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Sylwen

Capítulo 1 - Decadência

O líquido rubro e viscoso escorria lentamente para fora da ferida aberta, desenhando trilhas irregulares, antes de gotejar pesadamente no chão.

    Deslizei os dedos cautelosamente pelo líquido espesso e desconhecido, sentindo sua textura viscosa grudar levemente na pele. Levei-os ao nariz, e o cheiro ferroso invadiu minhas narinas de imediato, fazendo-me recuar instintivamente com uma leve contração do rosto. Nunca, em toda a minha vida, tinha visto algo assim em Orinthar. Um calafrio percorreu minha espinha enquanto meus olhos analisavam a substância com crescente inquietação. Sem hesitar, abri o bornal e agarrei um frasco pequeno, que sempre carregava comigo. Precisava coletar uma amostra — examinar o que era aquele líquido estranho.

    Quando o frasco ficou cheio, segurei-o firmemente e encarei o líquido com uma expressão confusa. Algo estava errado, muito errado. Respirei fundo, apoiando a mão no tronco ferido, e murmurei em um tom reconfortante:

    — Não se preocupe, Orinthar. Eu vou descobrir o que é isso.

    Mas antes que pudesse esboçar qualquer outra reação, vozes ásperas cortaram o silêncio atrás de mim.

    — ALTO!

    Virei-me num sobressalto. Dois soldados se aproximavam com expressões furiosas. Seus olhares alternavam entre a ferida aberta no tronco e o frasco em minha mão.

    — O que pensa que está fazendo com Orinthar? — Um deles esbravejou, cerrando os punhos.

    — O quê? Eu... eu não fiz nada! — Protestei, sentindo o pânico subir à minha garganta.

    — Não adianta mentir... Pegamos você no flagrante envenenando Orinthar!

    — Espera...Garruk...Lorcan... voces não acham que logo eu...!

    Antes que eu pudesse reagir, Lorcan avançou com rapidez. Um golpe certeiro no meu estômago me fez dobrar o corpo e cair pesadamente no chão. A dor explodiu em minha barriga, e eu soltei um gemido ofegante, tentando recuperar o fôlego enquanto a visão se turvava. Quando finalmente olhei para cima, ainda tonta, Garruk e Lorcan estavam à minha frente. A respiração estava acelerada, o coração batendo descompassado, mas o que mais me atingiu foi a confusão. Eles me conheciam desde criança, pessoas em quem eu confiava. Como podiam estar agindo assim? Eles eram os soldados mais respeitados de Aurelith, conhecidos pela honra e pela lealdade. O que tinha acontecido para que me tratassem dessa forma?

    Garruk, com um olhar impiedoso, agarrou a lança e avançou em minha direção com uma ferocidade surpreendente. No último segundo, consegui desviar, o vento cortando meu rosto enquanto a lança cravava com um estrondo no chão, espalhando terra e pedaços de pedras ao redor. Meus olhos estavam arregalados, o coração batendo descontrolado,  minha respiração estava pesada e errática. O choque da situação quase me paralisou, mas a adrenalina me empurrou para cima. Com um esforço desesperado, levantei voo, as asas batendo com força para me afastar rapidamente.

    Aquilo era impossível... Ele tinha tentado me matar? A dor e a incredulidade queimavam em minha mente enquanto eu voava em direção ao palácio. Precisava chegar até meu pai, imediatamente. Ele saberia o que fazer.  Quando finalmente me aproximei da entrada um grito furioso cortou o ar.

    — Segurem ela! — A voz grave de Garruk ecoou.

    Ao seu lado, Lorcan apontava diretamente para mim, sua expressão tomada pela fúria.

    — Ela envenenou Orinthar!

    Os soldados hesitaram por um breve instante, trocando olhares incertos entre si.

    — O que estão esperando? Vão logo! — Bradou Lorcan, impaciente.

    Dessa vez, não houve mais dúvidas. Em um único movimento sincronizado, as asas dos guardas se abriram e, num turbilhão de vento e aço, eles alçaram voo, vindo em minha direção. Meu coração disparou.

        Sem alternativas, parei abruptamente no ar, fingindo uma manobra de rendição, apenas para mudar de curso no último instante. Virei no ar e disparei para longe do palácio, sentindo o vento chicotear meu rosto. Sobrevoei Aurelith com velocidade, mas os soldados não desistiam. A cada esquina, mais deles se juntavam à perseguição, formando um enxame implacável atrás de mim.

