara uma prateleira simples, onde dispôs alguns livros.
Um deles chamou minha atenção imediatamente. A capa dourada brilhava sob a luz, exibindo a ilustração detalhada de uma quimera e uma dama dançando sob um céu estrelado. As letras elegantes no topo não deixavam dúvidas: "A Bela e a Fera". Ergui os olhos para Dante, que ainda estava concentrado na arrumação, e, intrigada, perguntei:
— Você já leu esse?
Ele olhou para o livro e então voltou a atenção a prateleira e disse:
— Já... uma vez — respondeu Dante, sem muita empolgação. — É uma história boa, mas fantasiosa demais… Uma garota se apaixonar por uma fera? Isso só acontece em livros de fantasia mesmo.
Ele disse isso com um tom sério, enquanto continuava a organizar os livros na prateleira.
— Ah, então é um romance! — Comentei, ainda observando a capa dourada com curiosidade.
— Sim… — ele respondeu de forma despreocupada, sem tirar os olhos do que estava fazendo.
Hesitei por um momento antes de perguntar, mas a curiosidade foi maior:
— Dante… você já se apaixonou?
O impacto da pergunta foi imediato. Ele, que segurava uma pilha de livros, deixou tudo cair no chão com um baque surdo. Piscou algumas vezes, me encarou e, em seguida, olhou para o teto, como se buscasse a resposta entre as vigas de madeira.
— Humm… bem… já namorei uma vez… Mas acabou não dando certo.
— E por quê? — Perguntei, inclinando a cabeça.
Dante franziu a testa, um claro aviso de que eu estava ultrapassando limites. Sem responder, abaixou-se para recolher os livros, ignorando minha insistência. Mas eu não estava disposta a deixar o assunto morrer tão facilmente. Com um sorrisinho travesso, cutuquei sua cintura quando ele levantou. Ele deu um sobressalto imediato e me lançou um olhar surpreso.
— Por quê? — insisti, divertida com sua reação.
Dante soltou um longo suspiro e, depois de um momento de hesitação, murmurou:
— Ela era… complicada.
— Complicada? — repeti, curiosa.
Ele coçou a nuca, parecendo desconfortável, e finalmente respondeu:
— É… ela só queria… — fez uma pausa, desviando o olhar — passar as noites comigo, sabe?
O silêncio que se seguiu pareceu se prolongar mais do que o necessário. Dante evitava me encarar, concentrando-se nos livros como se, de repente, organizá-los fosse a tarefa mais importante do mundo.
Ergui as sobrancelhas, surpresa com sua resposta.
— E isso foi um problema? — Perguntei, cruzando os braços.
Dante soltou um suspiro pesado e passou a mão pelos cabelos, parecendo incomodado com o rumo da conversa.
— Não… — murmurou. — Mas parecia que era a única coisa que importava para ela.
Fiquei em silêncio por um instante, absorvendo suas palavras. Ele não estava apenas contando sobre um relacionamento antigo; havia algo mais profundo ali, uma mágoa talvez.
— E você queria mais do que isso? — Perguntei, suavizando o tom de voz.
Dante hesitou por um momento antes de assentir levemente.
— Sim… queria que fosse real. Mas no fim, percebi que eu só era conveniente para ela.
Havia um peso em suas palavras que me fez morder o lábio. Não era comum vê-lo falar sobre si dessa maneira.
— Sinto muito… — murmurei.
Ele deu um meio sorriso, mas não havia humor ali.
— Não precisa sentir. Já faz tempo.
Dante voltou a organizar os livros, como se estivesse tentando se esconder atrás daquela tarefa mundana.
— Certo… mas isso não responde minha pergunta — provoquei, cruzando os braços e inclinando levemente a cabeça.
Ele parou por um instante, tensionando os ombros. Então, lançou-me um olhar de soslaio, suspirando pesadamente, como se estivesse se rendendo à minha insistência.
— Não… eu nunca me apaixonei… Satisfeita? — Disse, a impaciência evidente no tom de voz.
Uma risada suave escapou antes que eu respondesse:
— Agora estou. — Falei em um tom brincalhão, saboreando a pequena vitória.
Dante revirou os olhos, balançando a cabeça, e voltou a atenção para os livros.
— E você? — ele perguntou de repente, sem me encarar. — Já se apaixonou?
A pergunta me pegou desprevenida, e por um momento, tudo que fiz foi piscar algumas vezes, sem saber como responder.
— Eu… acho que não.
Dante olhou pra mim e ergueu uma sobrancelha.
— Acha?
Soltei um suspiro, sem jeito.
— Não sei como é estar apaixonada de verdade. Se é esse sentimento avassalador dos livros ou algo mais sutil. Então… acho que ainda não aconteceu.
Ele soltou um pequeno riso pelo nariz.
— Talvez porque livros de romance exagerem demais…
Revirei os olhos e segurei o livro entre os dedos, observando a capa dourada mais uma vez.
— Ou talvez eu só esteja esperando a história certa…
Dante ficou em silêncio por um instante, e quando ergui o olhar para ele, vi que me observava de um jeito que me fez prender a respiração por um segundo. Mas, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele desviou o olhar e voltou a organizar os livros.
— Quem sabe um dia você encontre.
Fiquei encarando sua silhueta por mais alguns segundos antes de soltar um pequeno suspiro e olhar novamente para a capa dourada do livro em minhas mãos.
— De qualquer forma, ainda sou muito nova para essas coisas — comentei, dando de ombros.
Dante, ainda concentrado nos livros, fez uma pergunta sem sequer se virar para mim:
— Quantos anos você tem?
— Cento e cinquenta e dois — respondi com naturalidade.
O som seco de um livro caindo no chão ecoou pelo quarto. Ele me olhou, os olhos arregalados de incredulidade.
— Cento e cinquenta e dois?! — Repetiu, como se quisesse ter certeza de que tinha ouvido direito. — E isso é ser nova?
Segurei uma risada diante de sua expressão chocada.
— Para a sua raça, talvez não — expliquei, cruzando os braços — mas meu povo pode viver até mil anos. Então, pelo nosso padrão, eu ainda nem sou adulta.
Dante arqueou uma sobrancelha e me lançou um olhar avaliativo, percorrendo meu corpo dos pés à cabeça de um jeito que me fez sentir um calor inesperado no rosto.
— Para mim, você parece bem adulta. — Comentou, sua voz carregada de uma observação implícita.
Desviei o olhar, desconcertada, sentindo uma onda de calor subir pelo pescoço.
— Isso porque você está olhando com os olhos errados — retruquei, tentando esconder o rubor nas bochechas.
Ele riu baixo e voltou a empilhar os livros, mas pude notar o pequeno sorriso ainda brincando nos cantos de seus lábios.
