O passado sempre falava em palavras mudas, como dedos cadavéricos a deixar pistas e rastros ao longo do percurso. Um quebra-cabeça de infinitas peças que, ao se perder a caixa, não sabia qual imagem formava. Exigia muita paciência, e o desafio era lidar com as peças, encaixá-las no lugar certo. De mesmo modo, lobisomens eram coisas do passado, seres medonhos presos em lendas antigas e fantasiosas, e justamente por isso, não havia a menor possibilidade de que Cibele estivesse vendo um no jardim.
Cibele sabia que precisava parar de beber. A fascinação com o estilo Tudor da mansão desfez-se na arrogância dos convidados da festa. E as emoções emergiram como borbulhas na sopa da solidão. Não queria estar ali, a rejeição corroía os ossos, mas Nina insistiu tanto. E o passado baforava em sua nuca como um fantasma aferrado a cobrando eternidade afora por cada minúscula dádiva que recebera, como se jamais tivesse merecido qualquer grão de felicidade sem que tivesse que pagar caro por isso.
As estrelas, pontinhos borrados e cintilantes, salpicavam no líquido escuro do cálice prateado competindo com outros brilhos fugazes dos postes elegantes do jardim, e Cibele o provou para se certificar. Vinho! Era mesmo, vinho, tinha se esquecido. Mas, não se esqueceu dos lumes. Como as estrelas, estavam no bosque, acendiam e se apagavam, como pisca-pisca de árvore de Natal. Não existiam. Não havia nada ali, o garçom garantiu antes de servir o cálice de... provou da bebida outra vez. Vinho!
"Não, não há olhos luminosos piscando na escuridão, senhorita. Desculpe-me, mas não os vejo."
Droga? Outro gole. Não, vinho.
Para além do caminho pavimentado com calcários, algo se movia entre a ramagem, e os enigmáticos olhos se acenderam outra vez, como duas bolinhas de gude luminescentes e ameaçadoras, enfeitavam a silhueta de uma cabeça canina imensa e peluda que a encarava entre as lanternas suspensas nos galhos. O que era aquilo? Sobressaltou-se e recuou um passo. Lobisomens não existiam. Estava delirando, bebeu demais. O medo desproporcional e irracional a sacudia desde as profundezas. Procurou pelos convidados ao redor, conversavam no jardim rodeados pela beleza e luxuosidade do lugar, indiferentes ao bosque adiante e seu suposto monstro. Estava bêbada a ponto de alucinar? Qual seu problema?
Avançou um passo, era uma mulher moderna e inteligente, nunca se deixou guiar pelo medo e muito menos por superstições. Além disso, a beleza da trilha orlada por candeeiros, assim como as lanternas suspensas nos arbustos ao longo da parede verde e viva que circundava o pequeno bosque coligado ao jardim, era convidativa. Parou por um momento, poderia ser alguns convidados divertindo-se, um grupo de pessoas alcoolizadas e devassas há pouco saltaram na piscina sem se preocupar com os trajes de gala. Não se surpreenderia de encontrar pervertidos fantasiados no jardim.
Era uma teoria, ao menos embora o garçom dissera com todas as letras de que não havia olhinhos luminescentes e rubros no bosque. Possível efeito da embriaguez, no entanto, jurou tê-los visto entre a ramagem. E a sensação incômoda de ser observada por algo, além dos convidados da festa, todos emoldurados por grifes, nomes importantes e desdém, a deixava tensa.
A riqueza de Nina a deixava tensa. O novo namorado de Nina e sua mansão a deixava tensa. Não conhecer ninguém naquela festa também. Havia um abismo entre eles, e nem o vestido de grife, nem as luvas aveludadas e nem o cálice de... outro gole... vinho... faziam-na sentir-se melhor. A escavação a faria. O túmulo de um possível governante e o material colhido e enviado para análise de carbono a fariam se sentir bem. Todavia, era final de semana, e a temporada de escavações havia terminado.
E Alan terminara o que nem começaram e o álcool não dissolvia o mal-estar deixado pelo maldito bilhete. Um bilhete! Sacudiu a cabeça, indignada. Não queria admitir nem para si, entretanto não dava mais para fingir de que estava cansada de empilhar relacionamentos fracassados no quartinho escuro do esquecimento.
