Sinestesia

Sinestesia

Você não merece ser herói!

A vida no fundamental para Jess sempre foi muito complicada, após a morte de seus pais e sua irmã mais nova, ela foi morar com sua tia em outra cidade. Talvez morar seja uma palavra muito forte, a verdade é que como sua tia era empresária de um famoso super herói europeu, ela chegava a passar um ano inteiro viajando e deixando a garota se virar sozinha e de fato Jess preferia assim pois sua tia não era a pessoa mais interessante do mundo, muito pelo contrário, era uma indiferente e nada amistosa mulher, cujo todos os comentários que saiam de sua boca visavam ofender alguém ou massagear  próprio ego, muito diferente dos pais da garota que eram muito gentis e amáveis, além de terem sido ótimos super-heróis, o que veio a servir de inspiração para a garota no futuro.

O sol quente de verão era o que ela mais gostava, sempre sentia um cheiro de areia molhada quando os raios solares encontravam sua delicada pele. Caminhava de cabeça baixa chutando pequenas pedrinhas que apareciam em seu caminho, enquanto sua mente vagava sobre suas antigas memórias, como a vez em que descobriu que possuía sinestesia, sentada na mesa de jantar, em seus plenos seis anos, comendo comida pronta esquentada por sua tia. Comida requentada sempre tinha um gosto verde musgo, como o de meleca e isso deixava Jess enjoada e se perguntando como sua tia conseguia comer algo com um gosto tão verde e melequento e foi quando sua tia num de seus acessos de raiva, lhe acertou o rosto com um tapa gritando para a criança que "não existe gosto de cor, cores são cores e gostos são gostos". Mesmo sem saber exatamente qual era seu problema, essa era a primeira vez que Jess havia notado que era diferente das demais pessoas e isso a assustava, pois a política de "perfeição" para se tornar um super herói estava em alta e talvez isso pudesse a impedir de alcançar seus sonhos.

Pior do que ser um "comum", era ser um "estragado", alguém que possuía peculiaridades genéticas, como no caso de Jess, mas que era portador de algum tipo de transtorno ou deficiência. O termo "estragado" e "genes podres" eram as formas mais comuns de se referir as pessoas com os problemas citados, os "comuns" eram aquelas que não possuíam peculiaridade alguma ou cujo ela era muito fraca ou simples até mesmo para ser usada no dia a dia, cerca de metade da população. Já em contra partida as duas camadas sociais citadas, haviam também os "especiais", que possuíam habilidades peculiares que serviam a sociedade. E acima de todos estavam os "brilhantes", que se diziam que o próprio Deus havia forjado seus genes a mão, pessoas com peculiaridades consideradas perfeitas, esses em sua maioria tendiam a seguir dois caminhos; Ou se voltavam ao caminho do heroísmo, cursando uma academia no lugar do ensino médio, voltada na formação de super heróis, ou se tornavam vilões, usando de suas peculiaridades para benefício próprio.

Quanto mais próxima da escola ela chegava, mais a ansiedade tomava conta de seu corpo, sempre cobrindo a cabeça com o capuz de sua blusa e abaixando ainda mais a cabeça, pois a qualquer momento as brincadeiras sem graça começariam. Ela acreditava ser merecedora dos empurrões e humilhações, afinal, havia nascido uma estragada, era naturalmente inferior aos demais, mas acreditava que mesmo com essa desvantagem, seu esforço a tornaria uma respeitada super heroína no futuro e isso era o que lhe dava motivos para continuar seguindo.

Por um momento de descuido, sentiu um forte empurrão em seu peito que a fez cair sentada para trás, dando uma arfada. Ao levantar a cabeça, viu Marie, a garota invisível de sua sala, ficando visível novamente, com suas mãos na cintura e um sorriso no rosto, esse era seu cumprimento diário a Jess. Mas os empurrões dela não doíam metade do que eram capazes de machucar os comentários de Aiko, a chefe do grupinho mais popular do colégio.

