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Sinestesia

Você não merece ser herói!

A vida no fundamental para Jess sempre foi muito complicada, após a morte de seus pais e sua irmã mais nova, ela foi morar com sua tia em outra cidade. Talvez morar seja uma palavra muito forte, a verdade é que como sua tia era empresária de um famoso super herói europeu, ela chegava a passar um ano inteiro viajando e deixando a garota se virar sozinha e de fato Jess preferia assim pois sua tia não era a pessoa mais interessante do mundo, muito pelo contrário, era uma indiferente e nada amistosa mulher, cujo todos os comentários que saiam de sua boca visavam ofender alguém ou massagear  próprio ego, muito diferente dos pais da garota que eram muito gentis e amáveis, além de terem sido ótimos super-heróis, o que veio a servir de inspiração para a garota no futuro.

O sol quente de verão era o que ela mais gostava, sempre sentia um cheiro de areia molhada quando os raios solares encontravam sua delicada pele. Caminhava de cabeça baixa chutando pequenas pedrinhas que apareciam em seu caminho, enquanto sua mente vagava sobre suas antigas memórias, como a vez em que descobriu que possuía sinestesia, sentada na mesa de jantar, em seus plenos seis anos, comendo comida pronta esquentada por sua tia. Comida requentada sempre tinha um gosto verde musgo, como o de meleca e isso deixava Jess enjoada e se perguntando como sua tia conseguia comer algo com um gosto tão verde e melequento e foi quando sua tia num de seus acessos de raiva, lhe acertou o rosto com um tapa gritando para a criança que "não existe gosto de cor, cores são cores e gostos são gostos". Mesmo sem saber exatamente qual era seu problema, essa era a primeira vez que Jess havia notado que era diferente das demais pessoas e isso a assustava, pois a política de "perfeição" para se tornar um super herói estava em alta e talvez isso pudesse a impedir de alcançar seus sonhos.

Pior do que ser um "comum", era ser um "estragado", alguém que possuía peculiaridades genéticas, como no caso de Jess, mas que era portador de algum tipo de transtorno ou deficiência. O termo "estragado" e "genes podres" eram as formas mais comuns de se referir as pessoas com os problemas citados, os "comuns" eram aquelas que não possuíam peculiaridade alguma ou cujo ela era muito fraca ou simples até mesmo para ser usada no dia a dia, cerca de metade da população. Já em contra partida as duas camadas sociais citadas, haviam também os "especiais", que possuíam habilidades peculiares que serviam a sociedade. E acima de todos estavam os "brilhantes", que se diziam que o próprio Deus havia forjado seus genes a mão, pessoas com peculiaridades consideradas perfeitas, esses em sua maioria tendiam a seguir dois caminhos; Ou se voltavam ao caminho do heroísmo, cursando uma academia no lugar do ensino médio, voltada na formação de super heróis, ou se tornavam vilões, usando de suas peculiaridades para benefício próprio.

Quanto mais próxima da escola ela chegava, mais a ansiedade tomava conta de seu corpo, sempre cobrindo a cabeça com o capuz de sua blusa e abaixando ainda mais a cabeça, pois a qualquer momento as brincadeiras sem graça começariam. Ela acreditava ser merecedora dos empurrões e humilhações, afinal, havia nascido uma estragada, era naturalmente inferior aos demais, mas acreditava que mesmo com essa desvantagem, seu esforço a tornaria uma respeitada super heroína no futuro e isso era o que lhe dava motivos para continuar seguindo.

Por um momento de descuido, sentiu um forte empurrão em seu peito que a fez cair sentada para trás, dando uma arfada. Ao levantar a cabeça, viu Marie, a garota invisível de sua sala, ficando visível novamente, com suas mãos na cintura e um sorriso no rosto, esse era seu cumprimento diário a Jess. Mas os empurrões dela não doíam metade do que eram capazes de machucar os comentários de Aiko, a chefe do grupinho mais popular do colégio.