    O conflito dentro de mim era aterrador. Se eu parasse agora, se tentasse me explicar, saberia que seria morta antes mesmo de conseguir emitir uma palavra. Mas, se eu continuasse a fugir, as suspeitas sobre mim só cresceriam.

    Eu precisava de tempo. Tempo para que tudo se acalmasse, para que as evidências fossem analisadas, para que a verdade emergisse. Não podia continuar assim, sendo caçada. Precisava encontrar um lugar para me esconder, e esperar a poeira baixar.  A partir dali, poderia buscar uma forma de falar com meu pai ou meu irmão. Eles não deixariam essa acusação absurda recair sobre mim—disso, eu tinha certeza.

    E eu sabia exatamente para onde ir!

    Depois de alguns minutos, finalmente avistei meu esconderijo. Antes apenas um cenário para brincadeiras inocentes, agora se tornava meu único refúgio, ainda que temporário, me daria o tempo necessário para recuperar o fôlego e planejar o próximo passo.

    O esconderijo ficava dentro de uma grande árvore, seu tronco oco formando uma câmara oculta da vista de qualquer um. A única passagem era uma abertura estreita, mas o suficiente grande para que eu me esgueirasse para dentro. Assim que entrei, conjurei uma bola de luz, que flutuou ao meu lado, lançando sombras suaves nas paredes rugosas de madeira.

    Talvez fosse mais seguro esperar ali até o amanhecer. O lugar estava em completo abandono há anos. Poeira e teias de aranha cobriam cada canto. Depois de horas em silêncio absoluto, a dor da pancada que havia recebido começava a latejar intensamente. A cada respiração, sentia um puxão doloroso no estômago, e várias vezes a dor me fazia perder o ar, deixando-me tonta e fraca. Foi então que um som distante cortou o silêncio, um leve estalo que veio de algum lugar fora do refúgio.

    Com o coração disparado, me levantei cuidadosamente, tentando ignorar a dor que ainda me atormentava. Invoquei a minha Nodachi¹, que surgiu em minha mão rapidamente. Ajoelhei-me perto de uma fresta na casca da árvore e espreitei cautelosamente pela abertura. Mas, por mais que meus olhos tentassem ajustar-se à escuridão, não conseguia distinguir nada.

    — Syl! — A voz masculina quebrou o silêncio.

    Meu corpo enrijeceu no mesmo instante, o susto acelerando ainda mais meu coração. Mas, ao me virar e reconhecer quem era, um alívio morno se espalhou pelo meu peito. Fiz minha espada sumir tão rápido quanto apareceu.

    — Malrik! — Exclamei, indo ao encontro dele. — O que está acontecendo?  — Perguntei angustiada.

    Ele balançou a cabeça, a expressão carregada de incerteza.

    — Eu não sei ao certo... Mas todos os guardas estão atrás de você.

    Um frio percorreu minha espinha.

    — Mas eu não fiz nada! Você acredita em mim, não é, Rik?

    — Claro, minha irmã. — Malrik segurou minhas mãos trêmulas, apertando-as com firmeza. — Sei que jamais seria capaz disso.

    Soltei um suspiro trêmulo. Pelo menos alguém estava ao meu lado.

    — E o pai? O que ele disse?

    O silêncio de Malrik me deixou inquieta.

    — Fale logo, irmão! Nosso pai... o que ele disse?

    Ele abaixou levemente a cabeça antes de responder, a voz grave carregada de pesar.

    — Bem... ele pediu sua prisão... agora todos os soldados estão atrás de você.

    Coloquei as duas mãos sobre a boca, tentando desesperadamente conter as lágrimas que ameaçavam cair, queimando meus olhos.

    — Escute, Syl... — disse Malrik com a voz tensa, mas firme. — Você precisa fugir, ir para longe. Eu vou encontrar uma forma de provar sua inocência.

    — Mas... — minha voz falhou, perdida entre o medo e a incredulidade.

    — É o único jeito. Se te pegarem, provavelmente será morta! — A urgência em suas palavras fez meu peito apertar.

    Eu não queria fugir, não queria abandonar o único lugar que conhecia como lar, o único lugar que ainda me dava alguma sensação de segurança. Mas a realidade se impôs, e eu sabia que ele estava certo. Não havia como provar minha inocência naquele momento. Era a única escolha.

    — Eu trouxe isso para você. — Malrik disse, estendendo-me um embornal cheio de suprimentos.

