O ar frio da noite trazia uma sensação reconfortante, quase anestésica, enquanto Sofia caminhava pelas ruas pouco iluminadas da cidade. Depois de um longo dia, ela decidira ir até a pequena livraria em um bairro afastado, um lugar tranquilo que gostava de visitar. Os livros, para ela, sempre foram uma fuga, uma maneira de esquecer o que já viveu e, talvez, encontrar pedaços de si mesma em outros mundos.
Ela entrou na livraria e sentiu-se envolta pelo cheiro de papel antigo e madeira polida, um aroma que sempre lhe trazia uma estranha sensação de segurança. Passando os olhos pelas prateleiras, ela escolheu um livro sobre memórias e traumas, uma leitura que, sem dúvida, parecia promissora, considerando tudo o que estava vivendo. Perdida entre os livros, ela mal notou quando ouviu uma voz familiar.
— Sofia?
Ela virou-se, e seu corpo enrijeceu ao ver Victor ali, a alguns passos de distância, com um leve sorriso. Ele vestia um casaco escuro e parecia à vontade, como se fosse um cliente frequente. O encontro a surpreendeu, mas o choque rapidamente foi substituído por uma sensação de desconforto, quase um aviso instintivo.
— Victor… — Ela tentou disfarçar o nervosismo com um sorriso. — Não esperava te ver por aqui.
Ele deu de ombros, colocando as mãos nos bolsos e se aproximando devagar.
— Também não esperava te encontrar. Mas essa é uma das minhas livrarias favoritas — respondeu ele com um sorriso.
Aquela afirmação a pegou de surpresa. Victor gostava de livrarias? Sofia franziu ligeiramente o cenho. Ela tentava encaixar aquele detalhe na ideia que construíra dele nos últimos dias, mas sentia que algo não fazia sentido. Ele continuou falando, aparentemente alheio ao turbilhão de pensamentos que sua presença havia desencadeado nela.
— Gosto de vir aqui à noite, quando está mais tranquilo. O dono até me conhece. Às vezes, trocamos ideias sobre livros. — Victor sorriu, com um ar casual. — Antes do acidente, eu adorava ler. Acho que isso é algo que consegui manter.
A última frase fez com que Sofia prendesse a respiração. Ela nunca havia associado aquele gosto a ele, nunca ouvira uma palavra sobre leituras ou qualquer interesse parecido quando estava presa no cativeiro. Aquilo a fez recuar mentalmente, e o desconforto se transformou em desconfiança.
— Que interessante. — Ela disfarçou, mantendo o tom de voz neutro. — Então você ainda gosta dos mesmos livros de antes?
Victor hesitou um pouco, como se estivesse pensando na resposta certa.
— Sim, alguns. Embora tenha perdido a maioria deles… — Ele fez uma pausa e depois riu, como se lembrasse de algo. — Uma pena, porque eu tinha uma coleção inteira dos clássicos. Nunca gostei muito de romances contemporâneos. Mas quem sabe, posso tentar explorar outras coisas agora.
Enquanto Victor falava, Sofia continuava com o sorriso forçado. A cada detalhe que ele acrescentava, as palavras pareciam mais forjadas, como se ele estivesse se esforçando para criar uma versão aceitável de si mesmo. A Sofia do passado nunca conhecera um lado dele que apreciava literatura ou trocava ideias sobre livros. Ela se questionava se ele estava tentando enganá-la ou se realmente acreditava naquela nova persona.
— Então… você era um colecionador? — ela perguntou, tentando soar curiosa, mas com o olhar atento em cada gesto dele.
Ele pareceu ficar um pouco desconfortável, desviando o olhar por um segundo antes de responder.
— É… algo assim. Eu… gostava de coisas antigas, clássicos. Fazia parte do que eu era. — Ele parecia cada vez mais hesitante em suas respostas, como se estivesse tateando no escuro.
Aquelas palavras ecoaram na mente de Sofia. "Fazia parte do que eu era." Se ele realmente não se lembrava do passado, como podia afirmar com tanta certeza o que fazia ou não parte de sua antiga personalidade? Sofia percebeu que estava diante da primeira grande dúvida sobre sua "amnésia". Talvez ele tivesse memórias fragmentadas que se encaixavam pouco a pouco, mas aquele gosto por literatura… aquilo soava forçado, como uma tentativa de parecer inofensivo.