Mas eu ainda sentia o calor em meu rosto e um estranho formigamento na nuca. Seu olhar avaliativo havia me deixado desconcertada, e por mais que eu tentasse ignorar, a frase dele continuava ecoando na minha mente.
"Para mim, você parece bem adulta."
Cruzei os braços e tentei mudar de assunto.
— E você? Quantos anos tem?
Ele ergueu os olhos para mim com um brilho divertido.
— Vinte e sete.
Dessa vez, fui eu quem arregalou os olhos.
— Só isso?!
— O que foi? — Ele sorriu de canto. — Parece chocada como eu fiquei agora há pouco.
Revirei os olhos e bufei.
— É que… comparado a mim, você ainda é praticamente um bebê.
— Então estamos quites, já que para mim você é uma anciã — disse ele, com um sorriso provocador.
Arregalei os olhos, incrédula.
— Anciã?!
Sem pensar duas vezes, agarrei um dos travesseiros da cama e o joguei contra ele, acertando-o bem na cabeça. Dante piscou algumas vezes, surpreso, antes de pegar o travesseiro e revidar, atingindo-me de volta com a mesma intensidade.
— Isso aí, uma anciã bonita… mas ainda assim, uma anciã — acrescentou, com um sorriso travesso.
Fiquei boquiaberta, encarando-o como se ele tivesse acabado de dizer a coisa mais absurda do mundo. Dante sustentou meu olhar por um instante, mas então algo pareceu mudar. Seu corpo enrijeceu ligeiramente, como se tivesse percebido tarde demais o que acabara de dizer.
O silêncio pairou entre nós por um segundo longo demais. Então, ele se virou apressadamente, ajeitando os livros de forma desnecessária, sua voz soando repentinamente desconcertada:
— Vamos terminar logo isso… ainda tenho muito o que fazer hoje.
Ele terminou de organizar os livros rapidamente, como se estivesse tentando se livrar de qualquer tipo de conversa, de qualquer pergunta que eu pudesse fazer. Cada movimento dele parecia apressado, impessoal, como se ele estivesse fazendo questão de não me dar mais espaço para continuar com aquela conversa desconfortável.
Eu fiquei sentada na cama por um bom tempo, o silêncio preenchendo o ambiente. Ele realmente me chamou de "bonita", e a dúvida começou a crescer dentro de mim. Tinha sido apenas um elogio espontâneo, uma tentativa de brincadeira, ou ele realmente achava isso?
Decidi descer as escadas atrás dele, ainda com a mente cheia de perguntas. Quando cheguei à sala, o vi abaixado, mexendo na bancada com uma expressão concentrada, como se tentasse se manter ocupado o suficiente para não olhar para mim.
Curiosa, me aproximei, apoiando a mão na borda da bancada.
— O que está fazendo? — Perguntei.
Ele deu um pulo tão grande que quase derrubou tudo na bancada, e, em seu susto, bateu a cabeça no armário logo acima de sua cabeça. Olhei, preocupada, mas ao vê-lo esfregando a cabeça com uma careta de dor, não pude evitar um sorriso.
— Eu vou trabalhar! — Respondeu rapidamente, como se quisesse mudar de assunto o mais rápido possível.
— Trabalhar? — Repeti, agora realmente curiosa.
— É... meu trabalho principal é fazer espadas — explicou, ainda tentando se recompor da surpresa. — Mas, quando fico sem trabalho, o que acontece geralmente nessa época do ano, eu faço poções.
Soltei uma risada baixinha, não conseguindo me controlar.
— Você não é muito bom nisso, né? — brinquei, um sorriso malicioso se formando nos meus lábios.
Dante me lançou um olhar rápido, mas logo desviou, claramente desconfortável com o tom da minha piada.
— Ah é mesmo? Então por que você não me ensina, então? — Ele rebateu, com um sorriso travesso.
Eu arregalei os olhos, surpresa com a sugestão dele, mas logo dei um sorriso de volta, interessada.
— Tá bom, eu te ensino! — Respondi seria.
Ele me olhou com desconfiança, uma sobrancelha erguida.
— Sério? — Perguntou, como se duvidasse da minha palavra.
— Sim, nos Elunaris somos mestres em fazer poções de todos os tipos — afirmei com confiança.
Ele parecia impressionado, mas ao mesmo tempo, não totalmente convencido.
— Não sabia que fadas eram experientes nisso — disse ele, sem perceber o tom da sua palavra.
Naquele momento, meu sangue ferveu. Foi como se um fio de tensão tivesse se rompido dentro de mim. Dei a volta na bancada, indo em sua direção, meu olhar agora carregado de fúria.
— Não me chame de fada! — eu disse, mais grossa do que gostaria, as palavras saindo mais cortantes. — Nos Elunaris não somos fadas.
Dante, vendo a intensidade do meu olhar e o tom que eu usei, ergueu as mãos em sinal de rendição, seu semblante mudando de uma provocação para um pedido silencioso de desculpas.
— Está bem, desculpe… Não te chamo mais assim — disse ele, a voz mais suave.
Com um suspiro profundo, tentando me acalmar, me abaixei para olhar melhor a bancada e o estoque de ingredientes.
— Ok, primeira lição: tenha sempre ingredientes de todo tipo. Não dá pra fazer nada com esse seu estoque mixuruca — falei, tentando manter o tom de quem estava no controle.
Dante bufou, cruzando os braços e olhando para o que restava de seus ingredientes.
— Certo, então… o que sugere? — perguntou, com um leve sorriso.
— Sairmos atrás de ingredientes. Essa época do ano é perfeita para colher os ingredientes necessários para fazer a poção de cura — falei, já com os planos em mente.
Ele me olhou, um pouco intrigado.
— Então é essa que vai me ensinar?
Eu assenti, com um sorriso de confiança.
— A princípio, sim. São as mais fáceis de fazer.
— Ótimo — disse ele, claramente satisfeito com a ideia de aprender algo novo.
— Então vamos? — Perguntei, já empolgada para começar.
— Agora? — ele respondeu, um pouco surpreso com a minha prontidão.
— Sim, ainda está de dia, e temos tempo antes de escurecer — falei, pegando alguns frascos vazios para colocar os ingredientes.
Ele hesitou por um instante, mas logo concordou.
— Está certo, então vou preparar a Maré.
Dante pegou seu cachecol e um casaco quente, já se preparando para sair. Ele não demorou muito para sair para o quintal. Eu, por minha vez, coloquei o embornal com os frascos e, em seguida, meu manto, pronta para sair também. Quando cheguei ao quintal, Dante já tinha preparado Maré.
— Tem uma floresta aqui perto, podemos procurar os ingredientes lá.
Eu sorri, animada.
— Vai ser perfeito — respondi com empolgação. — Geralmente, é sob a sombra de algumas árvores que os Hamamelis¹ nascem. Se tivermos sorte, podemos encontrar alguns deles.