A poucos metros Nina se dependurava no pescoço de Arthur, os cachos dourados roçavam brilhantes sobre a pele macia e alva das costas que o vestido longo e rosa não cobria, a medida que as risadas da amiga reverberavam pelo jardim, sufocando a música que vinha do interior do casarão. Cibele sabia o quanto Nina gostava de Arthur e aquela festa era um marco importante para a amiga que, após tantos meses de espera, havia sido convidada por aquele que jurou de pés juntos ser o amor da vida dela.
Arthur devia ser o vigésimo "amor da vida de Nina" desde que ambas se conheceram. A amiga, uma romântica incurável, conseguia se apaixonar e desapaixonar com velocidade espantosa. E toda vez era pra valer. Toda vez era o homem certo. Toda vez...
Seus sentidos gritavam para dar o fora. De novo. Se acenderam, se apagaram. Algo a vigiava com olhos brilhantes desde a escuridão. Nina estava feliz. Nina beijava Arthur. Olhos esquisitos e brilhantes piscavam no bosque para Cibele. Não podia estragar a noite. Precisava de mais... Tentou beber, o cálice secara.
— Venha ficar conosco.
Surpresa, Cibele se voltou para a moça que, simpática, abriu um sorriso acolhedor. A mulher era bela, belíssima. Não a beleza delicada e angelical de Nina, tampouco a formosura lúgubre e gótica de Cibele, vulgar a ponto de exigir certa condescendência do apreciador. Não, a mulher era uma obra de arte, o cabelo acobreado ornamentava o rosto como se Vênus de Botticelli tivesse ganhado vida e encarnado no ser diante de si, ostentando o pomo de ouro capaz de derrubar Troia, a reduzindo a uma mera mortal, pequena e sem graça, diante do deslumbramento de seu porte.
— Sou Adruna — esticou a mão para o cumprimento. — Notei que está sozinha há bastante tempo. — Focou Nina que, entregue aos beijos de Arthur, nem as notou. — Acho que sua amiga enfeitiçou Arthur a ponto de nem dar atenção aos convidados. — O cabelo caiu carmesim e vibrante na face ao se virar para Cibele outra vez. — Qual seu nome?
— Cibele Cellier.
Tomou o braço de Cibele e elogiou a beleza do nome, comentando sobre alguma outra Cibele que conheceu anteriormente e a guiou para dentro da casa. Caminhavam lentamente pelo salão, Cibele deixou o cálice vazio na bandeja do garçom. Mesas esparsas e cobertas por toalhas de veludo vermelhas que, embora mantivessem copos com bebidas e pratos com porções, estavam vazias. Alguns grupos pequenos de pessoas se reuniam em conversas animadas pelos cantos e não as notaram. Adruna abriu uma das várias portas de madeira nobre, maciças e entalhadas, espalhadas pelo recinto. E tão logo avançou para dentro da sala, todos os olhos se voltaram para Cibele.
Relaxados em sofás de cor creme, os homens desviaram a atenção de Cibele e voltaram a conversar como se nada houvesse acontecido. Outros próximos às janelas altas e arqueadas, bebericavam a bebida, indiferentes às duas mulheres. A sala tinha a forma de cruz e imensos lustres despencavam como uma cascata cristalina desde o teto abobadado. Adruna seguiu para um desses nichos que se expandiam desde o salão central e Cibele notou que havia pouquíssimas mulheres no local.
Sentado numa poltrona de veludo azul-marinho, confortável e elegante, elevava-se um pouco acima dos outros, que conversavam animados sentados em divãs que o cercavam, feito um rei rodeado por sua corte. De beleza viril e porte atraente... Lindo.
E o copo faltou.
Só mais um gole, mais um pouco de bebida. Onde estava o garçom? Precisava de algo que dissolvesse a rigidez dos músculos, apagasse os pensamentos confusos e impedisse que os olhos brilhantes nos arbustos tivessem surgido momentos antes.
Não havia garçom algum por perto e Cibele tornou a olhá-lo. Não conseguia se focar em qualquer outra coisa que não fosse os traços apessoados do rosto entediado, os cílios abundantes e escuros proporcionavam um contorno negro natural aos olhos dourados. O cabelo comprido e castanho estava preso num rabo frouxo, e embora estivessem os dedos e pulsos cobertos por ouro e pedras preciosas, nada nele era desarmônico. Algo estava errado, e o desconhecido sedutor se destacava. Queria ir embora, mas o único lugar adequado parecia ser o peito forte do formoso sentado em seu suposto trono.