- Pergunta para ela qual o cheiro de ser empurrada. - Falou Aiko a alguns passos dali, segurando seus livros nos braços, jogando seus cabelos pretos sem brilhos para fora do olho, as outras garotas, inclusive a que lhe empurrou deram risadas e seguiram seu caminho para dentro da escola. Jess se levantou, batendo nas calçar para tirar a poeira, com várias crianças que também estavam indo para a escola lhe observando, rindo do que haviam feito com ela. Seu maior desejo era que ir para algum lugar onde ninguém soubesse que ela era uma estragada, onde poderia ser tratada igual a todos, as vezes acreditava que se ninguém tocasse no assunto, todos acabariam esquecendo de sua condição especial, mas seus planos e desejos eram estragados diariamente pelo grupinho de Aiko, mas as coisas estavam prestes a mudar pois faltavam poucas semanas para o fim do ensino fundamental e então ela entraria numa Academia, onde ninguém saberia que era uma estragada e assim ela seria tratada normalmente, como todos e julgada apenas por seu esforço, não por como havia nascido.

Ela esperava do lado de fora dos portões até o sinal bater, ela não gostava da textura que ele tinha quando tocava, era como se algo estivesse arranhando a pele dela com uma agulha muito fina e tudo ficava avermelhado a sua volta.

Seu lugar era a primeira carteira ao lado da porta, assim ela chegava quieta e se sentava rapidamente.

Ao ver que a professora ainda não estava na sala, Jess ficou um pouco aflita e não era sem movito, Aiko havia se levantado de seu lugar e passou por ela acertando um tapa em sua nuca, aquela garota era malvada. Ela ficou parada na porta olhando para o lado de fora, buscando a professora com seu olhar e não tardou ao ver ela, caminhando acompanhada de Rainbow, a garota mais popular do colégio e possivelmente de toda a cidade. Havia recebido o apelido por conta de seus cabelos rosas que mudavam de cor conforme usava sua peculiaridade genética, lembrando um Arco Íris, mas seu nome era Emanuelle e os professores a chamavam de Manu.

Ao ver a professora caminhando e conversando com sua rival, Aiko revirou os olhos e foi para o seu lugar, dessa vez ignorando totalmente Jess. Assim que entrou na sala, Rainbow olhou em sua direção, com seu sorriso amistoso e lhe fez um sinal de cumprimento, como sempre fazia, levantando dois dedos num sinal de "V", que Jess ficava envergonhada e muitas das vezes não conseguia responder com nada além de um sincero sorriso de volta.

Faziam cinco anos que secretamente Manu tentava se aproximar de Jess, mas sua jovialidade não era capaz de entender que a garota era simplesmente muito tímida e suas ações de poucas palavras, não significavam que ela queria ficar sozinha mas sim que não sabia como agir perto de alguém que ela praticamente idolatrava. Infelizmente para ambas, sua diferença enorme de personalidade acabou por lhes manter separada por todo o ensino fundamental, algo que nada poderia ser feito agora pois seus caminhos já estavam fatalmente separados, pois Rainbow era tão boa super heroína quanto era popular, com sua peculiaridade "perfeita", não havia dúvidas de que sua vaga estava mais do que garantida em qualquer academia do país, até mesmo na prestigiosa Coração Valente, enquanto que Jess sonhava em conseguir talvez entrar em alguma academia no interior do país, onde as exigências fossem menores e fosse mais fácil dela esconder seus "genes podres", pois mesmo que sua peculiaridade da criação de luz fosse considerada perfeita, sua condição somada ao péssimo domínio de sua peculiaridade, projetavam um futuro que não lhe agradava nem um pouco.

A aula passou de forma monótona, até finalmente chegar o horário do intervalo, este que Jess abominava pois era o momento que as outras crianças mais pegavam em seu pé, então ela simplesmente optava por continuar dentro da sala, pegando o livro em sua mochila sobre desenvolvimento de peculiaridade e ali permanecia até a aula continuar, mas hoje era um dia atípico.

Após alguns minutos a porta da sala de abriu e tanto Aiko quanto Marie colocaram suas cabeças para verificar a sala e ali estava sua presa, as duas entraram e deixaram a porta aberta.

Como seu lugar era a primeira carteira, as duas garotas já estavam em pé ao lado de sua carteira sem que ela tivesse tido tempo de fazer qualquer coisa.