    Olhei o embornal com um cuidado visível, como se cada item ali fosse uma mensagem de carinho. Ele havia preparado tudo com tanta atenção, como sempre fazia. Malrik era meu irmão gêmeo, mas também o mais velho, e desde sempre foi o meu protetor. Ele sempre cuidou de mim, com uma dedicação silenciosa, que raramente demonstrava de outras formas. Era o único além de mim que conhecia o esconderijo, e isso sempre me dava uma sensação de segurança, sabendo que ele estaria ali, em qualquer situação.

    Embora fôssemos fisicamente muito semelhantes — cabelos azuis e olhos da mesma cor — nossas personalidades eram bem diferentes. Enquanto eu tendia a agir impulsivamente, Malrik era mais calmo, sempre refletindo antes de tomar qualquer decisão, ponderando as consequências de cada ação. Ele era a mente sensata, o equilíbrio que eu muitas vezes não tinha.

    Ele me puxou para um abraço apertado, e suas palavras foram suaves, mas cheias de preocupação:

    — Tome cuidado, minha irmã, e não se esqueça, estou fazendo o possível aqui. — Ele se afastou um pouco, suas mãos ainda em meus ombros, e me olhou nos olhos com a intensidade de quem estava fazendo uma promessa. — Assim que eu provar sua inocência, eu mesmo vou te trazer de volta!

    — Obrigada, Rik! — Respondi com a voz embargada, sentindo uma mistura de gratidão e medo.

    De repente, o som de vozes distantes me chamou a atenção. Rapidamente me aproximei da fresta entre os troncos das árvores, espiando cautelosamente. Lá fora, soldados Elunaris pousaram por perto. Bem armados e organizados, vasculhavam a área, seus olhos atentos a cada movimento.

    — Encontrem ela! — Um dos soldados disse, sua voz carregada de impaciência.

    Malrik me olhou rapidamente e sussurrou:

    — Eu vou atraí-los para longe. Aproveite a chance para fugir.

    Eu sabia que não havia escolha. Olhei para ele uma última vez, sentindo uma dor silenciosa no peito, e então assenti. Malrik saiu do esconderijo com uma atitude decisiva e, com uma voz firme, chamou a atenção dos soldados:

    — Ei, vocês! Acho que vi ela indo por ali. — Ele apontou para o lado oposto, desviando a atenção dos perseguidores.

    Num movimento ágil, ele levantou voo, e os soldados imediatamente o seguiram, confiantes de que ele estava no controle. Ainda ofegante, saí do esconderijo com cautela, cada passo cuidadoso para não fazer barulho. Quando me senti segura o suficiente, levantei voo, afastando-me de Aurelith.

    Antes de realmente me afastar, pausei. Olhei para trás, para o lugar que sempre considerei meu lar, o único que conheci e onde tantos momentos haviam sido vividos. Um aperto no peito me invadiu, e os olhos se encheram de lágrimas. Era como se estivesse me despedindo de tudo o que fui, de tudo o que talvez nunca mais pudesse ter.

    Com um último suspiro e os olhos cheio de lagrimas, virei as costas para aquele lugar. Então voei sem rumo, em direção ao Mar de Cristal. Onde eu não sabia o que me aguardava, mas sabia que a partir daquele momento, nada mais seria como antes.

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¹ Nodachi - É uma espada japonesa de lâmina longa, semelhante a uma katana, mas maior e mais pesada. Geralmente se empunha com as duas mãos.

Capítulo 2 - Azul, a Cor da Confusão

Sinceramente, eu não sabia por que ainda insistia em voltar ao Reino de Hortência. Sempre era a mesma coisa. Minhas poções nunca vendiam bem — eram comuns demais, e a concorrência era grande. Em um mercado saturado, onde todos ofereciam as mesmas misturas, eu me via sempre no mesmo dilema: tentando encontrar um lugar para mim em meio à repetição.

    Se ao menos algum aventureiro aparecesse com metais rúnicos, eu poderia ganhar o suficiente para viver por anos sem precisar me preocupar com trabalho. O valor de uma única arma rúnica era altíssimo, mas esses materiais raramente chegavam até mim. Suspirei, frustrado, sentindo o peso da realidade sobre meus ombros. Sem alternativa, voltei a me concentrar em organizar minhas mercadorias, tentando ignorar a sensação de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros.