Arrebatamento poderia ser o nome dado ao sentimento que atordoou Cibele, ainda que fosse um homem belo, não era exatamente a fisionomia que causava o desejo de se atirar nos braços dele. Não, não era físico, sequer racional. Como uma apaixonada, queria respirar o ar que ele respirava, tocá-lo para averiguar se havia calor na pele oliva, morrer sob o brilho áureo e selvagem de seu olhar. Um encantamento capaz de fazer com que tudo se dissolvesse ao redor, e nada mais houvesse do que borrões coloridos e as chamas delicadas das velas que se espalhavam nos vários candelabros que os circundavam.
E ele, altivo, sentado como um rei, escorado no braço de madeira esculpida da poltrona, coçando o queixo, em seu belo trono de veludo azul.
— Pierre — informou Adruna, risonha.
O tom de deboche de sua anfitriã agiu como se desse substância à sala, aos objetos e às pessoas ao redor, mesmo a chatice da música ambiente, que dava a impressão de estar num elevador, voltou a reverberar em seus ouvidos. Não sabia bem o motivo pelo qual se incomodou ao permitir que Adruna notasse a atração, como se fosse um contrassenso desejá-lo. Não devia ter bebido tanto e se arrependeu de ter aceitado o convite para a festa de Arthur e Nina pela milésima vez.
Havia algo de exótico em Pierre e o mesmo desconforto de horas antes, quando julgou ter visto olhos luminosos dentro do bosque pela primeira vez, a tomou no exato momento em que Adruna enroscou os braços no pescoço dele.
Sem desviar os olhos dourados de Cibele, Pierre cochichou no ouvido da mulher, sorriu e ao acariciar o rosto de Adruna, beijou seus lábios.
Eram namorados. Idiota! O chão se abriu sob seus pés. Desviou o olhar, apenas para tornar a encará-lo no segundo seguinte. Pierre ainda a observava por cima do ombro de Adruna. E Cibele respirou fundo, prendeu os pés firmemente no chão, desejando criar raízes para não se mover e ir ao encontro dele. O homem era dolorosamente irresistível.
Adruna se voltou para verificar onde a atenção do namorado estava depositada. Desconcertada pelo desejo de empurrar a ruiva para o lado e tomar o namorado dela para si, Cibele se virou. Bonito como a armação de madeira branca que segurava os vidros da janela arqueada destacava-se entre as estátuas de mármore, não havia cortinas. Cortinas eram uma chateação. O beijo de Adruna e Pierre um aborrecimento. E o vazio. A tristeza. O bilhete de despedida de Alan. O sítio arqueológico que levaria um século até abrir uma nova temporada. Arqueóloga. Onde estava com a cabeça?
Cadê o garçom?
A pulseira grossa de ouro não brilhava mais do que os olhos presos aos cantos, o movimento denunciava que o homem próximo à janela a analisava dos pés à cabeça. Que desassossego. Como se todos os olhos e brilhos fossem perigosos. Fugir?
Não havia muitas portas. No nicho do rei bonitão sequer havia uma! Abundavam as estátuas entre os candelabros, carrara, alabastro, e detalhes em folhas de ouro. Uma fortuna em decoração. Calmo e belo, como o lar de um milionário tinha de ser. No entanto, sentia estar em perigo como se estivesse presa em dois mundos. O físico, onde tudo acontecia com naturalidade e outro, imperceptível, onde criaturas terríveis retiradas de alguma lenda de terror a enchiam de um pavor injustificável.
Pierre. Caralho, por que não conseguia evitar olhá-lo? Por que tinha de ser tão sedutor? Como se de posse estivesse de uma potente força de atração e tudo no mundo tivesse de girar em torno dele, todos os seres tivessem que servi-lo e admirá-lo, inclusive ela, feito um deus.
Cibele deu um passo para o lado quando a taça suada e fria pressionou-se em sua mão. O cabelo longo e dourado emoldurava ondulante o rosto lívido e intensificava a heterocromia dos olhos aterradores, um dourado e outro safira. Um misto de beleza e poder emanava do homem sorridente que a abordou, e ela se sentiu desconfortável.
Brilhos... Olhos... Inferno!
Não queria pensar na confusão que se formava em seu âmago, mas desde que chegou na casa de Arthur não conseguiu se sentir à vontade, a beleza sobrenatural daquele pessoal a tonteava, tudo e todos pareciam informar em palavras mudas de que estava no lugar e no momento errados. E não fosse pelo desejo intenso de não magoar Nina, não estaria ali.
— É champanhe — ele falou, ao notar o desconforto de Cibele. — Não precisa sentir medo de nós.
