— Você a preparou, Pierre? — indagou Adruna, ameaçadora.
— Não — respondeu, firme.
Por isso que disse que queria dar da força dele. Pierre se importava. Ela não sabia porque, mas se importava. E por ironia do destino, não importava mais. O que na vida havia denotado a Cibele que tinha uma capacidade especial? Olhou os presentes. Lana se debatendo no canto. As mulheres assustadas abraçadas umas às outras. A Velha logo atrás delas.
“Sobreviva. Não me desaponte. Não me prove errado.”
A pelagem cinza, o andar pesado, quase desengonçado se comparado a Pierre em sua forma lupina. A saliva escorrendo como uma torneira mal fechada nos cantos da imensa mandíbula. Olhos grandes, intensos, alaranjados. Mostrou os dentes, rosnou e encarou Pierre atrás de Cibele.
— Não Filipe — interveio Adruna. — Ele é o mais forte entre os Gamas. Quero Vicente.
“Sobreviva. Não me desaponte. Não me prove errado.”
Cibele respirou fundo quando o homem saltou detrás do grupo e tomou a forma de lobo próximo ao altar de mármore no centro da câmara.
— Marcada por um Gama. Nada mais humilhante. — Yan deu um passo à frente.
— Você não! — ordenou Adruna, impetuosa. — É um Beta, pode transformá-la.
— Ela pode ser uma Onnir, como conselheiro devo tentar convencer Pierre de que isso é uma loucura.
— Você a quer, maldito! — vociferou Adruna. — A acariciou todo o trajeto até aqui. Pensa que não notei, Yan? Todos notaram que você a quer. Por que você acha que a vadia tem uma coleira rubi no pescoço, babaca submisso?
— Chega! — A voz de Pierre reverberou feito um trovão. — Adruna engravidou de mim quatro vezes e não fosse pelo período de descanso para regenerar seu útero, e a gravidez de Lisandra, ela estaria sentada ao meu lado. Minha irmã deve ser respeitada — e enfatizou — por todos!
Adruna estufou o peito e desfilou orgulhosa.
— As regras são claras — Pierre acrescentou. — Humano algum entra nesse covil sem que não seja pela única finalidade de nos alimentar. Os grupos de 10 Onnir ocorre a cada temporada de acasalamento. E até termos certeza de que não são Onnir, são tratadas com dignidade e respeito como membros do nosso clã.
Pierre desceu a escada e parou na frente de Cibele.
— E como membro de minha matilha, Cibele, como um Ômega, você deve acatar todas as ordens de seus superiores, e se manter em sua posição e em seu cargo na alcateia.
“Sobreviva. Não me desaponte. Não me prove errado.”
— Vocês, humanas — Pierre continuou ao dar as costas para Cibele. — Não devem fugir, não pode sair sem a companhia e vigia de um dos nossos, devem fazer tudo o que a Velha disser para fazer. Dormir, comer e fazer o que for ordenado no momento em que a ordem é expressa. Como um ômega, todos nós somos superiores a vocês, e deve nos obedecer a todos.
Se voltou para Cibele e a encarou ao dizer.
— Se tiver algo para dizer e informar às humanas, esse é seu momento, Adruna.
As pupilas de Pierre se expandiram, se contraíram e alargaram outra vez. A voz irritante de Adruna ressoou pela sala. Uma única garra, no indicador, cresceu. O dourado buscou pelos olhos de Cibele. O que o gesto significava? Moveu o dedo para trás e para frente. Avançou dois passos. A unha retraiu e tornou a estender. Cibele entendeu. E não se moveu quando a perfurou no lado esquerdo, pouco abaixo da costela, logo atrás do braço para ocultar o gesto. Doloroso tal qual a perfuração de um punhal.
Como se tivesse injetado droga na veia, a visão embaçou e ficou zonza. Havia um gosto metálico na língua áspera e aromas excêntricos encheram o lugar. Traiu sua alcateia para prepará-la? Como uma bêbada, Cibele deu um passo para trás a fim de manter-se equilibrada. Não tinha controle sobre os músculos, a língua inchada incomodava, a embriaguez tornava-se mais intensa, o veneno era potente.
— Ajoelhe-se! — Adruna vociferou, apontava para o chão.
Os joelhos de Cibele bateram com força contra o piso frio e estalaram.