- Pergunta para ela qual o cheiro de ser empurrada. - Falou Aiko a alguns passos dali, segurando seus livros nos braços, jogando seus cabelos pretos sem brilhos para fora do olho, as outras garotas, inclusive a que lhe empurrou deram risadas e seguiram seu caminho para dentro da escola. Jess se levantou, batendo nas calçar para tirar a poeira, com várias crianças que também estavam indo para a escola lhe observando, rindo do que haviam feito com ela. Seu maior desejo era que ir para algum lugar onde ninguém soubesse que ela era uma estragada, onde poderia ser tratada igual a todos, as vezes acreditava que se ninguém tocasse no assunto, todos acabariam esquecendo de sua condição especial, mas seus planos e desejos eram estragados diariamente pelo grupinho de Aiko, mas as coisas estavam prestes a mudar pois faltavam poucas semanas para o fim do ensino fundamental e então ela entraria numa Academia, onde ninguém saberia que era uma estragada e assim ela seria tratada normalmente, como todos e julgada apenas por seu esforço, não por como havia nascido.

Ela esperava do lado de fora dos portões até o sinal bater, ela não gostava da textura que ele tinha quando tocava, era como se algo estivesse arranhando a pele dela com uma agulha muito fina e tudo ficava avermelhado a sua volta.

Seu lugar era a primeira carteira ao lado da porta, assim ela chegava quieta e se sentava rapidamente.

Ao ver que a professora ainda não estava na sala, Jess ficou um pouco aflita e não era sem movito, Aiko havia se levantado de seu lugar e passou por ela acertando um tapa em sua nuca, aquela garota era malvada. Ela ficou parada na porta olhando para o lado de fora, buscando a professora com seu olhar e não tardou ao ver ela, caminhando acompanhada de Rainbow, a garota mais popular do colégio e possivelmente de toda a cidade. Havia recebido o apelido por conta de seus cabelos rosas que mudavam de cor conforme usava sua peculiaridade genética, lembrando um Arco Íris, mas seu nome era Emanuelle e os professores a chamavam de Manu.

Ao ver a professora caminhando e conversando com sua rival, Aiko revirou os olhos e foi para o seu lugar, dessa vez ignorando totalmente Jess. Assim que entrou na sala, Rainbow olhou em sua direção, com seu sorriso amistoso e lhe fez um sinal de cumprimento, como sempre fazia, levantando dois dedos num sinal de "V", que Jess ficava envergonhada e muitas das vezes não conseguia responder com nada além de um sincero sorriso de volta.

Faziam cinco anos que secretamente Manu tentava se aproximar de Jess, mas sua jovialidade não era capaz de entender que a garota era simplesmente muito tímida e suas ações de poucas palavras, não significavam que ela queria ficar sozinha mas sim que não sabia como agir perto de alguém que ela praticamente idolatrava. Infelizmente para ambas, sua diferença enorme de personalidade acabou por lhes manter separada por todo o ensino fundamental, algo que nada poderia ser feito agora pois seus caminhos já estavam fatalmente separados, pois Rainbow era tão boa super heroína quanto era popular, com sua peculiaridade "perfeita", não havia dúvidas de que sua vaga estava mais do que garantida em qualquer academia do país, até mesmo na prestigiosa Coração Valente, enquanto que Jess sonhava em conseguir talvez entrar em alguma academia no interior do país, onde as exigências fossem menores e fosse mais fácil dela esconder seus "genes podres", pois mesmo que sua peculiaridade da criação de luz fosse considerada perfeita, sua condição somada ao péssimo domínio de sua peculiaridade, projetavam um futuro que não lhe agradava nem um pouco.

A aula passou de forma monótona, até finalmente chegar o horário do intervalo, este que Jess abominava pois era o momento que as outras crianças mais pegavam em seu pé, então ela simplesmente optava por continuar dentro da sala, pegando o livro em sua mochila sobre desenvolvimento de peculiaridade e ali permanecia até a aula continuar, mas hoje era um dia atípico.

Após alguns minutos a porta da sala de abriu e tanto Aiko quanto Marie colocaram suas cabeças para verificar a sala e ali estava sua presa, as duas entraram e deixaram a porta aberta.

Como seu lugar era a primeira carteira, as duas garotas já estavam em pé ao lado de sua carteira sem que ela tivesse tido tempo de fazer qualquer coisa.

- Parece que achamos uma ratinha escondida. - Falou a garota oriental de forma sarcástica. Não houve resposta alguma da passiva Jess, que jamais as enfrentava. A garota levou a mão até o livro que estava em sua carteira e o pegou pela ponta, como se tivesse nojo daquilo. - "Como desenvolver sua peculiaridade", esse é o tipo de lixo que gente fracassada procura para tentar ser igual nós.

Marie gargalhou e deu alguns passos para trás, se sentando na mesa ao lado de Jess e batendo no livro com uma das mãos, o fazendo cair no chão.