    Saí de casa e inspirei profundamente o ar frio que anunciava o início do inverno, deixando-o preencher meus pulmões. A mochila pesava em meu ombro enquanto eu caminhava até o celeiro, onde, algumas horas antes, havia preparado Maré, minha fiel Freezean¹. Ao me aproximar, passei a mão suavemente por seu focinho gelado, sentindo o calor de sua respiração contra minha pele. Ela relinchou baixinho em resposta, como se reconhecesse minha presença. Sem pressa, subi em sua sela, ajustando-me com cuidado antes de guiá-la para a jornada que me aguardava.

    Durante o trajeto, meus olhos percorriam a paisagem ao redor. As árvores, já sem folhagem, erguiam seus galhos retorcidos contra o céu pálido, enquanto o chão seco e sem gramado tornava o cenário ainda mais desolador. O inverno se aproximava implacável, e a preocupação pesava sobre mim. Se eu não conseguisse vender minhas mercadorias, os próximos meses seriam difíceis, mesmo com o estoque de comida que havia reunido. A incerteza pairava no ar tão fria quanto o vento cortante que soprava pela estrada.

    Ao me aproximar dos imponentes portões do Reino de Hortência, puxei as rédeas. Logo fui distraído por um dos soldados de guarda, que me reconheceu de imediato e abriu um sorriso amistoso.

    — Aqui outra vez, meu caro amigo? — Disse ele, cruzando os braços enquanto me observava.

    — Tenho que tentar vender minhas mercadorias antes que o inverno chegue. — Respondi com um suspiro, dando um tapinha no alforje cheio.

    — Boa sorte então. — Ele assentiu, afastando-se para abrir caminho.

    Com um aceno de cabeça em agradecimento, segurei as rédeas de Maré e segui caminho, esperando que dessa vez a sorte estivesse ao meu lado.

    Ao adentrar os portões, percebi que a cidade permanecia como sempre: organizada e vibrante. As casas bem cuidadas, algumas imponentes com dois andares, exibiam elegantes sacadas adornadas com floreiras. As ruas, pavimentadas com tijolos alaranjados, refletiam uma atmosfera acolhedora e convidativa. Ao longo do caminho, postes sustentavam bandeiras que tremulavam com orgulho, estampadas com o brasão do reino — uma flor branca em contraste com o fundo verde-escuro. O símbolo parecia dançar ao vento, reforçando a identidade e o prestígio de Hortência.

    A movimentação era constante. Pessoas iam e vinham, imersas em suas rotinas, algumas apressadas, carregando sacolas e pacotes, enquanto outras caminhavam tranquilamente, apreciando o dia e trocando conversas despreocupadas. O burburinho misturava-se ao som das rodas das carroças e ao leve tilintar das ferraduras nos paralelepípedos, criando uma melodia urbana familiar e reconfortante.

    Passei boa parte da manhã indo de barraca em barraca, oferecendo minhas mercadorias, apenas para receber as mesmas respostas desanimadoras: já tinham estoque suficiente. Mesmo reduzindo os preços a valores bem abaixo do mercado, ninguém parecia interessado. O peso da frustração começou a se acumular em meus ombros. Com um suspiro cansado, encontrei um caixote abandonado em um canto e me sentei, esfregando o rosto com as mãos. Já tive dias melhores... e, pelo jeito, aquele não seria um deles.

    O som de uma briga chamou minha atenção. Me levantei, olhando na direção de onde viera o barulho, indeciso sobre o que fazer. Antes que pudesse tomar uma decisão, um grito abafado rompeu o silêncio, acelerando meu coração. Movido pelo instinto, avancei rapidamente, adentrando um beco estreito e sombrio. Movi-me com cautela, os sentidos alertas, até que a cena finalmente se revelou diante de mim.

    — JÁ DISSE PARA FICAREM LONGE! — Bradou uma garota, segurando uma adaga com firmeza. Seus olhos faiscavam determinação, mas seu corpo tenso denunciava o medo.

    Ela estava encurralada contra a parede por dois homens de aparência rude, provavelmente saqueadores à procura de presas fáceis.

    — Vamos lá, passe tudo que você tem — disse um deles, com um tom arrastado e ameaçador.

    Não se envolva... não se envolva...

    Repetia para mim mesmo, tentando ignorar o incômodo crescente em meu peito. Mas algo me dizia que simplesmente virar as costas não seria tão fácil.

    Com uma agilidade surpreendente, ela avançou contra um dos homens e desferiu um chute certeiro, lançando-o contra a parede. Em um movimento fluido, girou o corpo e pressionou a lâmina de sua adaga contra o pescoço do outro, sua expressão tomada por fúria.