O ar frio do inverno cortava a pele, uma brisa gelada que contrastava com o brilho do sol, que, apesar de claro e forte, não tinha força suficiente para aquecer a temperatura gélida que dominava a paisagem. Cada respiração se tornava uma pequena nuvem branca no ar, um lembrete de quão rigorosa era a estação.
Dante estendeu a mão e me ajudou a montar em Maré com uma facilidade que parecia natural. Quando me ajeitei na sela, ele subiu logo na minha frente. Enquanto cavalgávamos, meus olhos estavam fixos na paisagem ao redor. A neve se estendia em um manto espesso, cobrindo tudo com um brilho suave, como se o mundo tivesse sido envolto por um veludo branco e imaculado. As árvores, com os galhos nus e cobertos por uma fina camada de gelo, pareciam fantasmagóricas e imponentes, como se estivessem guardando o segredo da estação silenciosa.
A beleza pura e serena do cenário me fez me perder por um momento, os olhos vagando pelas árvores distantes e pela neve que brilhava sob a luz do sol. Tudo estava tão tranquilo, como se o tempo tivesse desacelerado para permitir que eu absorvesse toda a quietude daquele inverno.
De repente, Dante puxou as rédeas de Maré, fazendo o cavalo diminuir o passo. Ele apontou para frente, e seu tom de voz se fez mais sério.
— Ali, Syl, as Hamamelis.
Levei um leve susto, pela forma como ele me chamou.
— Me chamou de Syl? — Perguntei, sem conseguir esconder o espanto em minha voz.
Ele olhou por cima do ombro, com um sorriso pequeno, sem perder a concentração no que estava à frente.
— Sim — respondeu de forma simples. — Não gosta?
Eu hesitei por um instante, sem saber ao certo como responder.
— Não é isso... — comecei, um pouco desconcertada. — Só algumas pessoas me chamam assim. Meu irmão e meu melhor amigo... então é...
Sua expressão suavizou, e sua voz se tornou mais suave, quase como uma forma de aliviar a tensão no ar.
— Não precisa explicar, eu entendo perfeitamente.
Eu fiquei em silêncio por um momento, observando como ele parecia ser tão direto e empático ao mesmo tempo. A leveza do seu tom dissipou qualquer desconforto que eu sentira, e uma sensação estranha de confiança começou a surgir dentro de mim.
Sem mais palavras, ele desceu do cavalo com agilidade, virando-se rapidamente para me ajudar a descer também. Com um gesto cuidadoso, ele estendeu a mão, e eu a aceitei, sentindo seu toque firme e seguro enquanto ele me ajudava a saltar para o chão.
Começamos a colher as flores, e a região estava repleta delas. A floresta parecia ter sido tocada pela magia da estação, com as Hamamelis florescendo em profusão. Eu sabia que teria o suficiente para fazer uma boa quantidade de poções, mas, à medida que colhia, comecei a sentir as pontas dos meus dedos geladas. O frio, tão intenso e cortante, me fez buscar um alívio simples: soprei nas mãos, tentando aquecer as extremidades. De fato, não estava acostumada com o clima gélido.
Foi quando me virei, ainda tentando esquentar os dedos, que notei Dante. Ele estava bem perto de mim, parado em silêncio. Seu olhar, sempre tão tranquilo, agora estava focado em mim com uma intensidade inesperada. Ele, então, tirou o cachecol que usava e, com um gesto suave, passou-o por cima da minha cabeça, cobrindo-me contra o frio.
Ele continuava segurando as duas pontas do cachecol com uma delicadeza incomum, e, enquanto fazia isso, nossos olhares se cruzaram. Por um momento, o mundo à nossa volta pareceu desaparecer. Seus olhos escuros estavam fixos nos meus, com uma intensidade difícil de ignorar. A sensação era como se eu estivesse sendo atraída por algo profundo, como se sua presença me envolvesse de uma maneira que eu não podia compreender completamente.
Senti meu coração acelerar e por um instante, me perdi na profundidade daqueles olhos. Era como se, dentro deles, houvesse um universo de mistérios, algo tão indefinido e complexo, mas ao mesmo tempo tão hipnotizante, que era como se mil estrelas brilhassem ali, refletindo algo que eu nunca tinha visto antes.
Então, com a suavidade de um suspiro, Dante disse, quase como se fosse uma confissão delicada:
— Céu!
Fiquei confusa e um pouco surpresa.
— O que? — Perguntei, minha voz saindo mais suave do que eu pretendia.
Ainda com aquele olhar fixo, e, com uma calma que contrastava com a agitação que eu sentia, disse:
— Posso te chamar de Céu?
A pergunta me pegou desprevenida, e uma onda de calor subiu pelas minhas bochechas. Meus pensamentos ficaram emaranhados, e eu senti o coração acelerar. Sem saber muito bem o que fazer com o turbilhão dentro de mim, apenas balancei a cabeça e disse, com uma voz um pouco mais baixa:
— Pode...
Ao ouvir minha resposta, ele sorriu. Foi um sorriso tão genuíno, tão espontâneo, que parecia iluminar ainda mais seus olhos escuros. A expressão dele, cheia de uma suavidade quase encantadora, fez com que eu me sentisse imersa em algo mais profundo, algo que eu não sabia se deveria entender ou apenas viver.
Mas, eu precisava me afastar, de alguma forma, enquanto eu ainda tinha algum controle da situação. Então, em um movimento rápido, dei um passo para trás, tentando recuperar um pouco da racionalidade. A minha voz, ao sair, soou mais firme do que eu me sentia.
— Acho que já pegamos o suficiente. Podemos voltar — disse, minha expressão tentando disfarçar o turbilhão de emoções que ainda se passava dentro de mim.
Dante permaneceu em silêncio, mas eu podia sentir que o ar ao nosso redor estava carregado de algo mais profundo, algo que eu não sabia nomear. O peso daquela quietude entre nós era quase palpável, como se as palavras tivessem se perdido no vento frio. Montamos em Maré novamente e seguimos viagem, a paisagem ao redor passando rapidamente enquanto o cavalo troteava de forma constante.
Foi então que, no meio da tranquilidade, ouvi um zumbido familiar. Um som que me era peculiar, e imediatamente reconheci. Olhei para o céu e, sem dúvida, eram Elunaris. Dante, percebendo minha agitação repentina, olhou para mim com um semblante curioso e perguntou:
— O que foi, Céu?
— São Elunaris! — Respondi, minha voz denunciando a apreensão que eu sentia.
— Seu irmão? — Ele perguntou, tentando entender a situação.
— Difícil dizer... — Respondi, com um nó na garganta.
Dante manteve o ritmo tranquilo dos trotes enquanto eu puxava o capuz do manto, tentando cobrir meus cabelos. Minha mente estava em alerta máximo. E antes que eu pudesse processar mais, alguém pousou repentinamente à nossa frente. A figura imponente parou ali e disse em tom firme:
— Alto, senhor, quero fazer algumas perguntas.
