Capítulo 9

Sasha entregou o púcaro com chá para Cibele e se sentou ao lado.

O líquido aromático se sacudia dentro da xícara, Cibele não disfarçava a aflição. Nua e abatida, recostada a parede, não dissera palavra desde que acordou. Não dormiu bem, gemeu e gritou os horrores de seus pesadelos. Esteve perto de morrer, disso Sasha sabia, as pessoas dão valor à vida quando encaram a morte. Nunca passou por nenhuma experiência assim, raramente pensava na morte.

E pensava. Na morte. O que haveria de pensar? A morte oscilava no horizonte como uma miragem, e não precisava de palavras para fazer Sasha reconhecer a própria finitude. Um ser para o mundo. Um ser para a morte. E não queria morrer.

Não havia nada para fazer, a Velha deixara a câmara há um bom tempo, as mulheres despertas se arrastavam de um lado para o outro, espiavam o corredor pela única porta ampla e arqueada do quarto. Não havia uma janela sequer que revelasse se era noite ou dia, se chovia ou se tratava de um dia ensolarado, e a clausura a angustiava.

Não, não morreria. Precisava fugir.

Cibele ergueu a cabeça e farejou o ar como um animal. Uma mutação inesperada tingiu os olhos avelãs de verde-jade, levantou e se encaminhou para a porta. As meninas se voltaram e a encararam, curiosas e assustadas, correram e se empoleiraram feito um bando de urubus no canto quando a mulher irrompeu no recinto. Cibele esperava por ela? Sabia que viria?

Sasha se arvorou e estufou o peito ao ficar ao lado de Cibele. A mulher era negra e alta, o corpo nu exibia tônus e vigor, os músculos definidos e perfeitos. Cada traço do rosto harmonizava com os olhos grandes e castanhos, os tons escuros dos cílios e sobrancelhas e a volumosa cabeleira comprida e selvagem. O colar de várias voltas delicado e repleto de lápis-lazúli caía sobre o colo feito uma cascata de céu noturno.

Linda, como uma pantera, transpirava poder, inspirava respeito e aspirava ameaça. Devia ser Lisandra. Caminhou em passos firmes e ao parar diante de Cibele, tomou o longo cabelo negro entre os dedos, enrolou com agilidade e fez um coque no alto da cabeça da companheira silenciosa sem o auxílio de qualquer objeto. As unhas imensas afundaram na carne macia e lívida da face de Cibele, e Sasha julgou haver certa ternura no modo como Lisandra a analisava.

— Seu cheiro é bom, humana — a loba rosnou. — Não me admira terem te escolhido.

Que as reconhecia pelo cheiro, Sasha sabia, entretanto, o que exatamente queria dizer com cheiro bom? Porque Sasha lembrava-se do que a Velha dissera na (noite?) anterior.

— O problema de cheiros bons é despertar o desejo de quem seria melhor evitar — Lisandra prosseguiu, apalpando o corpo nu de Cibele. — Embora não acredite que humanos deliberem sobre isso, para vocês, passar desapercebido, é uma dádiva. — Atentou-se a uma cicatriz no baço esquerdo da amiga, a unha enorme afundou na marca e arrancou uma gota de sangue, a qual Lisandra levou à boca. — Seu gosto é bom também.

Gosto? Analisava Cibele como um cachorro que encara os frangos assando e girando em forno de padaria? Incomodada com o exame descarado de Sasha, Lisandra deu um passo para o lado e ficou diante dela. As unhas arranharam as pedras de jade do colar, e o frêmito perturbador eriçou os pelos. Apertou as bochechas de Sasha de tal modo que ela pensou que as unhas tivessem perfurado a carne mole de suas bochechas e arranhado as gengivas. Lambeu seu semblante, farejou o pescoço e o cabelo e a abandonou em seguida.

— Esteja pronta para seu castigo — Lisandra anunciou e ao dar as costas para Cibele, completou. — Me siga.

— Não vai castigá-la — a voz de Sasha soou trêmula e baixa, sentia medo. Limpou a garganta e pronunciou com mais firmeza. — Não vai castigá-la!

Lisandra parou e se voltou para Sasha, teatral. Cibele sacudiu a cabeça em negação, motivando-a a desistir.

— Temos uma heroína entre nós? — Lisandra perguntou, debochada. — Esperava tal atitude da queridinha de Arthur.

Nina chorou e se aninhou no ombro de Alice, patética, e Sasha abanou a cabeça, desaprovadora.

— Não escolhemos estar aqui — Sasha titubeou. — Nada dá a vocês o direito de fazer conosco o que bem entenderem.

Rápida como um relâmpago, Lisandra apertou o pescoço de Sasha e a prensou contra a parede, os pés balançaram alguns centímetros acima do chão. Algo como um bolo de farinha se formou na garganta de Sasha e sufocou. Não tardou a tossir, puxava o ar com desespero enquanto a loba a assistia, sádica.

— A natureza me elegeu para estar acima de vocês. Aqui, criança, o predador sou eu. Entendeu?

