Sinceramente, eu não sabia por que ainda insistia em voltar ao Reino de Hortência. Sempre era a mesma coisa. Minhas poções nunca vendiam bem — eram comuns demais, e a concorrência era grande. Em um mercado saturado, onde todos ofereciam as mesmas misturas, eu me via sempre no mesmo dilema: tentando encontrar um lugar para mim em meio à repetição.
Se ao menos algum aventureiro aparecesse com metais rúnicos, eu poderia ganhar o suficiente para viver por anos sem precisar me preocupar com trabalho. O valor de uma única arma rúnica era altíssimo, mas esses materiais raramente chegavam até mim. Suspirei, frustrado, sentindo o peso da realidade sobre meus ombros. Sem alternativa, voltei a me concentrar em organizar minhas mercadorias, tentando ignorar a sensação de que aquele dia seria apenas mais um como todos os outros.
Saí de casa e inspirei profundamente o ar frio que anunciava o início do inverno, deixando-o preencher meus pulmões. A mochila pesava em meu ombro enquanto eu caminhava até o celeiro, onde, algumas horas antes, havia preparado Maré, minha fiel Freezean¹. Ao me aproximar, passei a mão suavemente por seu focinho gelado, sentindo o calor de sua respiração contra minha pele. Ela relinchou baixinho em resposta, como se reconhecesse minha presença. Sem pressa, subi em sua sela, ajustando-me com cuidado antes de guiá-la para a jornada que me aguardava.
Durante o trajeto, meus olhos percorriam a paisagem ao redor. As árvores, já sem folhagem, erguiam seus galhos retorcidos contra o céu pálido, enquanto o chão seco e sem gramado tornava o cenário ainda mais desolador. O inverno se aproximava implacável, e a preocupação pesava sobre mim. Se eu não conseguisse vender minhas mercadorias, os próximos meses seriam difíceis, mesmo com o estoque de comida que havia reunido. A incerteza pairava no ar tão fria quanto o vento cortante que soprava pela estrada.
Ao me aproximar dos imponentes portões do Reino de Hortência, puxei as rédeas. Logo fui distraído por um dos soldados de guarda, que me reconheceu de imediato e abriu um sorriso amistoso.
— Aqui outra vez, meu caro amigo? — Disse ele, cruzando os braços enquanto me observava.
— Tenho que tentar vender minhas mercadorias antes que o inverno chegue. — Respondi com um suspiro, dando um tapinha no alforje cheio.
— Boa sorte então. — Ele assentiu, afastando-se para abrir caminho.
Com um aceno de cabeça em agradecimento, segurei as rédeas de Maré e segui caminho, esperando que dessa vez a sorte estivesse ao meu lado.
Ao adentrar os portões, percebi que a cidade permanecia como sempre: organizada e vibrante. As casas bem cuidadas, algumas imponentes com dois andares, exibiam elegantes sacadas adornadas com floreiras. As ruas, pavimentadas com tijolos alaranjados, refletiam uma atmosfera acolhedora e convidativa. Ao longo do caminho, postes sustentavam bandeiras que tremulavam com orgulho, estampadas com o brasão do reino — uma flor branca em contraste com o fundo verde-escuro. O símbolo parecia dançar ao vento, reforçando a identidade e o prestígio de Hortência.
A movimentação era constante. Pessoas iam e vinham, imersas em suas rotinas, algumas apressadas, carregando sacolas e pacotes, enquanto outras caminhavam tranquilamente, apreciando o dia e trocando conversas despreocupadas. O burburinho misturava-se ao som das rodas das carroças e ao leve tilintar das ferraduras nos paralelepípedos, criando uma melodia urbana familiar e reconfortante.
Passei boa parte da manhã indo de barraca em barraca, oferecendo minhas mercadorias, apenas para receber as mesmas respostas desanimadoras: já tinham estoque suficiente. Mesmo reduzindo os preços a valores bem abaixo do mercado, ninguém parecia interessado. O peso da frustração começou a se acumular em meus ombros. Com um suspiro cansado, encontrei um caixote abandonado em um canto e me sentei, esfregando o rosto com as mãos. Já tive dias melhores... e, pelo jeito, aquele não seria um deles.
O som de uma briga chamou minha atenção. Me levantei, olhando na direção de onde viera o barulho, indeciso sobre o que fazer. Antes que pudesse tomar uma decisão, um grito abafado rompeu o silêncio, acelerando meu coração. Movido pelo instinto, avancei rapidamente, adentrando um beco estreito e sombrio. Movi-me com cautela, os sentidos alertas, até que a cena finalmente se revelou diante de mim.
— JÁ DISSE PARA FICAREM LONGE! — Bradou uma garota, segurando uma adaga com firmeza. Seus olhos faiscavam determinação, mas seu corpo tenso denunciava o medo.
Ela estava encurralada contra a parede por dois homens de aparência rude, provavelmente saqueadores à procura de presas fáceis.
— Vamos lá, passe tudo que você tem — disse um deles, com um tom arrastado e ameaçador.
Não se envolva... não se envolva...
Repetia para mim mesmo, tentando ignorar o incômodo crescente em meu peito. Mas algo me dizia que simplesmente virar as costas não seria tão fácil.
Com uma agilidade surpreendente, ela avançou contra um dos homens e desferiu um chute certeiro, lançando-o contra a parede. Em um movimento fluido, girou o corpo e pressionou a lâmina de sua adaga contra o pescoço do outro, sua expressão tomada por fúria.
— Já disse para me deixarem em paz! — Sua voz carregava uma ameaça real, firme e determinada.
