Capítulo 16

Palavras deveriam se diluir no ar, arremessadas ao espaço e perderem-se para sempre, no entanto, eram tão substanciais quanto o desfiladeiro. Colossal e encravado desde as profundezas da terra, mais velho do que o próprio tempo, esculpido e planejado por seu povo para ser o lar ideal, protegido de todos os perigos a fim de perpetuar os Makrar, berço de lobos poderosíssimos, os mais fortes dentre todas as espécies de lobisomens, e ainda assim vulneráveis por um capricho da natureza em tornar a concepção de fêmeas um evento raro.

No alto do desfiladeiro, Pierre esfregou um punhado de areia entre os dedos. Ao longe, pontinhos luminosos cercados pela escuridão denunciavam a localização da cidade mais próxima, território de seus vizinhos humanos, inconscientes da proximidade de feras predatórias e perigosas por um acordo antigo, tão antigo que os próprios descendentes não mais sabiam que um dia um acordo entre humanos e Makrar existiu.

Acordos. Palavras. Pierre suspirou, abriu os dedos e a poeira dançou no vento, espalhou-se e desapareceu.

Linaet.

O aroma agradável e confortante de Cibele como o calor do fogo espalhava-se por todo o lugar, a sentia na própria pele como uma onda de vibração. Cibele era o calor, o som, a energia que se movia nos corredores tortuosos de Malik, a cidade submersa dos Makrar, o lar de seus pais e avós. O cheiro dela esparramava-se para além do desfiladeiro, carregado pelo vento.

Lembrava-se de quando a viu pela primeira vez, acariciava ao gato e seu cheiro fora arrebatador, a beleza o atordoou, o coração escapou do peito, mais do que uma possível Onnir, Cibele o viciou. A vigiou no trabalho, nos jantares e cinemas com o namorado, no ir e vir pela cidade dentro do carro. A analisou como uma presa, sem nunca pensar uma só vez em a devorar. Desde o primeiro dia, sabia com o mais profundo do ser de que ela era especial, e nada poderia o atemorizar mais.

Toda vez que a olhava, sentia o impacto estonteante como no momento em que Adruna a levou à presença dele na mansão figurativa de Arthur. O balancear do cabelo negro de Cibele lançava seu perfume como milhares de flechas a penetrarem o corpo dele. Pierre sorriu o riso dos tolos. Óbvio que um presente tão generoso do destino teria de ser proporcionalmente caro.

Como dentes negros e afiados contra a cintilância noturna, Malik crescia em cordilheiras, penhascos e encostas, e a vegetação rasteira, ainda que estivesse enraizada em cada minúscula fenda, emoldurando e redesenhando as formas rochosas, exalavam seu aroma verde e fresco, camufladas pela proteção sombria da noite.

A proteção sombria da noite.

Linaet, uma dádiva noturna.

Alfas não o eram por herança, mas por força e destreza, por sabedoria. Ocorreu que sua família estivesse na liderança dos Makrar ao longo dos séculos. Cada um de seus antecessores conquistaram o poder, uma bonificação genética, alguns alegariam, entretanto o pai sempre o aconselhara, “Alfas não nascem Alfas, Pierre, se fazem Alfas”.

Poderoso desde o nascimento, o pai acreditava que a arrogância e a autoconfiança desmedidas eram seus maiores inimigos. Yan foi um oponente difícil. Como eram difíceis as vibrações da dor e dos gritos de Cibele. E retornar para acalentá-la devia ser suplantado, deu o melhor de si, algo dele vivia nela. E Linaet...

Abanou a cabeça, embaraçado, e pulou. De uma pedra a outra, em saltos precisos, avançou para além do desfiladeiro. Alguém o seguia. Parou em cima de uma rocha titânica, farejou o ar. Viriam, sim, viriam, pois queriam uma resposta, temiam a profecia. Se um Lypus tivesse encontrado Cibele antes deles, seguiria o rastro do cheiro e a profecia se cumpriria. E tinham razão para desconfiarem de sua capacidade de liderança e decisão.

Cibele.

Linaet.

O seu perseguidor se aproximava. Não se transformaria. Manteria a forma humana. Não queria lutar, somente correr pelas encostas de Malik, como seus pais e avós fizeram, procurando na noite e na terra a sabedoria ancestral de seu povo. As memórias gravadas em seus genes, no espírito de seu avô Aubin que vivia e resplandecia nele, e também de seu erro. O terrível erro de amar Linaet.