Tentando manter a conversa, ela puxou um livro de uma prateleira próxima e fingiu olhar para ele enquanto formulava sua próxima pergunta, uma armadilha sutil.
— E o que você tem lido ultimamente, então?
Victor passou a mão pelo cabelo, pensativo, como se estivesse tentando se lembrar de algo concreto.
— Bem… ultimamente tenho lido um pouco de filosofia. Os clássicos gregos, sabe? Platão, Sócrates… coisas assim.
Sofia teve que morder a língua para não franzir o rosto. Não havia nada mais distante da personalidade que conhecia do que o gosto por filosofia. Quando esteve sob o domínio dele, ele nunca tinha mostrado o menor interesse por assuntos intelectuais ou qualquer coisa além de manipulação e controle. Filosofia? Aquilo parecia uma piada.
Ela colocou o livro de volta na prateleira e o encarou, com o semblante cuidadosamente neutro.
— Filosofia… interessante. Você deve ter mudado bastante, não? — disse ela, usando um tom mais frio do que pretendia.
Victor pareceu perceber o tom dela e hesitou antes de responder. A expressão em seu rosto mudou ligeiramente, e Sofia pôde ver uma sombra de confusão ou talvez algo mais profundo.
— Sim… acho que sim. Quer dizer, todos nós mudamos com o tempo, certo? — Ele riu sem graça, tentando dissipar a tensão.
Sofia apenas assentiu, mas por dentro estava desconfiada, tentando digerir as informações que ele tinha dado. A cada palavra de Victor, a dúvida se intensificava em sua mente. Seria possível que ele tivesse inventado toda aquela perda de memória, ou ela estava sendo paranoica?
Enquanto conversavam, ela não conseguia evitar o pensamento perturbador de que talvez aquele fosse apenas mais um jogo de manipulação. Uma maneira de colocá-la à vontade, de se aproximar novamente e retomar o controle que ele perdera quando ela escapou. A ideia era perturbadora, e ela sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Se ele estava mentindo, então tudo o que ele havia feito, todos os gestos, todas as palavras, eram parte de uma trama mais complexa do que ela podia compreender.
— Sabe, Sofia, eu realmente fico feliz por você estar aqui — disse Victor, com a voz mais suave, enquanto os olhos dele a observavam atentamente. — Sei que parece estranho, mas conversar com você é como encontrar uma parte de mim que estava perdida. Você me lembra de quem eu posso ter sido… antes de tudo isso.
Ela desviou o olhar, sentindo um misto de desconforto e desconfiança. Queria acreditar nele, mas cada detalhe, cada frase enigmática a fazia questionar se ele era realmente uma pessoa nova ou o mesmo homem cruel escondido sob uma nova camada.
— Bem, fico feliz por você estar tentando se redescobrir, Victor — respondeu ela, tentando esconder o sarcasmo em sua voz. — E espero que continue assim… verdadeiro.
Victor olhou para ela, surpreso com o tom da resposta, mas apenas assentiu.
— Obrigado, Sofia. Isso significa muito para mim. — Ele sorriu, mas ela já não sabia mais como interpretar aquele sorriso.
Enquanto ele se despedia e saía da livraria, Sofia ficou parada, assistindo-o se afastar pela porta. Ela sentiu uma necessidade urgente de confrontá-lo, de perguntar diretamente sobre o que ele estava escondendo, mas sabia que precisava ser cautelosa. A cada palavra vaga e inconsistência que ouvia, a imagem de Victor como "um novo homem" parecia se desfazer.
Ficou ali, sozinha, sentindo-se dividida entre o desejo de acreditar nele e o medo de cair em outra armadilha. E no fundo de seu coração, uma voz sussurrava que, talvez, aquele "novo homem" fosse apenas mais uma das muitas máscaras de Victor.
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Atualizado até capítulo 43
Comments
Claudia louca por Livros📚
Essa mulher é realmente perturbada, autora estou gostando do seu livro, ele é totalmente diferente de todos os livros que eu já li, eu geralmente gosto muito de livros sobre mafiosos, mais esse gênero de leitura eu nunca tinha lido e devo admitir estou gostando.
2024-12-20
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