— Não estou com medo — Cibele levou a bebida à boca, incomodada com a constatação do homem.
Sentiu um arrepio na espinha e os pelos eriçaram assim que o homem deslizou lentamente a ponta do nariz em seu pescoço e sussurrou ao pé do ouvido.
— Você cheira medo.
Cibele afastou um passo e o encarou. Como sabia que estava com medo? Sim, estava bebendo havia várias horas e embora estivesse levemente embriagada, ainda conseguia raciocinar o suficiente para saber que havia algo de errado naquele comentário. Colocou uma mecha do longo cabelo preto atrás da orelha e endireitou a coluna, nem que quisesse ficaria na mesma altura do homem forte a sua frente, ainda assim estufou o peito feito um gladiador romano, esquisito dentro do decote acentuado do vestido preto e brilhante, e tudo o que conseguiu com sua postura foi um riso espontâneo e divertido de seu oponente, que ao enlaçar Cibele pela cintura, a apertou contra si.
— Você é linda. — Levou o copo à boca dela. — Beba. Isso ajudará a perder a timidez.
A bebida era amarga e suplantou o adocicado deixado pelo champanhe. Com a cabeça apoiada na de Pierre, Adruna sorriu e gesticulou incentivando Cibele a ficar com o rapaz. Talvez fosse o líquido oferecido pelo desconhecido, ou todas as bebidas ingeridas até o momento tivessem feito um efeito abrupto, cabeceou e derrubou o champanhe sobre o peito dele, que tomando a taça da mão dela, entregou para a pessoa ao lado.
— O que tinha na sua bebida? — Cibele perguntou e recostou a cabeça no peito forte, incapaz de sustentar seu peso.
— Uísque — respondeu e colocou o copo na boca dela outra vez.
Cibele balançou a cabeça em negativa, nauseada.
— Dê mais um gole. Quero te provar que é só uísque.
O focou, desconfiada.
— Qual seu nome?
— Yan. — Bebeu da própria bebida. — Viu? Também estou bebendo do meu uísque. — Tornou a colocar a borda do copo nos lábios dela.
As pupilas dilataram, deixando os contornos safira e dourado ainda mais finos, e Yan muito mais bonito, quando o amargor da bebida se espalhou na boca outra vez. Poderia estar bêbada demais, ainda assim estava certa de que aquilo tinha gosto de tudo, menos de uísque. Ameaçou cuspir, porém, a boca rosada apertou-se nos lábios de Cibele, e engoliu o líquido hediondo a fim de receber o beijo inesperado. As pálpebras se fecharam sem dificuldade, o corpo amolecia nos braços firmes que a sustentavam, uma escuridão abrupta afastava todos os pensamentos e o sono era irresistível. Cibele fez um grande esforço para balbuciar que não se sentia bem.
— Está tudo bem, Cibele. Eu vou cuidar de você.
Os trovões explodiam e o som insistente de um gotejamento ecoava nas paredes embebidas e lodosas. A cabeça girava e doía, e a grade, que a mantinha presa na cela minúscula, permitia ver Nina inconsciente na alcova adiante. Cibele elevou a ponta do vestido branco e comprido, semelhante a uma camisola vitoriana, de mangas longas, três botões no colo e gola alta com babados. Quem a vestiu? Onde estavam suas roupas? Sua bolsa? Seus pertences?
Alguém chorava e fungava na cela ao lado. Murmurava palavras ininteligíveis. Cibele se levantou da cama rústica, os pés tocaram o chão úmido e frio, e uma escuridão, tão deprimente quanto suas sensações, permeava o cubículo e fugia da luminosidade tênue que avançava pelo portão. Segurou a grade feita com ferros grossos e enegrecidos, e tentou espiar pelo corredor iluminado por lampiões dependurados em suportes na parede. Nenhum som que denunciasse movimento ou a presença de possíveis carcereiros.
Sentou-se e abraçou os joelhos. No que pensar? E a imagem de Pierre sentado na poltrona de veludo, acima de todos, encantador e misterioso, emergiu à mente. Cibele se sobrecarregou de incertezas. Ainda que o choro do desespero se fechasse na garganta, um estranho sentimento fomentava em seu íntimo. Desejo. Atração. Ainda estava drogada? Pois não fazia sentido algum pensar nele com tanto anseio e expectativa. Vê-lo de novo? Onde estava com a cabeça? Enclausurada numa jaula como estava, tinha de pensar em como sair dali, e não se o veria novamente!