Meu coração pulou no peito ao reconhecer aquela voz, e, com cautela, olhei por cima do ombro de Dante. Quando avistei os cabelos azuis característicos, um sorriso involuntário se formou nos meus lábios.
— Rik!
Desci do cavalo rapidamente, quase sem pensar, e corri em direção ao meu irmão. Assim que nos encontramos, ele me abraçou com força, como se a saudade finalmente tivesse sido saciada.
— Minha irmã, que saudade de você! — Ele disse, a voz carregada de emoção.
Quando finalmente nos afastamos um pouco, uma sombra de preocupação passou sobre mim. Eu o olhei com intensidade, sentindo que algo estava errado.
— Deu certo, irmão, eu posso voltar pra casa? — Perguntei, já antecipando a resposta.
Malrik respirou fundo, e sua expressão se tornou séria, algo que imediatamente me deixou em alerta.
— Sinto muito, irmã... mas a situação em Aurelith piorou muito. — Ele disse, e as palavras soaram como um golpe.
— Como assim? — Perguntei, meu coração batendo mais forte.
— Nosso pai, Syl... ele ficou muito doente, e acabou não resistindo. Pode ter sido causado por Orinthar... ou por tristeza... — Sua voz vacilou, e eu senti um gelo tomar conta de mim.
— Não... não... não... — Eu murmurei, colocando a mão na boca em um gesto involuntário, tentando segurar o peso da notícia.
Malrik continuou, a expressão marcada pela seriedade.
— Orinthar só piora a cada dia. Mas você deve tomar cuidado, irmã. O último decreto do pai foi para caçar você, e os soldados não irão desistir. A única coisa que posso fazer é despistá-los por enquanto.
Uma sensação de desespero se instalou no fundo de minha garganta. Eu queria voltar, queria sentir o calor do lar, mas a realidade era cruel.
— Então terei que continuar fugindo? Eu quero voltar pra casa, Rik. — Eu disse, a voz baixa, quase quebrada.
Malrik suspirou, passando uma mão pelo rosto. Ele parecia exausto, mais velho do que quando o vi pela última vez.
— E um dia vai, minha irmã, mas por enquanto estou tentando argumentar com o conselho e com o povo que estão muito irritados e tristes. O clima está tenso, e a situação ficou fora de controle. Não posso prometer nada...
Eu fiquei em silêncio, absorvendo suas palavras. A verdade que ele me trouxe parecia esmagadora, e eu não sabia o que fazer com tudo isso. O caminho para a minha casa parecia mais distante do que nunca.
Dante se aproximou de mim, seus olhos fixos nos meus com uma expressão sincera. Ele colocou as mãos em meus ombros e, com um gesto firme, me fez olhar diretamente para ele.
— Não se preocupa, Céu — disse ele, a voz baixa e cheia de determinação. — Vou te ajudar com isso!
No mesmo instante Rik invocou sua cimitarra² e avançou em direção a Dante, os olhos brilhando com uma fúria controlada.
— O que pensa que está fazendo, humano! — Ele rosnou, a espada erguida, a ameaça clara em cada palavra.
Instintivamente, me coloquei na frente de Dante, esticando os braços para barrar o ataque iminente.
— Calma, Rik! Dante está me ajudando... — Eu disse, tentando manter a voz firme.
Rik me olhou com incredulidade, a expressão de desgosto tomando conta de seu rosto.
— Você está aceitando ajuda de um humano, Syl? — Sua voz estava carregada de desprezo.
Eu não hesitei, mantendo o olhar firme, ainda de pé entre eles.
— Sim — respondi, minha voz decidida. — Ele me salvou.
A expressão de Rik escureceu, e ele deu um passo atrás, claramente abalado pela minha resposta. Sua boca se torceu em um sorriso de desdém enquanto ele dizia:
— Só tome cuidado, irmã. Você sabe muito bem como os humanos são.
Antes que eu pudesse retrucar, Rik olhou para o céu, como se já estivesse pronto para partir. Ele falou, sua voz mais sombria agora:
— Eu tenho que ir... Nos vemos em breve... E se eu fosse você, Syl... eu matava logo ele!
Com um movimento brusco, ele alçou voo, suas asas batendo forte enquanto ele se distanciava rapidamente, desaparecendo no horizonte, tão rápido quanto apareceu.
Eu fiquei ali, estática, meu coração batendo descompassado. A respiração estava ofegante, e eu não conseguia entender completamente o que acabara de acontecer. A situação em Aurelith estava ainda mais distante de ser resolvida e de repente, toda a esperança que antes havia começado a brilhar dentro de mim parecia se apagar.
Senti um peso nos ombros, como se uma carga invisível tivesse se instalado em meu corpo. A perda de meu pai, o afastamento de Aurelith e o futuro incerto... Tudo isso se amontoava, e a tristeza se espalhou por mim, tornando cada movimento mais difícil.
Foi quando Dante se aproximou novamente. Sem pensar, como um impulso, eu o abracei com força, a sensação de seu abraço me envolvendo e trazendo algum tipo de conforto. Ele me segurou de volta, com uma suavidade que quase me fez sentir como se o peso do mundo fosse, por um momento, mais leve.
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¹ Hamamelis - Uma flor que cresce no auge do inverno nas terras de alhures. Ela tem variedades de cores, como amarelo, azul, vermelho e roxo, cada cor oferecendo uma propriedade de cura única. Ótima para fazer poções ou chás.
² Cimitarra : É uma espada de lâmina curva. Seu design favorece golpes de corte rápidos e eficazes, sendo uma arma ideal para combates montados e duelos ágeis.
Eu estava encolhida no sofá, abraçando minhas próprias pernas, o rosto enterrado entre os joelhos. O peso da incerteza se abatia sobre mim, tornando o ar ao meu redor denso, sufocante. Não sabia o que fazer. Minha única opção era permanecer ali, esperando—como se, por um milagre, tudo pudesse simplesmente se ajustar por conta própria.
— Aqui... tome isso, vai se sentir melhor.
A voz de Dante me tirou do torpor. Ergui os olhos lentamente e o vi ali, parado à minha frente, estendendo-me uma xícara de chá. O vapor subia em espirais preguiçosas, carregando um aroma adocicado que preencheu meus pulmões. Inspirei fundo, permitindo que aquele perfume suave trouxesse um mínimo de conforto à inquietação dentro de mim. Com cuidado, aceitei a xícara de suas mãos e a envolvi entre os dedos, sentindo o calor contra a pele fria.
Dante se sentou na poltrona à minha frente, os olhos fixos em mim, carregados de algo que não consegui decifrar de imediato.
— Sinto muito pelo seu pai... — disse ele, a voz carregada de sinceridade.
Apertei os lábios, uma dor surda pressionando meu peito.