- Parece que achamos uma ratinha escondida. - Falou a garota oriental de forma sarcástica. Não houve resposta alguma da passiva Jess, que jamais as enfrentava. A garota levou a mão até o livro que estava em sua carteira e o pegou pela ponta, como se tivesse nojo daquilo. - "Como desenvolver sua peculiaridade", esse é o tipo de lixo que gente fracassada procura para tentar ser igual nós.

Marie gargalhou e deu alguns passos para trás, se sentando na mesa ao lado de Jess e batendo no livro com uma das mãos, o fazendo cair no chão.

- Solta essa coisa Aiko, vai saber o que essa esquisita tava fazendo com ele. - Ela disse ajeitando seus perfeitos caracóis curtos e louros, sua amiga deu risada e limpou a mão no cabelo de Jess.

- Do jeito que ela é toda estragada, não me surpreenderia se sentisse tesão lendo, não é, ratinha?

Ela falou e segurou o cabelo de Jess, esperando uma resposta, mas ela permanecia quieta e apenas a observava, ela sabia que Jess não estava sedendo, ela apenas escolhia não as enfrentar e nada do que elas faziam era capaz de provocar uma reação na garota que tinha um auto controle excepcional.

- Eu falei com você, sua tapada! - Ela segurou com mais força o cabelo dela e bateu sua cabeça contra a carteira, na hora do impacto, gotas de sangue mancharam todo o local, isso assustou até mesmo Marie que não esperava uma reação tão violenta de sua colega.

- Calma, Aiko. - Ela falou, mas foi totalmente ignorada, como se tivesse cega por um ódio irracional, ela ergueu Jess pelo cabelo a fazendo ficar em pé, o corte em sua sombrancelha estava escorrendo sangue mas ela permanecia quieta e encarava Aiko. Seu olho teve um breve lampejo de iluminação, que foi quando ela acreditou que finalmente tinha vencido toda essa calma forçada e conseguiria ter uma briga de verdade com ela mas aquilo não passou de um lampejo rápido e não houve reação alguma por parte dela.

Ficando ainda mais irritada, ela lhe pegou pela gola da camisa e puxou para bem perto, forçando sua testa contra a dela.

- Sua fracassada, você não merece ser heroína, você não será uma heroína.

Ela a jogou novamente sentada na cadeira e levantou uma de suas mãos, isso era demais até mesmo para Marie que via aquilo uma simples diversão as custas de uma "gene podre", não queria agredir ela de maneira tão bruta e teria parado Aiko ela própria, se uma mão rosa com pouco mais de um metro não tivesse parado o soco da garota e a empurrado para trás.

- Quem não merece ser nada é você, seu monstro! - A inconfundível voz de Rainbow chamou a atenção de todos para a porta da sala. Seus olhos brilhavam num tom rosa e seus cabelos da mesma cor flutuavam como se estivessem vivos.

- Vamos embora, Aiko! - Ela puxou a amiga pelo braço a arrastando para fora, sendo fuziladas pelo olhar imponente e acusador que Rainbow lhes dava. Quando finalmente saíram, ela deu alguns passos até a mesa de Jess, que estava de cabeça baixa, a garota com seu toque delicado levantou seu rosto, o corte havia sido profundo mas a ferida na alma daquela garota, tinha sido pior ainda. Seus olhos estavam cheios de lágrimas mas ela se recusava a chorar, não queria ceder para ela. Num ato de emotividade, Manu a abraçou com força, escondendo o rosto dela para que as lágrimas pudessem enfim cair.

- Por que você não acaba com elas, Jess?

- Elas não estão comentando nenhum crime, não posso usar meus poderes com entra elas.

Apesar de todo a angústia e raiva que sentia naquele momento, o abraço dela era o local mais acolhedor que ela já havia sentido em toda sua vida, nem os braços de sua mãe ela se lembrava de serem tão aconchegantes, era sentia um cheiro suave de Lírio, um calor por todo seu corpo, sentia um gosto doce e picante na boca, como chocolate apimentado, suas vistas inundadas hora por um rosa lilas, hora por um vermelho sangue, além do toque suave de pele que eram como nuvens feitas para os próprios anjos, nesses momentos de intensas atividades cerebrais que Jess não se importava de ter sinestesia, muito pelo contrário, sentia que não seria um momento tão bom e marcante quanto era, caso ela não tivesse nascido "estragada".