Nina bocejou e se moveu. E alegrou-se quando a amiga se levantou. Vestia uma camisola similar, os cabelos dourados escorriam sobre o corpo esguio, cambaleou, confusa, e se apoiou nas grades.
— Nina! — Cibele chamou e correu de volta ao portão. Segurou os cilindros de ferro e encaixou a cabeça entre o vão, numa fútil tentativa de se aproximar. — Nina, o que faremos?
A amiga mantinha um olhar vazio, como se estivesse sofrendo de sonambulismo. Nina escorou a cabeça contra as grades, levou as mãos à barriga e se dobrou. O vômito umedeceu a barra do vestido. E apoiando-se nas travas de ferro, Nina se sentou com dificuldade sobre a poça repugnante e se recostou contra a parede. Cibele a chamou mais algumas vezes, perguntou o que estava acontecendo, se estava bem, mas Nina não reagia.
— Está drogada — resmungou a mulher na cela ao lado. — Não adianta, não há nada que possa fazer por sua amiga.
— Onde estamos? — Cibele perguntou. — Quem nos mantém presas?
A mulher riu como se tivesse ouvido uma piada.
— Não sei quem são.
— Qual seu nome?
— Lana. E o seu?
— Cibele. Há quanto tempo está aqui?
— Não faço a menor ideia. É sempre escuro, não há uma fenda sequer por onde a luz natural possa entrar e nunca estou acordada quando deixam a comida. Só vi alguns deles aqui quando vieram buscar as outras moças e depois quando trouxeram vocês. Mas, tenho a impressão de que estão aqui o tempo todo, porque embora não haja qualquer conforto e essa prisão é mais úmida e imunda do que um chiqueiro, estou sempre limpa.
— O que acha que quer conosco?
— Não sei. Minha única esperança é que não fique aqui por muito tempo. Aceitaria qualquer coisa para não ter que viver nesse porão nojento.
Cibele repassou as memórias, havia um grande lapso entre o momento em que Adruna a guiou até a sala, bebeu da bebida amarga de Yan e tudo se apagou. Estava com medo, não precisava muito para compreender a situação na qual se encontrava. Não, não era uísque, tinha sido drogada. E agora estava presa numa masmorra desagradável. Gritou por socorro a pleno pulmões. E Lana gargalhou do outro lado da parede.
— Não adianta berrar feito uma idiota. Acredite, eu berrei por vários dias e ninguém apareceu para me salvar. E não há como fugir.
Cibele gritou uma e outra vez, agarrada às grades, tentava sacudi-las, embora não se movessem sequer um milímetro.
— Cale a boca! — vociferou outra voz feminina.
E conscientizou-se de que havia várias celas como aquela ao longo do corredor. As grades negras se destacavam na forma arqueada da parede que ganhava um tom arenoso sob o rubro das lâmpadas. E, no fundo do corredor, alguém se movia numa das alcovas, e metais batiam contra a pedra, ainda que o tilintar persistente a fizesse acreditar que talvez alguém pudesse estar preso às correntes, o ruído era mais peculiar, como um ourives a laborar em pesadas joias. O aroma de metal incandescente e fumaça davam consistência à hipótese, embora fosse impossível que um artesão estivesse trabalhando num lugar tão decadente.
Cibele não sabia o que pensar, do mesmo modo que não soube dizer quanto tempo se passou até que adormeceu. E quando acordou, algo estava diferente com seus sentidos. O gotejar insistente, o chispar das lamparinas, as vasilhas vazias empilhadas no canto da cela e o mal-estar no estômago assinalavam de que estava num estado de embriaguez no qual nem soube como alcançou.
Outro lapso de memória.
E a sensação de ter vivido algo no período em que ficou hipoteticamente inconsciente, entretanto, era fugidio, e quanto mais tentava se recordar, mais escapava. Como quando se está prestes a dizer uma palavra e do nada a esquece. Um grande esforço se faz necessário para relembrar o que ia falar, a palavra escorrega até a ponta da língua, mas a perde, às vezes para sempre, outras para se lembrar noutro momento quando não mais precisa dela. Essa exata sensação! De que viveu e esqueceu. De algo que se perdeu na travessia de um momento para o outro seguinte. E sempre que isso ocorria, a imagem de Pierre ressurgia, ainda sentado na poltrona requintada, de olhar entediado, ou enroscado nos braços de Adruna.
