Capítulo 3

Os trovões explodiam e o som insistente de um gotejamento ecoava nas paredes embebidas e lodosas. A cabeça girava e doía, e a grade, que a mantinha presa na cela minúscula, permitia ver Nina inconsciente na alcova adiante. Cibele elevou a ponta do vestido branco e comprido, semelhante a uma camisola vitoriana, de mangas longas, três botões no colo e gola alta com babados. Quem a vestiu? Onde estavam suas roupas? Sua bolsa? Seus pertences?

Alguém chorava e fungava na cela ao lado. Murmurava palavras ininteligíveis. Cibele se levantou da cama rústica, os pés tocaram o chão úmido e frio, e uma escuridão, tão deprimente quanto suas sensações, permeava o cubículo e fugia da luminosidade tênue que avançava pelo portão. Segurou a grade feita com ferros grossos e enegrecidos, e tentou espiar pelo corredor iluminado por lampiões dependurados em suportes na parede. Nenhum som que denunciasse movimento ou a presença de possíveis carcereiros.

Sentou-se e abraçou os joelhos. No que pensar? E a imagem de Pierre sentado na poltrona de veludo, acima de todos, encantador e misterioso, emergiu à mente. Cibele se sobrecarregou de incertezas. Ainda que o choro do desespero se fechasse na garganta, um estranho sentimento fomentava em seu íntimo. Desejo. Atração. Ainda estava drogada? Pois não fazia sentido algum pensar nele com tanto anseio e expectativa. Vê-lo de novo? Onde estava com a cabeça? Enclausurada numa jaula como estava, tinha de pensar em como sair dali, e não se o veria novamente!

Nina bocejou e se moveu. E alegrou-se quando a amiga se levantou. Vestia uma camisola similar, os cabelos dourados escorriam sobre o corpo esguio, cambaleou, confusa, e se apoiou nas grades.

— Nina! — Cibele chamou e correu de volta ao portão. Segurou os cilindros de ferro e encaixou a cabeça entre o vão, numa fútil tentativa de se aproximar. — Nina, o que faremos?

A amiga mantinha um olhar vazio, como se estivesse sofrendo de sonambulismo. Nina escorou a cabeça contra as grades, levou as mãos à barriga e se dobrou. O vômito umedeceu a barra do vestido. E apoiando-se nas travas de ferro, Nina se sentou com dificuldade sobre a poça repugnante e se recostou contra a parede. Cibele a chamou mais algumas vezes, perguntou o que estava acontecendo, se estava bem, mas Nina não reagia.

— Está drogada — resmungou a mulher na cela ao lado. — Não adianta, não há nada que possa fazer por sua amiga.

— Onde estamos? — Cibele perguntou. — Quem nos mantém presas?

A mulher riu como se tivesse ouvido uma piada.

— Não sei quem são.

— Qual seu nome?

— Lana. E o seu?

— Cibele. Há quanto tempo está aqui?

— Não faço a menor ideia. É sempre escuro, não há uma fenda sequer por onde a luz natural possa entrar e nunca estou acordada quando deixam a comida. Só vi alguns deles aqui quando vieram buscar as outras moças e depois quando trouxeram vocês. Mas, tenho a impressão de que estão aqui o tempo todo, porque embora não haja qualquer conforto e essa prisão é mais úmida e imunda do que um chiqueiro, estou sempre limpa.

— O que acha que quer conosco?

— Não sei. Minha única esperança é que não fique aqui por muito tempo. Aceitaria qualquer coisa para não ter que viver nesse porão nojento.

Cibele repassou as memórias, havia um grande lapso entre o momento em que Adruna a guiou até a sala, bebeu da bebida amarga de Yan e tudo se apagou. Estava com medo, não precisava muito para compreender a situação na qual se encontrava. Não, não era uísque, tinha sido drogada. E agora estava presa numa masmorra desagradável. Gritou por socorro a pleno pulmões. E Lana gargalhou do outro lado da parede.

— Não adianta berrar feito uma idiota. Acredite, eu berrei por vários dias e ninguém apareceu para me salvar. E não há como fugir.

Cibele gritou uma e outra vez, agarrada às grades, tentava sacudi-las, embora não se movessem sequer um milímetro.

— Cale a boca! — vociferou outra voz feminina.

E conscientizou-se de que havia várias celas como aquela ao longo do corredor. As grades negras se destacavam na forma arqueada da parede que ganhava um tom arenoso sob o rubro das lâmpadas. E, no fundo do corredor, alguém se movia numa das alcovas, e metais batiam contra a pedra, ainda que o tilintar persistente a fizesse acreditar que talvez alguém pudesse estar preso às correntes, o ruído era mais peculiar, como um ourives a laborar em pesadas joias. O aroma de metal incandescente e fumaça davam consistência à hipótese, embora fosse impossível que um artesão estivesse trabalhando num lugar tão decadente.

Cibele não sabia o que pensar, do mesmo modo que não soube dizer quanto tempo se passou até que adormeceu. E quando acordou, algo estava diferente com seus sentidos. O gotejar insistente, o chispar das lamparinas, as vasilhas vazias empilhadas no canto da cela e o mal-estar no estômago assinalavam de que estava num estado de embriaguez no qual nem soube como alcançou.

Outro lapso de memória.