O homem sob sua lâmina ergueu as mãos em um gesto de rendição, mas o outro já se levantava das sombras. Antes que eu pudesse alertá-la, ele se moveu rápido e lhe desferiu um golpe brutal na cabeça. Ela cambaleou, os olhos ainda abertos, mas era evidente sua dificuldade em manter-se de pé. Aproveitando sua fraqueza momentânea, um deles a agarrou com brutalidade e a empurrou contra a parede.
— Gosta de brincar, não é, garota? — Murmurou com um sorriso cruel.
Mas ela não era do tipo que se rendia facilmente. Num último ato de resistência, desferiu uma joelhada no estômago do agressor, tentando escapar. Porém, antes que conseguisse, os dois a seguraram pela roupa, arrancando sua capa e capuz com o puxão. Ela caiu no chão com o impacto, ofegante, e foi nesse instante que meus olhos se arregalaram.
Sob a fraca luz que atravessava o beco, vi seu verdadeiro semblante. Seus longos cabelos azul-celeste caíam em ondas suaves ao redor de seu rosto, refletindo um brilho quase etéreo. Suas orelhas eram levemente pontudas. Mas o que realmente me prendeu a respiração foram suas asas — longas e delicadas, pareciam feitas de pura seda cintilante. Os desenhos que as adornavam lembravam rendas finamente trabalhadas, como se a própria natureza tivesse esculpido cada detalhe com precisão divina.
— Ora, ora! — Um dos homens riu, os olhos brilhando com malícia. — Parece que ganhamos na loteria.
O outro se aproximou e a puxou bruscamente pelos cabelos, forçando-a a erguer o rosto.
— Não deveria estar tão longe de casa, fadinha. — Sua voz era carregada de escárnio.
— Vai se ferrar... — ela retrucou, ofegante, mas sem demonstrar medo.
O sorriso cruel do homem se alargou. Sem hesitar, ele a virou de costas, pressionando-a contra a parede, enquanto o comparsa sacava uma adaga.
— Primeiro, vamos arrancar essas lindas asinhas. Aposto que valem uma fortuna.
O outro riu, assentindo friamente, como se já estivessem acostumados com esse tipo de brutalidade.
— E depois que nos divertirmos um pouco... vamos vendê-la como escrava.
As risadas dos dois ecoaram pelo beco, cheias de crueldade e certeza de impunidade. Para mim, aquilo foi o suficiente. Eu podia ter ignorado antes. Podia ter dito a mim mesmo que não era problema meu. Mas agora? Agora eu não ficaria parado! Avancei sem hesitar, tomado por uma fúria incontrolável.
O primeiro a segurar a adaga foi meu alvo inicial — desferi um soco certeiro em seu rosto, e ele desaba no chão antes mesmo de entender o que aconteceu. O outro se lança contra mim, mas um chute rápido no peito o afasta, fazendo-o cambalear para trás. Sem perder tempo, saco minha própria adaga da cintura e, com um movimento ágil, a lanço contra ele. A lâmina crava-se em seu ombro, arrancando um grunhido de dor.
O primeiro já se reergue e investe contra mim com ferocidade. Desviei do ataque no último segundo e contra-ataquei com um soco firme no estômago. O impacto é preciso. Ouço o ar escapar de seus pulmões em um gemido sufocado antes que ele caia para trás, ofegante.
Ambos se levantam com dificuldade, os olhos carregados de ódio. Por um instante, penso que tentarão me enfrentar novamente, mas, ao perceberem que a luta não lhes favorecia, tomam a decisão mais sensata. Trocam um olhar silencioso e, sem dizer uma palavra, viram-se e desaparecem pelo beco, carregando sua humilhação.
Voltei minha atenção para a garota, que estava caída no chão, seu corpo frágil e inerte. Agachei-me ao lado dela e, ao me aproximar, notei a expressão contorcida de dor em seu rosto, ainda pálido. Ela estava desmaiada, e não era para menos — uma mancha escura de sangue escorria pela sua testa, resultado da pancada brutal que levara. Seus braços e pernas estavam cobertos por hematomas e arranhões, sinais claros de que ela havia passado dias tentando escapar de alguma perseguição, lutando por sua sobrevivência contra saqueadores impiedosos.
Tentei acordá-la, sacudindo suavemente seus ombros, mas não houve resposta. A sensação de impotência me invadiu. Suspirei frustrado, observando seu corpo imóvel. Eu não podia deixá-la ali, sozinha e vulnerável. Aqueles homens poderiam retornar.
Por um momento, fiquei em silêncio, ponderando o que fazer. A decisão mais sensata era levá-la para minha casa, onde poderia cuidar dela até que estivesse segura e recuperada. Com um esforço cuidadoso, ergui a garota nos meus braços, sentindo o peso de sua fragilidade, mas também a urgência de protegê-la.
Não era bem o que eu esperava para hoje!
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¹ Freezean - O cavalo possui uma pelagem azul-claro. Contrastando com sua crina branca e sedosa. De porte médio, sua estrutura é equilibrada, com patas robustas que garantem resistência e estabilidade. Conhecido por seu temperamento dócil, é uma das espécies de equinos mais gentis das terras de Alhures, sendo amplamente valorizado como animal de tração devido à sua força e natureza tranquila.
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Atualizado até capítulo 62
Comments
Mafe Oliva
Foi a melhor escolha de livro que fiz em muito tempo! 🏆📚
2025-03-23
2
Gaby G.B.R.
Essa história está ficando cada vez melhor /Rose/
2025-03-25
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