Sangue & Destino
O passado sempre falava em palavras mudas, como dedos cadavéricos a deixar pistas e rastros ao longo do percurso. Um quebra-cabeça de infinitas peças que, ao se perder a caixa, não sabia qual imagem formava. Exigia muita paciência, e o desafio era lidar com as peças, encaixá-las no lugar certo. De mesmo modo, lobisomens eram coisas do passado, seres medonhos presos em lendas antigas e fantasiosas, e justamente por isso, não havia a menor possibilidade de que Cibele estivesse vendo um no jardim.
Cibele sabia que precisava parar de beber. A fascinação com o estilo Tudor da mansão desfez-se na arrogância dos convidados da festa. E as emoções emergiram como borbulhas na sopa da solidão. Não queria estar ali, a rejeição corroía os ossos, mas Nina insistiu tanto. E o passado baforava em sua nuca como um fantasma aferrado a cobrando eternidade afora por cada minúscula dádiva que recebera, como se jamais tivesse merecido qualquer grão de felicidade sem que tivesse que pagar caro por isso.
As estrelas, pontinhos borrados e cintilantes, salpicavam no líquido escuro do cálice prateado competindo com outros brilhos fugazes dos postes elegantes do jardim, e Cibele o provou para se certificar. Vinho! Era mesmo, vinho, tinha se esquecido. Mas, não se esqueceu dos lumes. Como as estrelas, estavam no bosque, acendiam e se apagavam, como pisca-pisca de árvore de Natal. Não existiam. Não havia nada ali, o garçom garantiu antes de servir o cálice de... provou da bebida outra vez. Vinho!
"Não, não há olhos luminosos piscando na escuridão, senhorita. Desculpe-me, mas não os vejo."
Droga? Outro gole. Não, vinho.
Para além do caminho pavimentado com calcários, algo se movia entre a ramagem, e os enigmáticos olhos se acenderam outra vez, como duas bolinhas de gude luminescentes e ameaçadoras, enfeitavam a silhueta de uma cabeça canina imensa e peluda que a encarava entre as lanternas suspensas nos galhos. O que era aquilo? Sobressaltou-se e recuou um passo. Lobisomens não existiam. Estava delirando, bebeu demais. O medo desproporcional e irracional a sacudia desde as profundezas. Procurou pelos convidados ao redor, conversavam no jardim rodeados pela beleza e luxuosidade do lugar, indiferentes ao bosque adiante e seu suposto monstro. Estava bêbada a ponto de alucinar? Qual seu problema?
Avançou um passo, era uma mulher moderna e inteligente, nunca se deixou guiar pelo medo e muito menos por superstições. Além disso, a beleza da trilha orlada por candeeiros, assim como as lanternas suspensas nos arbustos ao longo da parede verde e viva que circundava o pequeno bosque coligado ao jardim, era convidativa. Parou por um momento, poderia ser alguns convidados divertindo-se, um grupo de pessoas alcoolizadas e devassas há pouco saltaram na piscina sem se preocupar com os trajes de gala. Não se surpreenderia de encontrar pervertidos fantasiados no jardim.
Era uma teoria, ao menos embora o garçom dissera com todas as letras de que não havia olhinhos luminescentes e rubros no bosque. Possível efeito da embriaguez, no entanto, jurou tê-los visto entre a ramagem. E a sensação incômoda de ser observada por algo, além dos convidados da festa, todos emoldurados por grifes, nomes importantes e desdém, a deixava tensa.
A riqueza de Nina a deixava tensa. O novo namorado de Nina e sua mansão a deixava tensa. Não conhecer ninguém naquela festa também. Havia um abismo entre eles, e nem o vestido de grife, nem as luvas aveludadas e nem o cálice de... outro gole... vinho... faziam-na sentir-se melhor. A escavação a faria. O túmulo de um possível governante e o material colhido e enviado para análise de carbono a fariam se sentir bem. Todavia, era final de semana, e a temporada de escavações havia terminado.
E Alan terminara o que nem começaram e o álcool não dissolvia o mal-estar deixado pelo maldito bilhete. Um bilhete! Sacudiu a cabeça, indignada. Não queria admitir nem para si, entretanto não dava mais para fingir de que estava cansada de empilhar relacionamentos fracassados no quartinho escuro do esquecimento.
A poucos metros Nina se dependurava no pescoço de Arthur, os cachos dourados roçavam brilhantes sobre a pele macia e alva das costas que o vestido longo e rosa não cobria, a medida que as risadas da amiga reverberavam pelo jardim, sufocando a música que vinha do interior do casarão. Cibele sabia o quanto Nina gostava de Arthur e aquela festa era um marco importante para a amiga que, após tantos meses de espera, havia sido convidada por aquele que jurou de pés juntos ser o amor da vida dela.
Arthur devia ser o vigésimo "amor da vida de Nina" desde que ambas se conheceram. A amiga, uma romântica incurável, conseguia se apaixonar e desapaixonar com velocidade espantosa. E toda vez era pra valer. Toda vez era o homem certo. Toda vez...
Seus sentidos gritavam para dar o fora. De novo. Se acenderam, se apagaram. Algo a vigiava com olhos brilhantes desde a escuridão. Nina estava feliz. Nina beijava Arthur. Olhos esquisitos e brilhantes piscavam no bosque para Cibele. Não podia estragar a noite. Precisava de mais... Tentou beber, o cálice secara.