Cibele.

Mesmo ali, há vários metros de distância, o cheiro dela ainda o tocava, com sua dor, com seu medo, com seu útero perfeito. Qual a possibilidade de agir diferente? Onde os Lypus se escondiam? Pois tão logo souberem de Cibele viriam para reclamar o direito sobre a filha da noite. E Cibele estava no seio do lar dos Makrar e seu cheiro viajava a quilômetros de distância. Um golpe de sorte ou azar?

— Pierre, não me diga que pensa em ignorar a profecia. — Yan concluiu o pensamento dele ao saltar noutra pedra ao lado. — Não pode despertá-la como tentaria com uma possível Onnir, não pode dar de seu sangue para Cibele. Deve matá-la ou libertá-la.

— Pode morrer com a mordida de Vicente — Pierre rosnou, incomodado.

— Sabe que não pode. — Yan avançou alguns passos. — Sabe disso melhor do que eu, Pierre. A profecia está intimamente ligada a você e seus parentes.

— É meu parente, Yan, meu meio-irmão. Seu sangue a despertaria tanto quanto o meu. Mesmo sangue, mesmo pai.

— Ela te destruirá. — Havia um tom de choramingo na voz rouca de Yan. — Mantê-la aqui nos coloca em perigo. Se os Lypus...

— Não estaria conosco se os Lypus tivessem a encontrado. Não sente? — Pierre farejou o ar e fechou os olhos. — O cheiro dela está em toda parte.

— Como não sentiria? Ela não pode ficar aqui, Pierre, sabe que não. Os Lypus estão atrás de Lana, se sentirem o cheiro da Linaet a reconhecerão prontamente, e será impossível evitar o conflito.

— Se Lisandra não segurar o filhote não terei opção. Se for uma Linaet, não será como as outras, meu filhote nascerá como aconteceu com papai.

— E terá o mesmo destino de nosso avô. A profecia se cumprirá, seremos dizimados, e você será o culpado. Estamos há tanto tempo sobrevivendo com a ajuda das Onnir. É só uma questão de tempo, Pierre, e uma delas será capaz de engravidar.

— Eu a tenho, Yan. Está aqui comigo, no nosso lar, não abrirei mão disso. Cibele me dará um filhote. Mais do que me agarrar em velhas profecias, preciso evitar nossa extinção.

— Você enlouqueceu. Tem tudo em mãos para evitar que a profecia ocorra, mas...

— Não posso evitar.

— Então teremos de sair daqui. Levá-la para outro lugar onde não colocaremos a alcateia em risco. E de preferência longe de você.

— Não. Não mesmo.

— Pierre, não seja tolo.

— Fortaleceremos nossa guarda, intensificaremos a vigia. Se Lypus estiverem por perto terão que se alimentar, nunca foram cuidadosos, deixam tantos rastros como uma manada. Com a possibilidade de uma guerra, nós dois necessitamos de um filhote mais do que nunca. A Maldição da Mãe e Linaet são lendas. E não permitirei que profecia alguma controle meu destino.

— Lisandra...

— Ela segurou nosso filhote em seu ventre até agora, e lá deve permanecer. Se nascer, Lisandra será minha companheira de vida, será nossa Matriarca, nossa Fêmea Alfa, como manda a tradição, e cuidarei dela.

— Adruna gosta de você, não concordará em ceder seu lugar para Lisandra e muito menos para Cibele. Não pode ignorá-la, papai fez um acordo com o pai dela. Vocês deveriam ficar juntos.

— Deveríamos se Adruna fosse saudável. Sei que ela me ama, mas não pode me dar um filhote, e fico triste com isso. Não tem força para me dar um sucessor. Nenhum de nossa geração conseguiu procriar, Yan. Nós desapareceremos para sempre se não procriarmos e não estamos num número suficiente para atacarmos outros povos e roubarmos suas fêmeas. E embora há muito não ouçamos sobre os Lypus, não devem estar em situação diferente da nossa. Prefiro encará-los em vez de ver nosso fim, seja pela morte, seja por escravidão pelos numerosos Oghans e seu Alfa Diabo.

— Eles querem que renuncie Cibele. Temem a profecia.

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Comments

Maria

Maria

E agora qual será a escolha do Alpha Pierre: morrer por não have natalidade entre os lobos do seu clã, manda a Cibele embora que parece a única chance deles ou morrer lutando com outros clã, vamos esperar os próximos capítulos 😉😉😉😉.

2024-03-29

7

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