Incomodava, porque Pierre não aparecia como uma lembrança, sempre arrastava atrás de si uma estranha gama de emoções, como uma assombração a arrastar correntes em casa abandonada. Feito fantasma, Pierre estava e não estava lá. O bonitão não era uma imagem simples de um instante no passado, era concreto como se jamais tivesse ficado ausente. E como um desconhecido havia se tornado tão relevante? Via-se dividida entre sentir raiva por acreditar que Pierre estivesse envolvido com o sequestro, e se apegar à esperança de que sairia dali e o encontraria em algum pub sem que o gato soubesse do incidente.
Loucura! O tédio e a penumbra a endoidavam. Impossível acreditar que Pierre e Adruna não estivessem de conluio com Arthur. A vagabunda foi quem a levou à sala e ainda a incentivou a dar atenção para Yan. Talvez Pierre não soubesse da intenção de sua namorada e o amigo dela, mas algo se remexia dentro de Cibele ao considerar aquilo, tinha quase certeza de que o bonitão estava envolvido.
— Tem uma moça nova na cela da frente — uma mulher anunciou de uma das alcovas do corredor, que Cibele não conseguia ver.
— Outra? — perguntou Lana.
— Tenho certeza de que essa cela estava vazia até antes de me deitar para dormir — a desconhecida afirmou.
Silenciaram.
Por que juntavam aquelas mulheres? Como entravam e saíam sem que ninguém visse coisa alguma? Fitou as tigelas vazias e não se lembrava quando comeu, nem quando trouxeram o alimento. As lacunas na memória a agonizava mais do que não saber o que queriam.
Nina dormia, encolhida feito um feto no piso frio. Lana cantava e quando se cansava de suas canções, reclamava e xingava, batia a caneca de alumínio contra as grades, gritava para que a libertassem. E se cansava. Fungava e chorava por um longo período e mandava Cibele calar a boca sempre que tentava falar com ela.
Não havia nada para ocupar a mente e fazer o tempo passar. Pressionando os joelhos contra o peito, Cibele se imaginava em sua casa, cheia de sol, com o gato a circular preguiçoso sobre os móveis. Alan sentiria a falta dela? Estava tão decidido em terminar o namoro, que nunca começou, que cogitar que sentisse sua ausência era tolice. E ressentiu-se por não desejar lembrar do que conseguia, socando e retesando o choro na garganta outra vez. Não queria se sentir um monstro desprezível de novo, pois isso sentiu ao ler o maldito bilhete, Alan a achava insuportável, asquerosa. Não, não a procuraria. E a dor da rejeição estourou no estômago como úlceras e nauseou.
Enumerou as pessoas que poderiam dar por sua falta e acionar a polícia para procurá-la. Nina! Sim, o pai de Nina era muito protetor, com certeza moveria mundos e fundos para encontrá-la, e o primeiro lugar em que buscaria a filha seria na casa de Cibele e logo constataria que ambas desapareceram. E se o Sr. Aluísio não buscasse pela filha, os colegas de trabalho se avultariam para saber de seu paradeiro. E acalmou-se por um instante. Lá fora alguém procurava por elas, e seriam encontradas. Precisava acreditar nisso. Precisava!
Arthur devia ter algo a ver com aquilo. A casa era dele, afinal, e as convidou para a festa detestável. E atormentou-se com o que viria acontecer, a esperança desvaneceu-se. O mundo era imenso e poderiam estar em qualquer lugar, muito longe de casa. Não sabia o que pensar. Embora suspeitasse que Adruna, Arthur e Yan estivessem envolvidos com aquilo, não os conhecia.
O que Nina disse sobre Arthur? Um homem bem-sucedido, equilibrado, que viajou o mundo e sempre falava sobre assuntos profundos. E sobre o sexo, repetiu milhares de vezes que nunca transou com alguém como ele. Sacudiu a cabeça ao se lembrar dos detalhes contados pela amiga. E de tudo aquilo, o que pensar? Por que Arthur as sequestraria? Cibele nem dinheiro tinha.
Nina. Sim, Nina era rica. Talvez fosse isso. Não deixaria a festa sem a amiga e resolveram a prender também. E todas aquelas mulheres nas outras celas? E a camisola esquisita que vestia? E se Arthur e seus amigos fossem malucos de alguma seita? O coração de Cibele disparou com a ideia de serem sacrificadas em rituais macabros.
— Lana — chamou, apreensiva.
— O que é? — grunhiu a outra.
— Como veio parar aqui?
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