— Jamais permitiria que alguém te machucasse — Olavi respondeu.
— Como? Você nem me conhece...
— Claro que te conheço. Estive com você o tempo todo no Claustro da Purificação. Te alimentei, banhei, vesti, cuidei de você. Ficava horas te vendo dormir.
— E por que não me lembro disso?
— Porque as medicinas da Velha te deixavam confusa. É normal, todas ficaram desorientadas.
— Abusou de mim enquanto estive drogada?
— Não. Apenas fiz por você o que não podia fazer por si mesma. Como um bom macho, eu cuidei da minha fêmea.
— Por que você se escondeu nos momentos em que estive consciente na prisão?
— Eu não sei dizer. — Olavi abaixou o olhar. — Somos muito parecidos, mas não somos a mesma espécie. E a Velha nos disse que os humanos se esqueceram da própria natureza, que se julgam como um ser separado de tudo, e que por isso era necessário afastá-las de conceitos equivocados.
— Separada de tudo é como estou agora. — Sasha suspirou, deprimida. — Nem sei dizer em que momento do dia estamos.
— É fim de tarde.
Sasha respirou fundo e deixou a cabeça despencar sobre o peito dele. Houve uma pausa, suspenderam-se num vácuo. E Olavi a tomou no colo. Os movimentos do lobo eram precisos, corredores e salões esparramavam-se feito borrões. O cabelo de Sasha batia contra a face como se estivesse sem capacete numa moto em alta velocidade. Apertou as pálpebras, cega pela luminosidade, as narinas se encheram do ar puro e fresco, e o desfiladeiro se estendeu diante dela como um mar terracota. O sol, em todo seu esplendor, escorria por detrás da cordilheira tal qual uma gema gigante.
E Sasha chorou.
Não sabia porque chorava. Sucumbia ante o poderio do entardecer entre as montanhas e esmaecia sob o toque frio e afável do vento. A imensidão se desvelava diante dela e o mundo a acolhia em seu mistério, como se estivesse contemplando a natureza pela primeira vez. E a esperança a aguardava no fim do horizonte. A alcançaria se fosse persistente. Não perderia a porra do controle. Ainda assim, a energia a consumia, e tudo o que viveu escapou e se desfez por efeito da possessão do espírito do momento.
As mãos de Olavi eram macias e quentes ao circundarem seu abdômen, assim como era cálido o corpo que se encaixou nela, transmitindo segurança. Girou no próprio eixo e buscou a boca dele, devolvia ao universo a beleza de um beijo.
Olavi sufocou um gemido rouco na garganta e outro escapuliu quando Sasha escorregou as pontas dos dedos dentro de uma cicatriz profunda em suas costas. O cheiro do cabelo oleoso era agradável, um aroma viril, selvagem.
— Sasha gosta de mim — Olavi suspirou.
Sasha riu. Copiavam os humanos? A apreensão do castigo se dissolveu, e ocorreu que não podia esquecer-se de que era mantida naquele lugar contra sua vontade. E apertar a boca contra os lábios macios de Olavi a fez tomar consciência da incongruência do ato. E Cibele irrompeu na mente ao mesmo tempo que a saliva peculiarmente quente de Olavi a invadiu. O gosto. Havia sabor, não era doce e nem salgado, a saliva quente, mais quente que o corpo de Sasha, tinha gosto, e ela não sabia do quê. Gosto de lobo. Era bom, agradável.
No entanto, Cibele a incomodava. A ternura daquele momento a perturbava. Gostava de estar com Olavi. Por isso Cibele se sentiu constrangida ao dizer que desejara Pierre, envergonhava-se em afirmar que se sentiu segura com o monstro. Sasha entendia. Compreendia Cibele, porque desejava Olavi, sentia-se segura com ele.
— Sasha gosta de mim — acariciou o rosto dela com a ponta do nariz. — Sasha é minha.
Alguém disse algo no idioma estranho dos lobisomens e Olavi sorriu, debochado. Ergueu-se e a sustentou nos braços como se fosse leve e pequena tal qual uma criança. Sasha lançou um último olhar ao horizonte carminado. E corredores e mais corredores cresceram e diminuíram, uns largos, outros estreitos, alguns com tetos baixos, outros, altos. Escuros, iluminados. Olavi ziguezagueava, sorridente, satisfeito. E a tristeza expandia-se no âmago de Sasha à medida que se aprofundava mais e mais no covil.
E o som de água corrente.