— Não era para ser assim... Meu pai sempre foi tão forte... É estranho pensar que ele tenha adoecido desse jeito.
— Talvez tenha sido por causa de Orinthar... — Dante ponderou. — Ele pode ter tido contato com o veneno... De repente...
Meus dedos se contraíram ao redor da xícara.
— Eu deveria estar lá — sussurrei. — Presente na despedida do meu pai... e na coroação do meu irmão.
Dante apenas me observou, sua expressão tomada por uma preocupação silenciosa.
— Me preocupo com Malrik... — confessei após um momento. — Acho que ele é o rei mais jovem que Aurelith já teve. Sei que ele é capaz... mas também sei o quão cruéis os Elunaris podem ser quando se trata de certos assuntos.
Dante inclinou ligeiramente a cabeça.
— Então está preocupada com seu irmão? Achei que estivesse triste por não poder voltar para casa.
Baixei os olhos, mexendo o chá devagar.
— Também estou... Mas amo meu irmão. Amo meu povo. Quero que eles fiquem bem.
Dante se inclinou para a frente, estudando-me com atenção.
— Mesmo que isso custe sua felicidade?
Hesitei, sentindo meu coração apertar. Então, ergui o olhar e respondi, com firmeza:
— Sim.
Dante desviou os olhos. Sua expressão mudou, como se algo dentro dele tivesse desmoronado, mas ele permaneceu em silêncio. Apenas abaixou a cabeça, inquieto, como se quisesse dizer algo... e escolhesse não fazê-lo.
— O que foi? — perguntei, estreitando os olhos.
Ele abriu a boca para responder, mas hesitou. Seus olhos percorreram meu rosto como se buscassem algo que nem ele mesmo sabia definir. Por fim, soltou um suspiro, recostando-se na poltrona.
— Nada... Só acho injusto — murmurou.
— O quê?
— Que você tenha que carregar tanto peso sozinha.
Fiquei em silêncio, apertando a xícara entre os dedos. Não era a primeira vez que alguém dizia algo assim, mas, vindo de Dante, aquelas palavras carregavam um peso diferente. Algo dentro de mim se contraiu, uma sensação difícil de nomear.
— Eu sou a filha de um rei — disse, por fim, mantendo a voz controlada. — Sempre soube que meu dever viria antes dos meus desejos.
— Mas até quando? — Ele inclinou-se para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos. — Até quando você vai abrir mão de si mesma pelo bem dos outros?
Olhei para ele sem saber o que responder. Sempre vi a lealdade ao meu povo e à minha família como algo inquestionável. Mas agora, diante do olhar intenso de Dante, percebi que nunca havia realmente parado para pensar nisso.
O silêncio se prolongou entre nós, preenchido apenas pelo crepitar da lareira ao fundo. Então, Dante soltou um riso curto, sem humor.
— Você sempre foi forte... Mas até os fortes precisam de alguém para apoiá-los.
Ele se levantou, caminhando até a janela. A luz fraca da lua desenhava seu perfil, e havia algo melancólico em sua postura.
— Dante... — comecei, mas ele ergueu uma mão, interrompendo-me.
— Está tarde. Você deveria descansar.
Quis protestar, mas, no fundo, sabia que ele estava tentando encerrar aquela conversa antes que dissesse algo que não poderia retirar depois. Então, apenas assenti, pousando a xícara sobre a mesa ao lado do sofá. Dante permaneceu ali, de costas para mim, observando a noite lá fora. Havia tantas palavras não ditas entre nós que o silêncio parecia quase ensurdecedor.
— Boa noite, Dante.
Ele voltou o olhar para mim. Sua expressão parecia carregada de algo indefinível, um sentimento que ele não ousava expressar em palavras. Quando finalmente respondeu, sua voz soou tão baixa que quase se perdeu no silêncio da noite.
— Boa noite, Céu.
Havia uma doçura contida naquela despedida, mas também uma melancolia sutil, como se ele quisesse dizer mais, mas escolhesse se calar.
Desviei o olhar antes que aquele momento se tornasse ainda mais denso. Subi as escadas, sentindo o peso do dia sobre meus ombros. Assim que alcancei meu quarto, fechei a porta atrás de mim.
Desamarrei o corpete com calma. Em seguida, deslizei o vestido para baixo, deixando-o cair suavemente até que estivesse livre dele. Fiquei apenas com minha roupa de dormir—um vestido curto, de tecido leve e macio, com alças finas que repousavam delicadamente sobre meus ombros. O tecido era simples, um tanto translúcido sob a luz, mas confortável para dormir. Agora que tinha meu próprio quarto, não via problema algum em usá-lo.
Meus pés me guiaram automaticamente até a cama, e assim que meu corpo encontrou o colchão, me entreguei ao cansaço. Fiquei ali, deitada de costas, os olhos fixos no teto. A mente, no entanto, estava longe dali. Os eventos daquele dia se misturavam em minha cabeça como fragmentos desconexos — a dor pela perda de meu pai, a preocupação com Malrik, o peso da responsabilidade... e Dante.
Suspirei, sentindo o peso da exaustão tomar conta de mim. Amanhã, talvez, as coisas ficassem mais claras. Ou talvez, apenas mais complicadas.
• • •
Acordei com a luz do dia filtrando-se pelas frestas da cortina, banhando meu rosto com um brilho suave. Resmunguei baixinho e me virei para o outro lado, tentando ignorar a claridade e me perder no sono por mais alguns instantes. No entanto, meu corpo já não cedia ao cansaço; eu havia dormido mais do que o suficiente.
Alguns dias se passaram desde a última vez que falei com meu irmão. Apesar de a dor ainda pesar sobre mim, como uma sombra constante, eu me esforçava para seguir em frente. A tristeza não desaparecia, apenas se acomodava em algum canto do meu peito, silenciosa, mas sempre presente.
Com um suspiro resignado, me sentei na cama e me espreguicei, sentindo os músculos despertarem lentamente. O ar do quarto ainda estava frio, uma lembrança silenciosa do inverno rigoroso lá fora. Meus olhos vagaram até a janela, e ao afastar um pouco a cortina, deparei-me com o céu coberto por nuvens pesadas, tingidas de tons acinzentados. Durante a madrugada, havia nevado ainda mais—o quintal agora ostentava uma camada espessa e intocada de neve, como um manto branco e imaculado.
Notei o silêncio absoluto que pairava pela casa. O único som audível era o do vento frio lá fora, uivando suavemente contra as janelas. Dante provavelmente ainda estava dormindo.
Sai do quarto a passos lentos, ainda lutando contra o sono, os olhos pesados. O frio do piso de madeira fazia com que eu me arrepiava levemente enquanto passava os dedos pelos cabelos de forma preguiçosa, tentando organizar o caos de fios que caíam desordenadamente sobre minha testa. Eu estava tentando acordar de vez, então a ideia de lavar o rosto no banheiro parecia ser a única coisa razoável a fazer.