Sasha não pensou, pois se pensasse não deixaria o cuspe escapar pelos seus lábios e escorrer na face da mulher. Estava morta de medo, entretanto Cibele, cabisbaixa, destacou-se no ambiente, e Cibele, mais do que qualquer outra, era a companheira perfeita para tentar escapar daquele inferno.

— Não precisa machucá-la — Cibele disse. — Ela só está assustada e confusa como qualquer uma de nós.

— Fique quieta, Cibele — rosnou Lisandra.

— É para isso que veio me buscar, não é? — Cibele insistiu. — Para me usar como exemplo pra elas. Não pode punir uma pessoa que ainda desconhece os riscos e as regras. Lobos devem ter algum senso de justiça, não? Ou são só bestas descerebradas e violentas?

Sasha voou de um lado a outro do recinto e bateu contra a parede. O impacto doloroso significou um alívio, pois inspirou profundamente, provocando outra crise de tosse, a sensação de bolo na garganta ainda persistia e por isso acariciou o pescoço. Nina e Lana empoleiraram-se sobre Sasha e as três assistiram, derrotadas, o momento em que Cibele desapareceu detrás do corpo robusto de Lisandra ao adentrar no corredor.

— Falhei — Sasha sussurrou. — Falhei com Cibele.

E não queria. Ergueu-se e correu na direção de Cibele. Enroscou-se na maldita camisola comprida e se estatelou. Levantou-se outra vez e suspendeu a saia longa do vestido. Vários “oh não” encheram o ambiente atrás dela como um coro, e feito um touro, Sasha disparou pelo corredor e acertou as costas de Lisandra.

— Ah não, caralho! — resmungou Cibele. E Sasha não conseguiu ouvir o que a amiga disse após isso, pois voou outra vez e se estatelou no meio do corredor largo.

Lisandra arfava e rosnava, corria na forma humana em sua direção com uma velocidade aterradora e feito um caminhão a atropelou. As garras se expandiram e tocaram dolorosamente sua barriga.

— Não — a voz masculina veio de algum lugar. — Não a machuque! — ordenou o desconhecido.

— Olavi, querendo bancar a heroína, essa vadia me desrespeitou.

Olavi arfava como um búfalo, rosnou algumas vezes, vinha na direção delas, logo atrás de Sasha. Ela se arrepiou com o som dos passos pesados e morosos, e o ronco produzido no fundo da garganta da besta. Ele falou alguma coisa num idioma estranho e perturbador, nada que Sasha tivesse ouvido antes. Inclinou a cabeça para trás, as mãos fortes de Lisandra pressionavam seus ombros contra o chão e apertaram-na ainda mais, as garras furaram sua carne. Sasha gemeu, suspirou e esforçou-se para ver a besta que demorava a se aproximar.

— Pierre decide — falou Olavi no idioma que Sasha e Cibele puderam compreender.

— Babaca! — grunhiu Lisandra e empurrou Sasha na direção dele.

O tecido rasgou num ruído áspero e as costas de Sasha arderam ao se arrastar pelo chão. A gota quente caiu sobre seu rosto, acima dela um lobo imenso, da mandíbula gotejava a saliva espessa e viscosa, os pés enormes e peludos ladeavam a cabeça dela.

Os ossos do monstro estalaram como galhos se quebrando, diminuiu em metade seu tamanho e a pelagem creme deu lugar para um longo cabelo loiro. Os lábios rosados se esticavam como se ensaiasse um sorriso e os olhos azuis eram transparentes como vidro.

A suspendeu pelos braços e a fez girar para ficar de frente para ele. O peito glabro era pálido e forte, e uma cicatriz com a forma de um raio descia desde o pescoço até o meio do abdômen definido. A mão grande pressionou a nuca de Sasha e fungou próximo ao ouvido dela, a farejava feito um cão.

Lisandra e Cibele passaram por eles, e Sasha percebeu a preocupação na expressão da amiga. Contudo, Olavi ronronou, manhoso, e a pressionou contra a parede, lambeu as feridas superficiais deixadas por Lisandra em seus ombros.

Confusa, não compreendia bem o momento, o longo tempo enclausurada produziu uma névoa perpétua em sua mente. E ainda que os homens não fossem seus preferidos, e houvesse um senso de lealdade que a atava a Amelia, permanecer tanto tempo presa tornava as carícias do lobo agradáveis. Davam vida a um cadáver.

Ele cheirava seu pescoço e respirava próximo ao ouvido dela como um animal selvagem. E a tristeza ampliava-se, a saudade de Amélia, o alvoroço moral a desnorteava. E os lábios de Olavi eram quentes e úmidos quando a beijou. O lobo creme se apresentava como um homem carinhoso. Não resmungava pela imobilidade de Sasha. Ela não retribuía ao beijo, nem massageava a língua que dançava dentro de sua boca, não se movia, não reagia.

— Por que me protegeu? — Sasha perguntou, um tanto perturbada.

Mais populares

Comments

Mila Naiff

Mila Naiff

E estranho, uma mistura de emoções ao ler a estória, raiva por tratarem as fêmeas como objetos, como cadelas de reprodução, e ao mesmo tempo fica o sentimento de expectativa que reajam e façam eles comem o pão que o diabo amassou, e fiquem literalmente de 4 por elas .....interessante.

2024-05-01

0

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!