- Solta essa coisa Aiko, vai saber o que essa esquisita tava fazendo com ele. - Ela disse ajeitando seus perfeitos caracóis curtos e louros, sua amiga deu risada e limpou a mão no cabelo de Jess.

- Do jeito que ela é toda estragada, não me surpreenderia se sentisse tesão lendo, não é, ratinha?

Ela falou e segurou o cabelo de Jess, esperando uma resposta, mas ela permanecia quieta e apenas a observava, ela sabia que Jess não estava sedendo, ela apenas escolhia não as enfrentar e nada do que elas faziam era capaz de provocar uma reação na garota que tinha um auto controle excepcional.

- Eu falei com você, sua tapada! - Ela segurou com mais força o cabelo dela e bateu sua cabeça contra a carteira, na hora do impacto, gotas de sangue mancharam todo o local, isso assustou até mesmo Marie que não esperava uma reação tão violenta de sua colega.

- Calma, Aiko. - Ela falou, mas foi totalmente ignorada, como se tivesse cega por um ódio irracional, ela ergueu Jess pelo cabelo a fazendo ficar em pé, o corte em sua sombrancelha estava escorrendo sangue mas ela permanecia quieta e encarava Aiko. Seu olho teve um breve lampejo de iluminação, que foi quando ela acreditou que finalmente tinha vencido toda essa calma forçada e conseguiria ter uma briga de verdade com ela mas aquilo não passou de um lampejo rápido e não houve reação alguma por parte dela.

Ficando ainda mais irritada, ela lhe pegou pela gola da camisa e puxou para bem perto, forçando sua testa contra a dela.

- Sua fracassada, você não merece ser heroína, você não será uma heroína.

Ela a jogou novamente sentada na cadeira e levantou uma de suas mãos, isso era demais até mesmo para Marie que via aquilo uma simples diversão as custas de uma "gene podre", não queria agredir ela de maneira tão bruta e teria parado Aiko ela própria, se uma mão rosa com pouco mais de um metro não tivesse parado o soco da garota e a empurrado para trás.

- Quem não merece ser nada é você, seu monstro! - A inconfundível voz de Rainbow chamou a atenção de todos para a porta da sala. Seus olhos brilhavam num tom rosa e seus cabelos da mesma cor flutuavam como se estivessem vivos.

- Vamos embora, Aiko! - Ela puxou a amiga pelo braço a arrastando para fora, sendo fuziladas pelo olhar imponente e acusador que Rainbow lhes dava. Quando finalmente saíram, ela deu alguns passos até a mesa de Jess, que estava de cabeça baixa, a garota com seu toque delicado levantou seu rosto, o corte havia sido profundo mas a ferida na alma daquela garota, tinha sido pior ainda. Seus olhos estavam cheios de lágrimas mas ela se recusava a chorar, não queria ceder para ela. Num ato de emotividade, Manu a abraçou com força, escondendo o rosto dela para que as lágrimas pudessem enfim cair.

- Por que você não acaba com elas, Jess?

- Elas não estão comentando nenhum crime, não posso usar meus poderes com entra elas.

Apesar de todo a angústia e raiva que sentia naquele momento, o abraço dela era o local mais acolhedor que ela já havia sentido em toda sua vida, nem os braços de sua mãe ela se lembrava de serem tão aconchegantes, era sentia um cheiro suave de Lírio, um calor por todo seu corpo, sentia um gosto doce e picante na boca, como chocolate apimentado, suas vistas inundadas hora por um rosa lilas, hora por um vermelho sangue, além do toque suave de pele que eram como nuvens feitas para os próprios anjos, nesses momentos de intensas atividades cerebrais que Jess não se importava de ter sinestesia, muito pelo contrário, sentia que não seria um momento tão bom e marcante quanto era, caso ela não tivesse nascido "estragada".

Infelizmente o abraço teve de terminar uma hora, para que Manu a levasse até a enfermaria pois o corte havia sido realmente muito feio.

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Comments

Rosi Silva

Rosi Silva

bom...

2023-02-25

2

Higanbana

Higanbana

Na cabecinha inocente da Jess, isso é apenas uma "brincadeira", como tratam isso como algo normal, ela se vê como a errada, por dar motivo para as "brincadeiras" acontecerem. Quem sofre bullying sempre sente muita culpa.

2023-02-15

1

Higanbana

Higanbana

Talvez ela só queira ser notada pela pequena Jessita kkkkk

2023-02-15

1

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