Quando cheguei à porta do banheiro, a empurrei com força, sem pensar muito no que estava fazendo, mas para minha surpresa, ela se abriu com facilidade. O impulso me fez perder o equilíbrio e antes que pudesse reagir, me vi caindo sobre Dante.
Ele estava ali, ainda visivelmente molhado. Claramente, acabara de sair do banho. Meu rosto ficou a centímetros do dele, e por um momento, o tempo pareceu congelar. Ele estava somente com uma toalha amarrada na cintura. Minhas mãos, de forma instintiva, foram parar sobre o seu peito nu, e o calor de seu corpo misturava-se com o meu embaraço crescente.
— Bom dia, Sylwen. — Ele disse com um sorriso de canto.
Desesperada, tentei me levantar, meus músculos tensos de vergonha, mas, ao tentar apoiar as mãos no chão, escorreguei novamente, caindo ainda mais sobre ele. Meus olhos se arregalaram, e um calor intenso subiu pela minha face. Eu estava tão embaraçada que não sabia onde colocar minhas mãos ou como me desvencilhar da situação. Eu queria desaparecer. O corpo dele estava mais perto do que qualquer outra coisa, e a sensação era desconfortavelmente... íntima.
— Desculpa! — falei rapidamente, me afastando, ainda sentada no chão.
Ele riu e passou a mão no rosto, como se tentasse esconder o constrangimento, mas não conseguiu segurar o sorriso. Ele se levantou com facilidade e estendeu a mão para me ajudar. Ainda sentindo meu rosto queimar de vergonha, aceitei seu gesto sem hesitar. Quando finalmente fiquei de pé, percebi que ele desviou o olhar rapidamente, levando uma das mãos ao rosto em um gesto quase instintivo. Com a outra, apontou sutilmente em minha direção, sem dizer nada.
Meu corpo enrijeceu no mesmo instante. Olhei para onde ele apontava então percebi o motivo de sua reação. A parte da frente da minha roupa estava completamente molhada, e o tecido fino, agora úmido, tornara-se praticamente transparente. Um arrepio subiu por minha espinha ao perceber minha imprudência. Num reflexo imediato, cruzei os braços sobre o peito, tentando cobrir o máximo possível.
O silêncio entre nós ficou insuportavelmente pesado. Meu coração batia forte, e eu sentia meu rosto arder ainda mais a cada segundo que passava. Dante, por sua vez, manteve o olhar desviado, passando a mão pela nuca, claramente tão desconfortável quanto eu.
— E-eu... acho melhor eu... — Minha voz falhou, então, me virei e praticamente corri de volta para o meu quarto, fechando a porta atrás de mim com um estrondo.
Encostei-me contra a madeira, respirando fundo, tentando acalmar a avalanche de vergonha que tomava conta de mim. Meus Deuses, que situação! Como pude ser tão descuidada? Pressionei as mãos contra o rosto, sentindo-me completamente idiota. Dante com certeza tinha visto.
Fechei os olhos e respirei fundo antes de ir até o guarda-roupa, pegando a primeira roupa que encontrei. Troquei-me às pressas, ainda sentindo a vergonha corroer cada fibra do meu ser. Depois de alguns minutos, já mais vestida e um pouco menos em pânico, a realidade bateu: mais cedo ou mais tarde, eu teria que sair do quarto e encarar Dante novamente.
Depois de um tempo indefinido — talvez minutos, talvez uma eternidade —, criei coragem e abri a porta do quarto com cautela, espiando o corredor para ter certeza de que o caminho estava livre. O aroma acolhedor de ovos mexidos e chá quente preencheu o ar, guiando meus sentidos até a cozinha.
Desci as escadas devagar, passando a mão pelos cabelos em um gesto nervoso, tentando me recompor. Dante estava lá, ocupado com alguma coisa no fogão, seu semblante tranquilo, como se nada tivesse acontecido. Assim que alcancei a sala, me afundei no sofá, mantendo o olhar firmemente desviado dele. Meu coração ainda dava pequenas marteladas no peito, resquícios do embaraço daquela manhã.
Pouco depois, Dante se aproximou, trazendo uma bandeja cuidadosamente montada com ovos mexidos, torradas com geleia e uma xícara de chá fumegante. Ele a colocou à minha frente com um gesto casual.
— Obrigada. — Murmurei, tentando soar natural, mas sentindo o nervosismo transparecer na minha voz.
Ele não respondeu de imediato, apenas se sentou em sua poltrona habitual, observando-me com aquele olhar atento e indecifrável. Fingi estar completamente focada no prato à minha frente, como se minha vida dependesse daquelas torradas. O silêncio se arrastou por alguns instantes, até que Dante quebrou a barreira invisível entre nós.
— Tudo bem com você, Céu? — Sua voz era tranquila.
Minhas mãos se apertaram ao redor da xícara de chá, e olhei para ele rapidamente antes de desviar o olhar de novo.
— Estou... Por que não estaria? — Minha resposta saiu mais alta e ríspida do que eu pretendia, denunciando meu estado de espírito.
Dante manteve o olhar fixo em mim por alguns segundos, claramente contendo a vontade de rir da minha reação exagerada.
— Certo... — Ele disse, arrastando a palavra, como se não acreditasse nem um pouco na minha resposta, mas decidisse não insistir.
Peguei a xícara e bebi um gole do chá quente, tentando fingir que minha explosão repentina não tinha acontecido.
— Pelo menos não se machucou quando caiu hoje de manhã, né? — Dante comentou com um tom casual, mas havia uma evidente pitada de diversão em sua voz.
No exato momento em que ele falou, eu estava tomando um gole do chá, e a surpresa me fez engasgar. O líquido quente desceu errado pela minha garganta, me fazendo tossir violentamente. Coloquei a xícara de volta na bandeja com um movimento apressado, tentando me recompor enquanto arfava em busca de ar.
Dante arqueou uma sobrancelha, segurando um sorriso, claramente se contendo para não rir abertamente da minha desgraça. Quando finalmente recuperei o fôlego. Lancei-lhe um olhar fulminante, minha testa franzida em pura indignação.
— Você, por favor, pode esquecer isso? — Minha voz saiu um pouco rouca pelo engasgo, mas carregava toda a exasperação que eu sentia.
Ele deu um sorriso malicioso e levantou uma sobrancelha, como se estivesse se divertindo com a minha agitação.
— Acho bem difícil. — A resposta saiu descontraída, com aquele tom que ele sempre usava quando queria provocar.
— DANTE! — A raiva se acumulava em mim, e a palavra saiu mais alta do que eu pretendia. Eu queria sumir de vergonha.
Ele não conseguiu segurar o riso, que explodiu em uma gargalhada baixa e divertida. A forma como ele parecia se divertir com a minha reação só fazia a situação mais embaraçosa. Ele levantou as mãos em um gesto de rendição, mas o sorriso não abandonou seus lábios.