E a sensação de ter vivido algo no período em que ficou hipoteticamente inconsciente, entretanto, era fugidio, e quanto mais tentava se recordar, mais escapava. Como quando se está prestes a dizer uma palavra e do nada a esquece. Um grande esforço se faz necessário para relembrar o que ia falar, a palavra escorrega até a ponta da língua, mas a perde, às vezes para sempre, outras para se lembrar noutro momento quando não mais precisa dela. Essa exata sensação! De que viveu e esqueceu. De algo que se perdeu na travessia de um momento para o outro seguinte. E sempre que isso ocorria, a imagem de Pierre ressurgia, ainda sentado na poltrona requintada, de olhar entediado, ou enroscado nos braços de Adruna.

Incomodava, porque Pierre não aparecia como uma lembrança, sempre arrastava atrás de si uma estranha gama de emoções, como uma assombração a arrastar correntes em casa abandonada. Feito fantasma, Pierre estava e não estava lá. O bonitão não era uma imagem simples de um instante no passado, era concreto como se jamais tivesse ficado ausente. E como um desconhecido havia se tornado tão relevante? Via-se dividida entre sentir raiva por acreditar que Pierre estivesse envolvido com o sequestro, e se apegar à esperança de que sairia dali e o encontraria em algum pub sem que o gato soubesse do incidente.

Loucura! O tédio e a penumbra a endoidavam. Impossível acreditar que Pierre e Adruna não estivessem de conluio com Arthur. A vagabunda foi quem a levou à sala e ainda a incentivou a dar atenção para Yan. Talvez Pierre não soubesse da intenção de sua namorada e o amigo dela, mas algo se remexia dentro de Cibele ao considerar aquilo, tinha quase certeza de que o bonitão estava envolvido.

— Tem uma moça nova na cela da frente — uma mulher anunciou de uma das alcovas do corredor, que Cibele não conseguia ver.

— Outra? — perguntou Lana.

— Tenho certeza de que essa cela estava vazia até antes de me deitar para dormir — a desconhecida afirmou.

Silenciaram.

Por que juntavam aquelas mulheres? Como entravam e saíam sem que ninguém visse coisa alguma? Fitou as tigelas vazias e não se lembrava quando comeu, nem quando trouxeram o alimento. As lacunas na memória a agonizava mais do que não saber o que queriam.

Nina dormia, encolhida feito um feto no piso frio. Lana cantava e quando se cansava de suas canções, reclamava e xingava, batia a caneca de alumínio contra as grades, gritava para que a libertassem. E se cansava. Fungava e chorava por um longo período e mandava Cibele calar a boca sempre que tentava falar com ela.

Não havia nada para ocupar a mente e fazer o tempo passar. Pressionando os joelhos contra o peito, Cibele se imaginava em sua casa, cheia de sol, com o gato a circular preguiçoso sobre os móveis. Alan sentiria a falta dela? Estava tão decidido em terminar o namoro, que nunca começou, que cogitar que sentisse sua ausência era tolice. E ressentiu-se por não desejar lembrar do que conseguia, socando e retesando o choro na garganta outra vez. Não queria se sentir um monstro desprezível de novo, pois isso sentiu ao ler o maldito bilhete, Alan a achava insuportável, asquerosa. Não, não a procuraria. E a dor da rejeição estourou no estômago como úlceras e nauseou.

Enumerou as pessoas que poderiam dar por sua falta e acionar a polícia para procurá-la. Nina! Sim, o pai de Nina era muito protetor, com certeza moveria mundos e fundos para encontrá-la, e o primeiro lugar em que buscaria a filha seria na casa de Cibele e logo constataria que ambas desapareceram. E se o Sr. Aluísio não buscasse pela filha, os colegas de trabalho se avultariam para saber de seu paradeiro. E acalmou-se por um instante. Lá fora alguém procurava por elas, e seriam encontradas. Precisava acreditar nisso. Precisava!

Arthur devia ter algo a ver com aquilo. A casa era dele, afinal, e as convidou para a festa detestável. E atormentou-se com o que viria acontecer, a esperança desvaneceu-se. O mundo era imenso e poderiam estar em qualquer lugar, muito longe de casa. Não sabia o que pensar. Embora suspeitasse que Adruna, Arthur e Yan estivessem envolvidos com aquilo, não os conhecia.

O que Nina disse sobre Arthur? Um homem bem-sucedido, equilibrado, que viajou o mundo e sempre falava sobre assuntos profundos. E sobre o sexo, repetiu milhares de vezes que nunca transou com alguém como ele. Sacudiu a cabeça ao se lembrar dos detalhes contados pela amiga. E de tudo aquilo, o que pensar? Por que Arthur as sequestraria? Cibele nem dinheiro tinha.

Nina. Sim, Nina era rica. Talvez fosse isso. Não deixaria a festa sem a amiga e resolveram a prender também. E todas aquelas mulheres nas outras celas? E a camisola esquisita que vestia? E se Arthur e seus amigos fossem malucos de alguma seita? O coração de Cibele disparou com a ideia de serem sacrificadas em rituais macabros.

— Lana — chamou, apreensiva.

— O que é? — grunhiu a outra.

— Como veio parar aqui?

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Comments

Fatima Silva

Fatima Silva

sinistro

2024-05-04

0

Yoi Lindra

Yoi Lindra

Recomendo para todos. 🌟

2024-03-24

2

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