    — Já disse para me deixarem em paz! — Sua voz carregava uma ameaça real, firme e determinada.

    O homem sob sua lâmina ergueu as mãos em um gesto de rendição, mas o outro já se levantava das sombras. Antes que eu pudesse alertá-la, ele se moveu rápido e lhe desferiu um golpe brutal na cabeça. Ela cambaleou, os olhos ainda abertos, mas era evidente sua dificuldade em manter-se de pé. Aproveitando sua fraqueza momentânea, um deles a agarrou com brutalidade e a empurrou contra a parede.

    — Gosta de brincar, não é, garota? — Murmurou com um sorriso cruel.

    Mas ela não era do tipo que se rendia facilmente. Num último ato de resistência, desferiu uma joelhada no estômago do agressor, tentando escapar. Porém, antes que conseguisse, os dois a seguraram pela roupa, arrancando sua capa e capuz com o puxão. Ela caiu no chão com o impacto, ofegante, e foi nesse instante que meus olhos se arregalaram.

    Sob a fraca luz que atravessava o beco, vi seu verdadeiro semblante. Seus longos cabelos azul-celeste caíam em ondas suaves ao redor de seu rosto, refletindo um brilho quase etéreo. Suas orelhas eram levemente pontudas. Mas o que realmente me prendeu a respiração foram suas asas — longas e delicadas, pareciam feitas de pura seda cintilante. Os desenhos que as adornavam lembravam rendas finamente trabalhadas, como se a própria natureza tivesse esculpido cada detalhe com precisão divina.

    — Ora, ora! — Um dos homens riu, os olhos brilhando com malícia. — Parece que ganhamos na loteria.

    O outro se aproximou e a puxou bruscamente pelos cabelos, forçando-a a erguer o rosto.

    — Não deveria estar tão longe de casa, fadinha. — Sua voz era carregada de escárnio.

    — Vai se ferrar... — ela retrucou, ofegante, mas sem demonstrar medo.

    O sorriso cruel do homem se alargou. Sem hesitar, ele a virou de costas, pressionando-a contra a parede, enquanto o comparsa sacava uma adaga.

    — Primeiro, vamos arrancar essas lindas asinhas. Aposto que valem uma fortuna.

    O outro riu, assentindo friamente, como se já estivessem acostumados com esse tipo de brutalidade.

    — E depois que nos divertirmos um pouco... vamos vendê-la como escrava.

    As risadas dos dois ecoaram pelo beco, cheias de crueldade e certeza de impunidade. Para mim, aquilo foi o suficiente. Eu podia ter ignorado antes. Podia ter dito a mim mesmo que não era problema meu. Mas agora? Agora eu não ficaria parado! Avancei sem hesitar, tomado por uma fúria incontrolável.

    O primeiro a segurar a adaga foi meu alvo inicial — desferi um soco certeiro em seu rosto, e ele desaba no chão antes mesmo de entender o que aconteceu. O outro se lança contra mim, mas um chute rápido no peito o afasta, fazendo-o cambalear para trás. Sem perder tempo, saco minha própria adaga da cintura e, com um movimento ágil, a lanço contra ele. A lâmina crava-se em seu ombro, arrancando um grunhido de dor.

    O primeiro já se reergue e investe contra mim com ferocidade. Desviei do ataque no último segundo e contra-ataquei com um soco firme no estômago. O impacto é preciso. Ouço o ar escapar de seus pulmões em um gemido sufocado antes que ele caia para trás, ofegante.

    Ambos se levantam com dificuldade, os olhos carregados de ódio. Por um instante, penso que tentarão me enfrentar novamente, mas, ao perceberem que a luta não lhes favorecia, tomam a decisão mais sensata. Trocam um olhar silencioso e, sem dizer uma palavra, viram-se e desaparecem pelo beco, carregando sua humilhação.

    Voltei minha atenção para a garota, que estava caída no chão, seu corpo frágil e inerte. Agachei-me ao lado dela e, ao me aproximar, notei a expressão contorcida de dor em seu rosto, ainda pálido. Ela estava desmaiada, e não era para menos — uma mancha escura de sangue escorria pela sua testa, resultado da pancada brutal que levara. Seus braços e pernas estavam cobertos por hematomas e arranhões, sinais claros de que ela havia passado dias tentando escapar de alguma perseguição, lutando por sua sobrevivência contra saqueadores impiedosos.