“Sobreviva. Não me desaponte. Não me prove errado.”
Apertou o braço a fim de esconder o fio de sangue que escorria desde o pequeno furo. Entretanto, Vicente, o lobo, pareceu notar quando, segurando os ombros de Cibele, a inclinou para trás, e focou Pierre. Um aceno de cabeça, talvez?
Cibele gemeu não só de dor, mas de pavor. As patas dianteiras pesaram sobre os ombros delicados, a saliva gotejava da boca imensa da besta e escorria pelo pescoço provocando uma ligeira coceira. Rosnava e mostrava os dentes, fechando e abrindo os lábios grossos e rosados, os pelos do monstro se eriçaram. A cabeça peluda roçou em seu rosto, e ela fechou os olhos, ansiosa e trêmula. Um rugido profundo e ameaçador, e o medo criou um nó em sua garganta.
“Sobreviva. Não me desaponte. Não me prove errado.”
E a mordida veio, no exato local onde Pierre a perfurara. A carne se rasgou dolorosamente, talhada pelos dentes enormes e afiados, como dezenas de lancetas de marfim encravavam na carne macia, rasparam nas costelas. Gritou e agarrou a cabeça peluda numa tentativa inútil de afastá-lo. A sensação de que óleo fervente penetrava em seu abdômen a fez ranger os dentes. O veneno. O formigamento tomou conta da região dolorida e um líquido ardente correu por suas veias.
— Por que não no ombro? — esbravejou Adruna. — Gama maldito, não faz nada direito!
As chamas das tochas sacudiam-se como borrões luminosos. Os músculos enrijeceram provocando uma dor alucinante, e Cibele gritou a pleno pulmões. Algo como uma câimbra generalizada tomou conta de todo o corpo, os tendões repuxavam, estalos e espasmos a sacudiam violentamente. Ela se estirou. A língua estava ainda mais inchada, e não conseguia engolir a saliva.
E como em um sonho, Cibele se viu em outro tempo. A saia do vestido tinha tantas camadas que a mulher mal conseguia sentar direito no piano de cauda. Ereta e sufocada pelo corset apertado, que tornava os seios alvos ainda mais volumosos, o cabelo caía em cachos grossos, delicadamente penteado e seguro pelo chapéu tão vinho quanto o vestido. Os dedos escorriam ágeis sobre as teclas, embora a partitura estivesse aberta, não a necessitava, sabia a música de cor.
Cibele contorceu-se, a cabeça inclinada para trás esmagava a nuca. Pierre a assistia, silencioso, sentado em seu trono, atencioso. A música do piano da visão inusitada reverberava na câmara, como se estivesse presa em dois momentos diferentes. Os lobos se agitavam, escorriam de um lado a outro como vultos. Ah, a dor! Terrível. Os músculos repuxaram outra vez. Cibele encolheu e ficou em posição fetal. Como em um culto macabro, as bestas festejavam.
Lana mantinha um semblante sério desde o canto, presa por garras imensas e fortes, estapeava um dos monstros para roer as unhas. A visão turva transformou a todos em sombras negras entre borrões luminosos e alaranjados. Sasha, sentada num canto, escoltada por dois lobos, a encarava, aflita. Sangue. O gosto de sangue se espalhava pela boca de Cibele.
E mergulhou no delírio novamente. A luz da chama dançava sobre a cauda preta e brilhante do piano, acompanhava melancólica a melodia doce e triste que vibrava no ambiente. A cortina farfalhou, a mulher de vermelho parou de tocar, algo no lado externo da casa chamou sua atenção. Fez o sinal da cruz e se levantou. O piso amadeirado rangia sob seus passos, a prataria sobre o móvel próximo a janela brilhou quando pegou o lampião.
Um som horrendo saía do fundo da garganta de Cibele, desnorteada, levou alguns segundos até notar que não respirava. O corpo tão rígido quanto uma estátua.
“Sobreviva. Não me desaponte. Não me prove errado.”
De volta ao passado... Do outro lado da janela da casa antiga, entre os arbustos, os olhos carmesins como duas lâmpadas abriam e se fechavam para a mulher de vermelho, que procurava por eles desde a janela da casa. Todas as noites vinha visitá-la quando se sentava para tocar o piano.
