— Pierre — Lana choramingou. — Pierre me enganou.
— Te enganou como?
— Não importa... não importa — vociferou Lana. — Não importa, não muda nada. Ele disse que os lobos não mais uivariam. Pierre me prometeu que os cachorros do inferno não mais me atormentariam, nem os fantasmas invadiriam minha casa. Um mentiroso, é isso o que Pierre é.
Como era a aparência de Lana? O modo ensandecido com o qual falava passava a impressão de que era uma velha maluca e ranzinza. Compreensível, mesmo Cibele sentia que enlouqueceria naquela escuridão e ociosidade.
— Estão nos preparando, só não sei para o quê — Lana acrescentou após a pausa. — Certa vez vieram ter com Rosinha. Eu fingi que estava dormindo, pois a cela dela era essa aí na frente da minha e queria ver o que faziam ou ao menos quem eram. Podiam ser uns tarados, não é mesmo? Ficamos dopadas, as pessoas vêm, nos dão banho, trocam nossa roupa. E queria me garantir de que não era estuprada enquanto dormia.
— E o que fizeram com Rosinha? — perguntou outra mulher tão interessada quanto Cibele.
— Primeiro eles a tiraram da cela e pelo som de água e as roupas limpas com a qual a vestiram quando trouxeram de volta me fez crer que há um banheiro por aqui, no fundo do corredor, talvez. A mulher estava encapuzada, mas os olhos dela se iluminaram como se fossem duas bolas de fogo e recitou alguma coisa numa língua que nunca ouvi na vida—
— O idioma não se parecia com nada conhecido?
— Nada. Enrolado como o russo, mas não, não era. Era esquisito. Surreal. O mais esquisito foi que Rosinha começou a respondê-la em nossa língua, feito uma sonâmbula. Não dizia coisa com coisa. Só que falou num momento que sabia que estava pronta para ficar entre eles. E juro pela minha calcinha de que foi essa afirmação que fez com que ela saísse desse muquifo no dia seguinte.
— Estamos aqui para sofrer uma lavagem cerebral, é isso? — Cibele perguntou.
— Eu não sei porque estamos aqui — choramingou Lana. — Só sei que não quero mais ficar aqui.
Cibele planejou não mais se alimentar e nem beber nada do que era oferecido, pois se estivessem as drogando, usavam provavelmente o alimento para esse fim. A questão estava em tornar-se consciente quando comia. Começou a contar a data, como não tinha noção do tempo, sempre que acordava considerava se tratar de um novo dia, e riscava um traço no lodo de uma das paredes com a unha.
A mente estava sempre enevoada, e os traços se multiplicavam. E se esquecia, se alimentava e então se lembrava de que não devia comer. Escreveu na parede onde a cama estava recostada, “não coma”, mas acordou noutro tempo, e a frase não estava lá, alguém a tinha apagado. Quando se recordou de que tinha escrito “não coma”, havia acabado de comer. Irritada com a situação de não conseguir se lembrar, e mais de trinta traços enfileirados na outra parede, mordeu o canto da unha até sangrar, letra por letra, escreveu com sangue no lençol. “Não coma!”
E no outro dia, o lençol estava impecavelmente limpo e só se lembrou de não comer após devorar uma carne assada e suculenta. Disso não podia reclamar, as alimentavam muito bem. No despertar seguinte, desanimada, enfiou a mão sobre o travesseiro ao se espreguiçar e o papel se enroscou nos dedos. Intrigada e apressada, aproximou-se das grades para enxergar. “Por que não quer comer?” — era tudo o que estava escrito no bilhete. Quem enviou? Por quê?
Não tinha com o que responder ao bilhete, e também não queria. Enrolou o papel e o enfiou no vão entre as pedras da parede, onde ficou por vários traços (da contagem dos dias) a mais. E devido ao pedaço do papel enfiado na parede se lembrou de que não deveria comer ou beber, do mesmo modo que memorizou alguns nomes, ao menos das mais falantes. Sasha. Elis. Lívia. Lana. Sabia haver mais mulheres, muitas, mas não se recordava de seus nomes. Às vezes ouvia alguém dizer algo como Eleonor, ou Natasha. E consentia com a cabeça. “Natasha. É mesmo!”.