    Tentei acordá-la, sacudindo suavemente seus ombros, mas não houve resposta. A sensação de impotência me invadiu. Suspirei frustrado, observando seu corpo imóvel. Eu não podia deixá-la ali, sozinha e vulnerável. Aqueles homens poderiam retornar.

    Por um momento, fiquei em silêncio, ponderando o que fazer. A decisão mais sensata era levá-la para minha casa, onde poderia cuidar dela até que estivesse segura e recuperada. Com um esforço cuidadoso, ergui a garota nos meus braços, sentindo o peso de sua fragilidade, mas também a urgência de protegê-la.

Não era bem o que eu esperava para hoje!

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¹ Freezean - O cavalo possui uma pelagem azul-claro. Contrastando com sua crina branca e sedosa. De porte médio, sua estrutura é equilibrada, com patas robustas que garantem resistência e estabilidade. Conhecido por seu temperamento dócil, é uma das espécies de equinos mais gentis das terras de Alhures, sendo amplamente valorizado como animal de tração devido à sua força e natureza tranquila.

Capítulo 3 - Raças

Há 100 anos...

Estava na vasta biblioteca de Aurelith, cercado por prateleiras imponentes de madeira escura e pergaminhos antigos que exalavam o aroma característico de papel envelhecido e tinta desbotada. A luz bruxuleante das luminárias mágicas lançava um brilho suave sobre as mesas de estudo, onde outros alunos, igualmente concentrados — ou entediados —, dedicavam-se às pesquisas para seus trabalhos.

    Era nosso último ano na Academia, e a pressão para obter boas notas pesava sobre nós como uma tempestade prestes a desabar. Eu folheava um grimório volumoso quando um suspiro dramático cortou o silêncio estudioso do ambiente.

    — Ahhh! Que coisa mais chata! — exclamou Nyxa, jogando a cabeça para trás com impaciência. — Por que sempre temos que fazer esses trabalhos absurdamente entediantes? Eu detesto isso!

    Levantei os olhos do livro, observando minha companheira de estudos. Seu cabelo curto e roxo contrastava com a expressão emburrada, e seus olhos de um rosa profundo faiscavam com frustração.

    — Pensa pelo lado positivo… pelo menos é um trabalho em grupo — tentei animá-la com um sorriso discreto.

    Ela bufou e voltou a encarar o tomo aberto à sua frente, revirando os olhos como se minha tentativa de consolo não valesse de nada. Nyxa era três anos mais velha do que eu e nunca teve muita paciência para estudar. No entanto, se formar na Academia de Aurelith não era uma escolha — era uma exigência. Desde os cinco anos, os alunos ingressavam nesse rigoroso sistema de aprendizado, e apenas aos cinquenta estavam prontos para seguir seus próprios caminhos. Um belo tempo dedicado ao estudo e ao treinamento, desde o domínio das artes de combate até o conhecimento profundo sobre o mundo além dos limites do nosso reino.

    — De que adianta o trabalho ser em grupo se aqueles dois manés nunca aparecem? — resmungou Nyxa, cruzando os braços e batendo o pé no chão com impaciência.

    Dei de ombros, prestes a responder, quando um som de passos apressados ecoou pelo corredor. Drakion e Aryn surgiram em meio às estantes, ofegantes, os cabelos bagunçados e as roupas desalinhadas, como se tivessem acabado de sair de um vendaval. Eles pararam à nossa frente, respirando pesadamente.

    — Desculpem a demora — disse Drakion, inclinando-se levemente enquanto tentava recuperar o fôlego.

    Nyxa bateu a palma da mão na mesa e arqueou uma sobrancelha.

    — Vocês estão uma hora atrasados!

    — Nós sabemos — admitiu Aryn, levantando as mãos em um gesto de rendição. — Pedimos mil desculpas, mas estávamos treinando com espadas e… bem, perdemos completamente a noção do tempo.

    Nyxa bufou e virou o rosto, claramente não satisfeita com a explicação.

    — Seus imprestáveis…

    Suspirei, antecipando a discussão que certamente viria se ela continuasse nesse tom.

    — Tudo bem, rapazes. O importante é que vocês vieram — disse, tentando manter a calma e evitar que o trabalho atrasasse ainda mais.

    Os dois trocaram um olhar rápido antes de assentirem, parecendo aliviados por eu não ter engrossado a discussão. Sem perder mais tempo, puxaram as cadeiras e se sentaram apressadamente. Aryn acomodou-se ao lado de Nyxa, enquanto Drakion sentou ao meu lado, ainda tentando desacelerar sua respiração.