— Ok, ok... vou tentar, mas não prometo nada. — Ele disse, ainda rindo, claramente sem arrependimentos.
Dante ficou em silêncio por alguns segundos. Seu olhar, antes distraído, agora se fixava em mim com uma expressão curiosa e ligeiramente confusa.
— Tem quatro — disse ele, franzindo o cenho.
— Quatro o quê? — perguntei, sem entender.
— Tranças. Alguns dias atrás eram só três. — Respondeu, apontando discretamente para a minha cabeça.
— Ah… isso… — soltei um suspiro breve, quase imperceptível. — É um costume do meu povo. Quando perdemos alguém importante, trançamos uma mecha do cabelo. E ela permanece ali… para sempre. A quarta mecha… é pelo meu pai.
Dante assentiu devagar, como se estivesse absorvendo o peso das minhas palavras.
— Entendi… então perdeu quatro pessoas.
— Sim. Cada trança representa um laço. Um vínculo profundo com alguém que marcou minha vida…
Vi em seus olhos que ele queria perguntar mais, talvez saber quem eram essas pessoas, que histórias guardavam minhas tranças. Mas ele se conteve. Apenas abaixou o olhar por um instante, respeitosamente, como se temesse tocar em feridas ainda abertas.
O silêncio se estendeu entre nós enquanto o café terminava. Logo depois recolhi os pratos com um suspiro, tentando manter a compostura. Enquanto começava a lavá-los, Dante se apoiou na bancada e disse:
— Sabe, Céu, eu estava pensando...
Sem olhar para ele, me limitei a responder, mantendo as mãos ocupadas com a água e os pratos.
— No quê?
Dante parecia hesitar um pouco antes de falar.
— Na sua situação...
Suspirei, sequei as mãos no pano de prato e me virei para ele, encarando-o com um olhar curioso, esperando que ele continuasse.
— Acho que sei um jeito de você poder voltar para casa!
Meu coração deu um salto, e sem pensar, eu me adiantei.
— É mesmo? E como? — Perguntei, um pouco cética, sem saber o que esperar.
Dante deu um sorriso leve e, com um tom mais sério, falou.
— Você encontrar a cura para Orinthar!
Franzi a testa, não acreditando no que ele acabara de sugerir.
— Eu? Ir atrás da cura? — Disse, incrédula.
— Sim, pensa comigo. Se você achar uma cura e levar para Aurelith, os Elunaris não terão outra opção a não ser escutá-la.
Minha mente começou a processar a ideia enquanto ele falava, e por um breve momento, a esperança começou a se infiltrar em meus pensamentos. Seria como dar um golpe duplo — ajudar Orinthar e, ao mesmo tempo, provar minha inocência. Mas logo a dúvida tomou o lugar da esperança.
— Parece uma boa ideia, Dante, mas eu nem sei por onde começar. Quando fui atacada pela horda de Goblins, acabei perdendo a amostra da seiva vermelha, então não tem como eu buscar a cura.
Dante deu um sorriso confiante e deu um leve movimento de ombros.
— Na verdade, tem sim um jeito. — Ele disse, os olhos brilhando com a lembrança. — Meu pai era médico, e dos bons. Aprendi muita coisa com ele... sei que as árvores são diferentes, mas uma coisa eu sei: existem vários jeitos de descobrir a origem de uma doença.
Eu o olhei, ainda um pouco insegura.
— Acha mesmo que pode dar certo?
Ele sorriu, um sorriso confiante, mas não arrogante.
— Não tem por que não tentarmos. Aliás, isso vai ajudar seu irmão também!
Pensei por um momento, e a dúvida foi lentamente substituída por uma leve animação. Uma pequena chama de esperança que eu pensava ter perdido acendeu de novo. Eu sorri, sentindo algo dentro de mim se aliviar.
— Isso... pode dar certo!
A agora eu tinha algo concreto para fazer. Algo além de apenas esperar passivamente. A possibilidade de agir me fez sentir mais forte, como se eu tivesse recobrado um pouco do controle da minha vida.
Há 80 anos...
— Bem-vindos todos à final da Centésima Olimpíada de Aurelith! — A voz de Aldarion ecoou pelo imenso Anfiteatro, reverberando nas paredes de pedra, preenchendo cada canto do espaço com uma energia vibrante.
Eu me encontrava logo abaixo da arena, esperando a minha vez de entrar. A cada palavra que meu pai proferia no alto, sentia o eco de sua voz reverberando no ar, enquanto eu ajustava cuidadosamente minhas botas de couro, apertando-as até que ficassem bem presas. Usava uma calça de couro marrom que se ajustava ao corpo, uma camiseta branca de manga curta e por cima, um corpete de couro escuro que moldava minha silhueta. Meu cabelo estava preso em um alto rabo de cavalo. Também usava a pulseira de ametista que foi um presente de Drakion, ela tinha se tornado meu amuleto da sorte.
— Está pronta para mais uma vitória? — A voz de Nyxa soou logo à minha frente, arrancando-me de meus pensamentos.
— Bem, vou tentar. — Respondi com um sorriso, tentando esconder a pressão que começava a crescer no peito.
— Sempre tão modesta. — Drakion apareceu então, seu sorriso malicioso típico estampado no rosto. — Só estamos na final por causa de você, Sylwen.
— Não digam isso. — Retruquei, balançando a cabeça com firmeza. — Somos um time. Se chegamos à final, foi pelo esforço de todos nós. — Minha voz estava séria.
— Mas todos sabem que você é a Elunari mais habilidosa de Aurelith. — A voz suave de Aryn surgiu por trás de mim.
— Ah, gente, já disse! Tudo faz parte do trabalho em grupo. — Sorri, tentando suavizar o momento.
As Olimpíadas de Aurelith eram um dos eventos mais prestigiados e aguardados do reino, uma tradição que se perpetuava por gerações. Somente jovens Elunaris que já haviam se formado podiam se inscrever. O evento ocorria uma vez a cada cem anos, o que lhe conferia ainda mais prestígio. Era uma oportunidade única de provar a força, habilidade e destreza dos participantes, e os vencedores conquistavam um lugar na história de Aurelith.
Se alguém se inscrevesse uma vez, ficaria automaticamente impedido de participar novamente, independentemente do resultado. Isso tornava as Olimpíadas ainda mais acirradas, elevando o nível da competição e tornando a vitória um feito ainda mais grandioso e cobiçado.
No total, havia dez times, cada um formado por quatro integrantes. As provas eram realizadas uma vez por mês, variando em seu formato: desafios de resistência, combates com espadas com regras simples, voos, corridas e até provas de natação. Muitas levando dias ou até semanas para serem concluídas. A exigência física e mental das tarefas era grande, e a paciência de todos era testada ao longo do tempo. Era um ano inteiro de dedicação intensa, onde o esforço e o trabalho em equipe eram essenciais para alcançar a tão sonhada final.