Não era um monstro como as pessoas de sua vila diziam. Não era humano também, tinha de concordar. A mulher olhou para a escada de madeira no interior da casa, nenhum barulho vinha do andar de cima. Suspendeu as várias camadas da saia, jogou uma perna para fora da janela e, ao passar a segunda, caiu no jardim com um estrondoso farfalhar de panos e ramos. Como um ronronar o riso dele se ergueu dos arbustos. Ela engatinhou por detrás da sebe, não queria ser vista e o defrontou no fim da pequena trilha.
— Qual seu nome? — a voz do monstro oculto, que não era um monstro, soava como um ronco. — Qual seu nome?
Ar. Cibele precisava de ar. As unhas arranhavam o próprio pescoço como se aquilo pudesse abrir a glote. A boca escancarada. Moveu-se com dificuldade. Precisava da luz dourada dos olhos de Pierre. Precisava de Pierre.
— Linaet! — o grito fluiu da garganta de Cibele como um vômito. — Meu nome é Linaet!
Um silêncio sepulcral permeou a câmara. Adruna avançou sobre Cibele e chutou sua barriga. Pierre desceu os degraus num salto, colocou-se entre ela e Adruna. Os dedos dele escorregaram gentis na pele umedecida pelo suor. O veneno dos lobos escapava pelos poros de Cibele, engordurava-a, tornava sua nudez brilhante sob as chamas das tochas.
— Linaet — sussurrou com dificuldade. — Pierre, eu sou Linaet.
Não sabia o que dizia. A mulher de vermelho parecia falar através de Cibele. E ele aparentava saber quem era. A mão de Pierre pesava e o carinho em sua cabeça era mais doloroso do que confortante. Ele a tomou no colo, e Cibele abrigou-se em seu peito, debilitada e aturdida. Tão ágil quanto em sua forma de lobo, Pierre correu pelos corredores. Não tinha noção de tempo e espaço, só sentia o sacudir doloroso, como se os ossos muito frágeis estivessem por quebrar sob a pressão dos braços dele.
A lufada gélida prenunciou o céu cintilante, encolheu-se de frio, e o abraçou com a força que não tinha. Prateada, diminuindo lentamente no quarto minguante, a lua ainda subia desde o Leste. A cintilância da deusa da noite tocava a pele de Cibele e a cobria com um véu delicado que aliviava a dor. O calor emanado do corpo de Pierre tornava-se de pouco em pouco confortável, a garganta se abria e conseguiu respirar ainda que com dificuldade. Fechou as pálpebras e enfiou a cabeça no pescoço dele.
O sacolejar a fez abrir os olhos. Pierre se sentou no chão e recostou contra uma pedra alta e pontuda no alto do desfiladeiro. E havia carinho no olhar que despejou sobre o rosto dela quando o encarou.
— Eu te decepcionei? — sibilou. — Te provei errado?
— Não. — Pierre sorriu e acariciou o rosto dela. — Não mesmo. Mas, ainda precisa sobreviver.
— Eu vou?
— Você deve.
— Dói... tanto...
— Apliquei meu veneno através da unha. — Mordeu o próprio braço e deixou o sangue escorrer para a boca de Cibele. — Beba — insistiu. — Terá propriedades curativas e te deixará forte.
Cibele colocou os lábios na ferida e solveu do líquido precioso, nauseada.
— Logo você irá digerir. Pode não ser muito agradável, mas ao menos garantirei que não morrerá. — Retirou o braço da boca de Cibele quando julgou apropriado e a ferida cicatrizou em seguida.
Cibele esmoreceu, lutou contra as pálpebras pesadas, atenta aos contornos do semblante belo contra o céu cintilante. Calma, embrenhada no aroma morno e delicado do corpo que a amparava.
— Quem é Linaet? — murmurou, abandonando-se ao sono e ao enjoo.
— Durma. — Beijou a testa dela. — Descanse.
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Atualizado até capítulo 55
Comments
Lena Lima Lima
Não estou entendendo muito bem a história 🤔🤔mas continuar pra ver se fica mais clara de agora para frente.( desculpe)
2025-02-14
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Maria Isabel Souza
pelo que eu entendi a lineat é o amor do passado de Pierre e a Cibele a reencarnação dela
2025-02-14
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Maria Isabel Souza
essa estória é bem primitivo
2025-02-14
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