    Aryn tinha cabelos de um verde escuro intenso, que lembravam a copa das árvores mais antigas de Aurelith. Seus olhos, em contraste, eram de um tom mais claro, quase como jade polido, brilhando levemente sob a iluminação suave da biblioteca. Drakion, por outro lado, exibia cabelos de um vermelho vibrante, tão intenso quanto chamas vivas, e olhos dourados que pareciam brilhar como metal reluzente. A maioria dos Elunaris possuía olhos que seguiam a tonalidade de seus cabelos ou, pelo menos, cores semelhantes, mas em casos raros — como o de Drakion — essa regra era quebrada, tornando-os ainda mais distintos.

    Aryn se inclinou ligeiramente sobre a mesa, apoiando os cotovelos enquanto olhava para mim com curiosidade.

    — Então… já escolheram a raça que iremos apresentar? — Perguntou, sua voz carregando um tom casual.

    Fechei o livro à minha frente e respondi calmamente:

    — Estamos em dúvida entre os Nivalis e os Kynaras.

    Drakion soltou um suspiro e balançou a cabeça.

    — Não acho uma boa ideia falar sobre eles.

    Nyxa franziu o cenho e cruzou os braços.

    — E por que não? — Questionou com impaciência.

    Drakion ergueu uma sobrancelha e se recostou na cadeira, como se sua resposta fosse óbvia.

    — São as raças mais famosinhas — explicou. — Pelo menos três grupos vão falar sobre elas. Acho que deveríamos escolher algo que não faça o professor cair no sono durante a apresentação.

    — E o que sugere, senhor esperteza? — Nyxa disse, seu tom zombeteiro mais do que evidente.

    Drakion permaneceu em silêncio por um momento, seus olhos dourados percorrendo os livros sobre a mesa. Ele folheou algumas páginas rapidamente, como se estivesse buscando algo específico. Depois, com um sorriso de satisfação, pegou um livro e o levantou, apresentando-o.

    — Que tal esse? — Perguntou, o tom sugerindo que tinha encontrado algo realmente interessante.

    Nyxa e Aryn olharam para ele com os olhos arregalados, boquiabertos com a surpresa e a incredulidade. Por um instante, o ambiente ficou em silêncio. Então, Nyxa virou o rosto com uma expressão de desdém e disparou:

    — Nem pensar que vamos apresentar sobre os humanos!

    Eu, porém, olhei para o livro e, pensando um pouco, disse:

    — Pode ser uma boa ideia.

    Nyxa me fitou com incredulidade, sua expressão carregada de espanto.

    — Sério, Sylwen? — perguntou, os olhos estreitos, como se fosse impossível acreditar no que acabara de ouvir.

    Encolhi os ombros, tentando parecer mais convincente.

    — Acho que ninguém vai querer apresentar sobre eles…

    Aryn, que até então parecia atento, interrompeu com uma risada leve e uma expressão cínica.

    — E com razão — disse, balançando a cabeça em descrença. — Vocês já ouviram as histórias sobre eles, não é?

    — Claro que já — disse Nyxa, visivelmente incomodada com o que ia dizer, sua voz carregada de repulsa. Ela se inclinou para frente, como se fosse contar um segredo sórdido. — Eles primeiro te oferecem abrigo e comida, para conquistar sua confiança. Depois, eles arrancam suas asas e te vendem como escravo...

    A expressão de Aryn se endureceu, e ele não demorou a interromper, sua voz grave.

    — Eles são gananciosos e traiçoeiros. São interesseiros e mentirosos.

    Eu balancei a cabeça, tentando dissipar o clima pesado que se formava.

    — Ah, qual é, gente? Não é como se a gente fosse gostar deles só porque vamos apresentar esse trabalho — disse, tentando soar mais séria. — Isso pode garantir uma boa nota.

    Drakion, que até então parecia mais calmo, jogou um olhar confiante para mim.

    — Concordo com a Syl — disse, sua voz firme. — Acho que é uma boa ideia.

    Nyxa suspirou profundamente, visivelmente irritada, e se recostou na cadeira.

    — Mas eles são tão sem graça! Não têm magia e a vida deles é tão curta... Fala sério, o que dá para fazer em cem anos de vida? No máximo, porque a maioria não chega nem aos oitenta.