A câmara era linda, como uma gruta de quartzo, não sabia o que produzia o efeito azulado da iluminação. Um córrego corria entre as drusas imensas de ametistas, as estalactites pendiam do teto como cristais afiados de gelo, alguns esbranquiçados, outros com tons ambarados. Encontrou Cibele numa piscina natural, quatro lobisomens a vigiavam. Olavi colocou Sasha dentro da piscina e se retirou do recinto sem dizer palavra.
Não conseguiu encará-la. A única coisa que a confortava era a ideia de que Cibele também tivera um encontro semelhante com Pierre, ou assim queria acreditar para se sentir melhor consigo mesma. A água termal não a distraía, embora o banho desse a impressão de se limpar, não afastava o sentimento de culpa, pois se sentia bem, e não parecia certo se sentir daquela forma quando Cibele poderia morrer.
A natureza humana era um enigma, um paradoxo constante de emoções incongruentes. Sentiam o que não deviam, quando o correto seria sentir o oposto, gerando conflito e incompreensão. Olavi abusou do poder, ele era o mais forte, acima de Sasha na cadeia alimentar. Ainda assim, como explicar que gostou? Por que a água não levava aqueles pensamentos embora? Por que Cibele continuava silenciosa como se soubesse que Sasha acabou de beijar um lobisomem? O silêncio de Cibele a condenava.
— Me perdoe, Cibele — Sasha sussurrou, e os quatro machos a encararam.
— Pelo quê? — a outra perguntou, cismada.
Sasha não conseguiu responder.
— O que aconteceu? — Cibele insistiu, o medo estampado em seu cenho. Desconfiava de Sasha. Temia o desconhecido, pois não sabia sobre o que Sasha se desculpava.
— Eu o desejei — confessou, tímida.
— Pierre?
— Não. Não Pierre. Olavi.
— O que aconteceu?
Sasha contou com poucos detalhes, o silêncio e atenção que Cibele a dedicava a desconcertava. Um pecado. O pior dos pecados. Não queria falhar. E falhou.
— Deve haver algo neles — Cibele deliberou. — Deve haver alguma coisa, um feromônio, um cheiro, algo que não conseguimos detectar com nossos sentidos, mas que respondemos com nossos instintos. — Cibele silenciou por um momento. — Foi assim comigo também. Não queria ficar longe dele. Não queria! Não importava o quanto sentia medo, que o vi em sua forma bestial, no perigo que corria. É uma entrega irracional e incontrolável. Deve ter alguma explicação científica.
As palavras se perderam na garganta de Sasha, incapaz de articular qualquer som diante da compreensão de Cibele.
— Podem aplicar algum tipo de hipnose — Cibele prosseguiu. — Ou ficamos tanto tempo naquele porão que perdemos o senso. E quem de nós tem alguma sanidade nessa situação? Até há pouco eu nem acreditava que lobisomens existiam.
Os quatro machos riram, por mais que ambas sussurrassem era evidente que conseguiam ouvi-las. A amiga os encarou, incomodada, e prosseguiu.
— E ainda sinto dificuldade de pensar que isso é real. Tudo o que julgava como certo e concreto desmoronou. — Cibele afagou o cabelo dela. — Está tudo bem, Sasha, não fez nada de errado.
— Acha que vão te matar?
— Não, não acho que vão. Pierre me disse que não.
— Lana não acredita neles.
Os machos riram outra vez.
— Ela acha que mentem e nos enganam e eu acredito nela — continuou Sasha.
— Podem nos ouvir mesmo quando sussurramos ou estamos distantes — Cibele assegurou, e entreolharam-se. Sasha tentou se comunicar em libras.
Cibele sacudiu a cabeça em negativa. Afundou na piscina e Sasha a seguiu. Com a ponta do dedo escreveu no leito: “temos de conhecer seus hábitos”. Sasha balançou a cabeça concordando e ambas emergiram. Riram. Os machos a observaram, movendo a cabeça de um lado para o outro, como filhotes de cachorro, curiosos, querendo participar da brincadeira. Como? Como os espionariam?
Deviam ter pensado nisso antes. Conversado quando ainda se encontravam presas na masmorra. Sasha e Cibele deviam ter sido amigas desde a infância. Porque o destino as uniu, e pouco sabiam uma da outra para conseguirem se entender através de gestos. A necessidade de construir uma comunicação muda era urgente. Sim, as ouviam. Precisavam encontrar um modo de se comunicar, de se manterem vivas e de darem o fora dali.