Chegar à final das Olimpíadas era uma honra imensa, um reconhecimento da habilidade, do sacrifício e da união do time. E agora, ali, com meus amigos, eu estava prestes a viver esse momento. Um ano atrás, quando decidimos nos inscrever, eu pensava que fosse loucura. Como um time tão inexperiente poderia competir contra os melhores de Aurelith? Mas agora, diante da grandiosidade do evento, sentia-me de certa forma especial, como se aquele fosse o meu destino, o culminar de um esforço coletivo e pessoal que estava prestes a se concretizar.
— Muito bem! — Disse Nyxa, sua voz vibrante de entusiasmo. — Está na hora!
Ela estendeu a mão à frente, o olhar firme e determinado, como se quisesse transmitir toda a confiança que sentia. Então, com um sorriso confiável, ela perguntou:
— Estão prontos para vencer?
Nos olhamos rapidamente, cada um absorvendo a energia que ela emanava. A presença de Nyxa sempre tinha o poder de nos motivar. Drakion foi o primeiro a reagir. Ele colocou a mão em cima da dela, os olhos brilhando com a certeza da vitória.
— Eu estou! — Disse ele, com uma confiança inabalável.
Aryn, sempre sereno, seguiu o gesto, colocando sua mão sobre as de Nyxa e Drakion, seus olhos cintilando com a mesma determinação.
— Vamos arrasar! — Exclamou, seu sorriso doce e otimista contagiando a todos.
Eu observei meus amigos com um sentimento de orgulho profundo. Sentia que, juntos, éramos imparáveis. Então, coloquei minha mão sobre a deles, unindo-nos em um só movimento.
— Vamos dar o nosso melhor! — Falei, com a voz firme, mas cheia de emoção.
Todos sorriram, o espírito de equipe mais forte do que nunca, e Nyxa, com um brilho nos olhos, nos conduziu ao momento final.
— No três — disse ela, sua voz agora mais grave, como um comando.
Juntos, com um único coração e uma só alma, todos respondemos em uníssono:
— Um... dois... três... Rumo a vitória, Guardiões Celestiais! — Exclamamos, erguendo as mãos para o alto em um gesto de união e força.
O nervosismo misturado com a excitação era palpável, enquanto esperava o anuncio para entrar no anfiteatro, mas eu tentava manter a compostura, focando no momento que estava prestes a acontecer. Não demorou muito, até que a voz do meu pai ressoasse em alto e claro, preenchendo o local:
— É com orgulho que apresento os finalistas dos Jogos deste ano! O time Guardiões Celestiais e time Fúria dos Céus!
A plateia explodiu em comemorações, os gritos e assobios misturados com o som de aplausos fervorosos. As pessoas estavam em êxtase, a tensão antes da competição agora transformada em uma onda de entusiasmo. Enquanto avançávamos, não pude deixar de acenar para o povo que olhava para mim com admiração e orgulho. Cada rosto, cada sorriso, alimentava ainda mais a minha determinação.
Paramos em frente ao palco, nossos olhares se voltando para o alto, onde meu pai estava, a figura imponente que sempre representou autoridade e sabedoria. Ele era um Elunari de seiscentos anos, mas o tempo parecia ter pouco efeito sobre ele. Seus cabelos ciano mantinham um brilho sutil, e seus olhos de um azul escuro profundo carregavam a quietude de alguém que já vira muito. Apesar da idade, seu corpo permanecia forte e ágil, com um porte atlético resultado de anos de disciplina.
Procurei, por um momento, tentar controlar as emoções, quando meu olhar se desviou e se encontrou com o de Malrik, que estava do outro lado, no time adversário. Eu acenei pra ele, mas ele desviou o olhar rapidamente. O time dele, composto por Garruk, Lorcan e Violet, estavam igualmente focados. Foi então que percebi algo estranho: todos no time adversário evitavam qualquer troca de olhares com o nosso. Antes que pudesse pensar mais sobre meu pai, tomou a palavra novamente, sua voz grave e cheia de orgulho, mas com um toque de emoção sincera.
— Eu não poderia estar mais orgulhoso de vocês. E não digo isso apenas como rei, mas também como pai. Quero que saibam que foi o trabalho em equipe que os trouxe até aqui. E independentemente de quem vencer hoje, ambos os times são campeões, só por terem chegado até aqui!
As palavras dele ecoaram pelo anfiteatro, e o peso da honra que estava sendo depositada sobre nós se fez sentir em cada um de nós. Era mais do que uma competição. Era a validação de todo o esforço, todo o sacrifício, tudo o que havíamos feito para chegar até aquele momento.
— A prova de hoje é O fogo da Vitoria!
Um pedestal de mármore branco se ergueu imponente no centro do Anfiteatro, e no topo, onde normalmente o fogo dourado da Pira Olímpica deveria estar, havia apenas um vazio, uma ausência inquietante. A Pira Olímpica, que sempre mantinha seu fogo crepitando, agora estava apagada!
Minha primeira reação foi de surpresa, o que logo se transformou em uma sensação de perplexidade. Mas antes que questionamentos surgissem, meu pai ergueu a mão em um gesto calmo, pedindo que a plateia se aquietasse. Em seguida, com uma voz firme e autoritária, ele falou:
— O fogo foi transformado em runas, oito runas, para ser mais exato.
O Anfiteatro inteiro ficou em absoluto silêncio, enquanto as palavras de meu pai pairavam no ar, carregadas de tensão.
— A prova será a seguinte. — ele continuou, sua voz agora ressoando por todo o espaço. — Essas runas foram escondidas por toda Aurelith. O objetivo é desvendar os enigmas, encontrar as runas e jogá-las na Pira Olímpica para acender o fogo. Lembrando que cada integrante só pode carregar uma runa mágica. O time que chegar aqui primeiro e acender o fogo utilizando as quatro runas, vencerá a prova!
O murmúrio de inquietação se espalhou pela plateia, e uma onda de excitação percorreu o Anfiteatro. Então, um pergaminho surgiu diante de mim, enrolado e amarrado com uma fita cintilante azul. Peguei o pergaminho e, ao olhar para o lado, vi meu irmão pegando o pergaminho do time deles.
— Este pergaminho contém o primeiro enigma. Cada runa que encontrarem revelará um novo enigma, até que completem o quarto. Desejo a vocês boa sorte, e que o último jogo comece.
A plateia se agitou em animação, e então vi o time oposto começar a abrir o pergaminho. Fiz o mesmo, desenrolando o papel com cuidado. Todos do meu time ficaram ao meu redor, tentando ler o enigma junto comigo.
Aquilo era uma verdadeira prova de habilidade e resistência mental. Mas, assim como eu, meu time estava imensamente determinado, e isso me dava forças para dar o meu melhor.
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