    Aquelas palavras ficaram suspensas no ar, uma verdade amarga sobre as diferenças entre nós e os humanos. Era uma questão interessante, de fato. O tempo de vida dos Elunaris, em comparação, era incomparavelmente maior. Vivíamos entre 800 e 1.000 anos, o que fazia a existência humana parecer quase um piscar de olhos. Mesmo assim, apesar de sua vida curta e da falta de magia, os humanos dominavam o maior território das terras de Alhures, com seus reinos vastos e prósperos.

    — Aparentemente você sabe bastante sobre os humanos, Nyxa — comentei, um sorriso malicioso se formando nos meus lábios. — Acho que vai ser bom usarmos esse repertório de informações.

    Nyxa bufou, e seu olhar se tornou ligeiramente exasperado.

    — Ok! Ok! Vamos falar sobre os humanos chatinhos, mas isso só porque estou cansada de tanto ler e ainda não chegarmos a uma decisão.

    Eu dei um pequeno sorriso, satisfeita por ela finalmente ceder.

    — Então está decidido. Vamos apresentar sobre os humanos — disse Drakion, parecendo aliviado por finalmente termos chegado a um consenso.

    Aryn, no entanto, parecia estar se esforçando para esconder uma pontada de nervosismo. Sua voz tremeu ligeiramente enquanto falava.

    — Por um lado, até que é bom — disse, tentando parecer mais confiante. — Já que, se algum dia dermos de cara com um humano, vamos saber exatamente o que fazer.

    Nyxa olhou para ele, sua expressão mais dura.

    — Espero que isso nunca aconteça — afirmou, com a voz firme, como se a simples ideia fosse insuportável. — Nunca quero encontrar um humano.

    Aryn, no entanto, não parecia totalmente convencido, e a pergunta que ele fez parecia mais uma provocação do que uma real dúvida.

    — Mas Nyxa, sua família é coletora — disse ele, arqueando uma sobrancelha. — Não vai seguir os passos de seus pais?

    Nyxa hesitou por um momento, como se as palavras que estavam prestes a sair de sua boca não fossem exatamente as que ela queria dizer. Sua voz ficou baixa, cheia de incerteza, uma suavidade rara para ela.

    — Bem… não sei… talvez — respondeu, os olhos desviando para o chão.

    Coletores eram Elunaris que saíam de Aurelith em busca de ingredientes raros para poções e elixires, um trabalho que exigia não apenas coragem, mas também habilidades para enfrentar os perigos do mundo exterior. Às vezes, ficavam dias fora, explorando terras desconhecidas. Para garantir a segurança, eram sempre acompanhados por um grupo de soldados, mas nem sempre todos voltavam.

    — Não se preocupe, eu vou te proteger quando for um soldado! — disse Aryn, estufando o peito de maneira exagerada.

    Nyxa, no entanto, ergueu uma sobrancelha, seu olhar carregado de ceticismo.

    — Bem, eu estou disposto a correr o risco — disse Drakion com uma empolgação contagiante. — Quero muito explorar o mundo além dos limites de Aurelith.

    — Muita coragem a sua! — comentou Nyxa, a voz cheia de sarcasmo, mas também um pouco de admiração.

    Drakion olhou para mim e sua expressão suavizou.

    — E se quiser explorar também, posso te proteger. — Ele sorriu, o olhar confiável e seguro.

    Senti um leve sorriso se formar nos meus lábios enquanto olhava para ele.

    — Agradeço, Drakion... mas eu não tenho a intenção de sair de Aurelith nunca — respondi com calma, a voz firme. — Este é meu lar, e me sinto perfeitamente feliz aqui, com todos vocês e com Orinthar!

    Houve um momento de silêncio. Todos os olhos se voltaram para mim, e pude ver o orgulho brilhando em seus olhares. O apoio silencioso de cada um deles me aqueceu o coração.

    Após alguns segundos, Nyxa quebrou o silêncio, com um tom mais decidido.

    — Então vamos logo começar esse trabalho!

    — Sim! — respondemos os três juntos, a decisão tomada.

    E assim, nos afundamos nos livros, desvendando mais sobre essa raça que, ao mesmo tempo, trazia tanto medo quanto despertava minha curiosidade. A cada página virada, ficava mais claro que os humanos eram complexos, com suas próprias falhas e qualidades, e quanto mais aprendíamos, mais eu sentia que algo ainda nos escapava. E as vezes me pegava pensando, por que os humanos eram assim tão cruéis?

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