E ambas estremeceram e silenciaram quando sete lobisomens adentraram a gruta. Três deles possuíam pelagens creme, a outra metade, cinzenta, o único albino posicionava-se no centro, a pelagem branca e abundante em torno da face lupina. Cibele se ergueu, e caminhou. As gotas escorregavam pelo corpo nu, pequenas poças formavam-se sob seus passos. Seguiu firme, como se soubesse o que fazia, ou estivesse sob uma forte hipnose, um pé após o outro, e estacou diante do lobo imenso e branco.
Os olhos dourados de pupilas enormes escorregaram desde a cabeça até os pés de Cibele, e todos os monstros se agitaram. Os lobos de pelagem creme ameaçaram se aproximar de Cibele e o branco rosnou, investindo contra os outros, mostrando os dentes brancos e afiados, enormes, a saliva a escorrer nos cantos da mandíbula.
Um lobisomem de cabeça cinzenta, com um olho de cada cor, um mel e outro azul, e uma farta pelagem branca que descia pelo pescoço, desde o queixo animalesco até cobrir grande parte do peito, mais atrevido, ousou tocar o ombro de Cibele. Agressivo e ameaçador, o branco arremessou-se contra ele, rosnou ainda mais vigoroso, furioso, possessivo. Todos queriam tocar Cibele, todos rosnavam como um bando de lobos no cio. E o branco saltava, de um lado a outro, mostrando as presas, rugindo, uivando, ameaçando morder, com as garras imensas e expostas, prontas para partir qualquer um ao meio, ou ao menos provocar um talho perigoso e muito, muito doloroso.
— Não a machuquem — pediu Sasha.
Os quatro machos que as vigiavam saltaram para a borda da piscina e rosnaram para Sasha, como se estivessem mandando-a calar. Havia um padrão, uma hierarquia, os quatro machos submetiam-se aos outros sete que rivalizavam por Cibele. Tentou se lembrar do que sabia sobre lobos, não que fosse bióloga, gostava de assistir documentários sobre animais selvagens. O nervosismo de Sasha a impedia de recordar com clareza, contudo, sabia que os lobos rivalizavam e disputavam entre si pela fêmea no cio, embora o mais velho tivesse prioridade.
O lobo branco devia ser o mais velho. O albino era o Alfa e estava disposto a feri-los para manter seu privilégio sobre Cibele. E Cibele não se mostrava assustada embora estivesse de costas para Sasha, a postura firme e ereta, os braços soltos ao longo do corpo, não se movia, deixava-se cercar pelo lobo branco que a circundava afastando aos outros, a protegia. Agiria assim com ela também? O Alfa a protegeria como fazia com Cibele? Havia algo além de instinto e acasalamento? Eram capazes de amar como os humanos? Ou se tratava apenas de guerra por território? Onde terminava o lobo e começava o homem?
Quando os rivais se acalmaram e recuaram, o lobo branco permitiu que Cibele acariciasse a pelagem abundante de sua cabeça e ronronou, dócil. Enfiou o focinho no pescoço delicado e longo da amiga. Rosnou e mostrou os dentes outra vez quando Cibele tentou afagar seu abdômen, e os braços da amiga recuaram velozes, temendo uma abocanhada. O branco ronronou de novo, dengoso, e resvalou o focinho róseo entre os seios dela. Queria que Cibele continuasse.
O lobo cinzento de pescoço branco se aproximou de Cibele numa segunda ousada tentativa. O Alfa rosnou, furioso e mostrou os dentes. Maldita hora em que desistiu da biologia! Comportavam-se como os lobos, ainda que fosse claro a diferença, os animais eram animais apenas. Eles tinham algo de humano, possuíam consciência e raciocínio. Cibele o afagou outra vez quando recuperou a coragem e a envolveu nos braços, cuidadoso para não ferir as costas macias com as garras enormes. A amiga se assemelhava a uma bonequinha frágil e pequena que se afundava e sumia na pelagem alva. E a levou com ele, e os outros correram atrás.
Uivos ecoaram pelos corredores e os quatro machos se agitaram na borda da piscina.
— Vem — a ordem soou como um rosnado, enquanto movia a pata imensa, sinalizando Sasha para deixar a água.
O outro rosnou para o comandante. Falaram no idioma estranho e o censurador recuou.
— Vem — insistiu.
Sasha abandonou a piscina e se permitiu ser carregada.
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Atualizado até capítulo 55
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