— Venha ficar conosco.
Surpresa, Cibele se voltou para a moça que, simpática, abriu um sorriso acolhedor. A mulher era bela, belíssima. Não a beleza delicada e angelical de Nina, tampouco a formosura lúgubre e gótica de Cibele, vulgar a ponto de exigir certa condescendência do apreciador. Não, a mulher era uma obra de arte, o cabelo acobreado ornamentava o rosto como se Vênus de Botticelli tivesse ganhado vida e encarnado no ser diante de si, ostentando o pomo de ouro capaz de derrubar Troia, a reduzindo a uma mera mortal, pequena e sem graça, diante do deslumbramento de seu porte.
— Sou Adruna — esticou a mão para o cumprimento. — Notei que está sozinha há bastante tempo. — Focou Nina que, entregue aos beijos de Arthur, nem as notou. — Acho que sua amiga enfeitiçou Arthur a ponto de nem dar atenção aos convidados. — O cabelo caiu carmesim e vibrante na face ao se virar para Cibele outra vez. — Qual seu nome?
— Cibele Cellier.
Tomou o braço de Cibele e elogiou a beleza do nome, comentando sobre alguma outra Cibele que conheceu anteriormente e a guiou para dentro da casa. Caminhavam lentamente pelo salão, Cibele deixou o cálice vazio na bandeja do garçom. Mesas esparsas e cobertas por toalhas de veludo vermelhas que, embora mantivessem copos com bebidas e pratos com porções, estavam vazias. Alguns grupos pequenos de pessoas se reuniam em conversas animadas pelos cantos e não as notaram. Adruna abriu uma das várias portas de madeira nobre, maciças e entalhadas, espalhadas pelo recinto. E tão logo avançou para dentro da sala, todos os olhos se voltaram para Cibele.
Relaxados em sofás de cor creme, os homens desviaram a atenção de Cibele e voltaram a conversar como se nada houvesse acontecido. Outros próximos às janelas altas e arqueadas, bebericavam a bebida, indiferentes às duas mulheres. A sala tinha a forma de cruz e imensos lustres despencavam como uma cascata cristalina desde o teto abobadado. Adruna seguiu para um desses nichos que se expandiam desde o salão central e Cibele notou que havia pouquíssimas mulheres no local.
Sentado numa poltrona de veludo azul-marinho, confortável e elegante, elevava-se um pouco acima dos outros, que conversavam animados sentados em divãs que o cercavam, feito um rei rodeado por sua corte. De beleza viril e porte atraente... Lindo.
E o copo faltou.
Só mais um gole, mais um pouco de bebida. Onde estava o garçom? Precisava de algo que dissolvesse a rigidez dos músculos, apagasse os pensamentos confusos e impedisse que os olhos brilhantes nos arbustos tivessem surgido momentos antes.
Não havia garçom algum por perto e Cibele tornou a olhá-lo. Não conseguia se focar em qualquer outra coisa que não fosse os traços apessoados do rosto entediado, os cílios abundantes e escuros proporcionavam um contorno negro natural aos olhos dourados. O cabelo comprido e castanho estava preso num rabo frouxo, e embora estivessem os dedos e pulsos cobertos por ouro e pedras preciosas, nada nele era desarmônico. Algo estava errado, e o desconhecido sedutor se destacava. Queria ir embora, mas o único lugar adequado parecia ser o peito forte do formoso sentado em seu suposto trono.
Arrebatamento poderia ser o nome dado ao sentimento que atordoou Cibele, ainda que fosse um homem belo, não era exatamente a fisionomia que causava o desejo de se atirar nos braços dele. Não, não era físico, sequer racional. Como uma apaixonada, queria respirar o ar que ele respirava, tocá-lo para averiguar se havia calor na pele oliva, morrer sob o brilho áureo e selvagem de seu olhar. Um encantamento capaz de fazer com que tudo se dissolvesse ao redor, e nada mais houvesse do que borrões coloridos e as chamas delicadas das velas que se espalhavam nos vários candelabros que os circundavam.
E ele, altivo, sentado como um rei, escorado no braço de madeira esculpida da poltrona, coçando o queixo, em seu belo trono de veludo azul.
— Pierre — informou Adruna, risonha.
O tom de deboche de sua anfitriã agiu como se desse substância à sala, aos objetos e às pessoas ao redor, mesmo a chatice da música ambiente, que dava a impressão de estar num elevador, voltou a reverberar em seus ouvidos. Não sabia bem o motivo pelo qual se incomodou ao permitir que Adruna notasse a atração, como se fosse um contrassenso desejá-lo. Não devia ter bebido tanto e se arrependeu de ter aceitado o convite para a festa de Arthur e Nina pela milésima vez.
Havia algo de exótico em Pierre e o mesmo desconforto de horas antes, quando julgou ter visto olhos luminosos dentro do bosque pela primeira vez, a tomou no exato momento em que Adruna enroscou os braços no pescoço dele.
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Atualizado até capítulo 55
Comments
Anonymous
Como saberemos que vc escreveu os outros capítulos, melhor enredo que li por aqui
2024-09-17
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Vivi
gostei do começo na espectativa para os próximos capítulos
2024-06-11
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Maria Medeiros
tá ficando exótica está história parabéns autora por sua história bem escrita
2024-04-22
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