Entretanto, a sua longa estadia na masmorra se tornou mais infernal e tediosa, pois se misturava a ela a agonia da sede e da fome. E as vasilhas com comida e o jarro de cerâmica cheio de água estavam sempre ao alcance. Os traços na parede eram muitos. Contara naquele despertar. 47 dias e nada mudou.
Não sabia ser bom quantificar a passagem do tempo, nem sabia se estava correto, pois não tinha como calcular quantas horas ou quantas vezes dormia no dia. E os números cresceram sobremaneira. Dormia mais? 60 dias dava a soma dos traços. E devia ter demonstrado sinais de desidratação, e embora sentisse sede e fome, tinha a impressão de que estava sendo ao menos hidratada durante os apagões. E ainda assim continuava a nunca ver ninguém, mesmo o papel do bilhete se deteriorava na parede por causa da umidade.
Deprimida, não suportava mais ouvir Nina chorar. Como sempre fazia desde criança, a amiga clamava pela atenção dela, a obrigava a confortá-la, e Cibele não podia abandoná-la. Não, não podia. Devia tudo a Nina e sua família. Mas, naquele dia em particular se sentia tão mal, a sede, mais do que a fome, tentava a convencer de que devia beber, nem que fosse um pouquinho. A voz em sua cabeça, como um demônio tentador, alegava não haver droga ou perigo, e que um gole só não faria mal. E Nina a chamava outra vez, pedia para Cibele fazer alguma coisa, tirá-las dali.
Estava tentando, dando o seu melhor, de verdade! Só estava sedenta demais, com muita fome, irritada e impaciente. E por mais vigoroso que fosse seu esforço, não se tornou mais lúcida, não se lembrava de nada. Só a sensação de que viveu e esqueceu. Encarou os traços no lodo, tantos dias se passaram, tanto tempo presa. Podia chorar ao menos uma vez, não podia? A voz fina e manhosa de Nina invadia seus ouvidos como um ladrão no meio da noite. Tapou as orelhas com as mãos, com os olhos fitos nos traços. Queria pedir para que Nina parasse de falar, mas se magoaria, ela sempre se magoava. E Nina e sua família sempre foram tão bons com ela!
Caiu sobre os joelhos. Por fraqueza, tristeza ou desespero. Nada do que fazia funcionava, talvez pudesse beber e comer. Estava tudo lá, nas vasilhas, no canto da cela. Não, não comeria. Podia ter esquecido muita coisa, mas não se esqueceu de Rosinha. Arrastou-se até a cama e se deitou.
Nina silenciou depois de um tempo. Cibele moveu a cabeça. A amiga devorava uma coxa de frango, sem demonstrar qualquer preocupação com drogas ou venenos, entornou o jarro, secou a boca com a manga da camisola e tornou a devorar a carne. Saboroso, porque essa lembrança Cibele mantinha bem fixa na mente.
Sono sem sonhos. Sede, fome e desespero. Mais quatro traços. 64 dias. Os lábios rachados e a garganta ardiam. Encolhida no canto da cela em posição fetal, Cibele chorava. A cabeça doía como se estivesse por explodir, o estômago devorava a si. E os sons de passos e cochichos no corredor. A cela se abriu num lamento metálico.
O homem era alto e robusto, nunca o viu na vida, e se o viu não se lembrava. A ergueu com tanta facilidade como se Cibele não pesasse mais do que uma criancinha. A pressionou contra a parede. Outro rapaz esperava no corredor. Fraca, sequer conseguiu se debater, reagir e fugir. Tossiu ao que algo se fechou em seu pescoço, frio, apertado, como uma coleira. Seu atroz falou, mas não entendeu uma palavra sequer. O outro avançou, pressionaram o cálice de bronze contra os lábios secos e fizeram-na beber a força. O líquido morno, tinha um gosto horrível e quando ameaçou cuspir, o homem segurou seu queixo e forçou a cabeça de Cibele para trás, derramando o líquido diretamente em sua garganta. Engasgou e tossiu, nauseada. O entorpecimento espalhou-se por todo o corpo em questão de segundos e desmaiou.
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Atualizado até capítulo 55
Comments
raquel junqueira
Muito interessante!
2024-04-12
6