Infelizmente o abraço teve de terminar uma hora, para que Manu a levasse até a enfermaria pois o corte havia sido realmente muito feio.

O pior diretor do mundo

A enfermeira encostou a porta atrás de si, que era a porta do quarto em que Jess estava, a mulher ajeitou os óculos e olhou para Rainbow que estava sentada ali a espera de notícias sobre sua companheira, ela deu então uma risada curta, surpresa com toda a preocupação com a garota estava demonstrando em seu olhar.

- Não se preocupe Emanuelle, foi apenas um corte em sua sombrancelha, nada grave e nem que vá precisar de um ponto. Ela já veio para cá com ferimentos muito piores, esse corte não é nada.

A garota fez várias perguntas, não estava convencida de que Jess estava realmente bem, a escola sempre encobria estes tipos de 'incidente' para não sujar sua reputação, ainda mais se tratando de uma aluna estragada, tantas eram as perguntas que a enfermeira começou a ficar desconfortável até que no fundo do corredor o diretor surgiu, a deixando aliviada. Ele diretor chegou para intervir na situação, pois sabia do gênio forte que Manu possuía, ele era um homem corpulento, que sempre vestia um terno surrado e velho, de cor marrom e tinha os poucos cabelos que lhe restavam lambidos para o lado, um homem "comum", sem qualquer habilidade notável e que sentia no fundo de seu ser, muita inveja de Jess por ter uma peculiaridade fantastica.

Ele colocou sua mão pesada no ombro de Emanuelle, que recuou ao seu toque, pois o modo como fazia e se projetava tinha a intenção de intimidar seus jovens alunos, passando a ilusão de controle e força, mas com ela essa tática não era efetiva, pois poucas coisas eram capazes de lhe intimidar.

- Está tudo bem, Emanuelle. Você fez bem em trazer a senhorita Jéssica direto para a enfermeira, agindo de forma controlada durante um incidente, irei mencionar em seu currículo, claro, se confirmar a versão de que a senhorita Jéssica passou mal e caiu, assim cortando de forma acidental sua sombrancelha. - Ele contava essa mentira como se fosse algo casual e trivial, tinha quase um sorriso se formando no canto de seu rosto enquanto falava isso.

A vontade que a sentia agora era de partir para cima daquele homem, pegar seu colarinho e perguntar se ele havia enlouquecido! Aquilo era um comportamento inaceitável, era um absurdo que os culpados não recebessem uma devida punição, uma garota de ideais fortes não conseguia simplesmente engolir uma atitude dessas, principalmente partindo de alguém que estava em posição de autoridade, mas a compaixão que ela sentia por Jess a impediu de retrucar, já que ela era o elo mais fraco de toda essa corrente e com toda certeza acabaria sobrando para ela, mas ela não queria deixar barato.

- E quanto a quem fez isso? Como fica Aiko e Marie?! Elas não podem simplesmente saírem impunes após fazerem isso.

- São as últimas semanas de aula, Emanuelle, e apesar de não ser uma aluna tão exemplar quanto você, Aiko tem um grande futuro pela frente no ramo heróico. Não iremos manchar seu currículo com uma bobeira como está, ainda mais quando se trata de uma estragada. - Suas últimas palavras saíram como se uma cobra estivesse sibilando, de forma provocativa para ela se lembrar que quem mandava era ele, pois mesmo sendo prodígio ela ainda era apenas uma aluna e ele o diretor que poderia fazer tudo que desejasse em seu currículo.

Ela teve que controlar cada força de seu ser para não energizar suas mãos e acertar aquele homem com tudo que tinha, de todas as coisas terríveis que o mundo tem, nada a deixava mais furiosa que uma injustiça, e esse senso de justiça somada a sua notória peculiaridade, elucida um brilhante futuro a sua frente.

- Eu não vou me calar. Isso é uma conduta anti heróica, permitir que alguém como ela seja uma super heroína é cuspir em todo ideal de justiça que temos e pregamos!

Seu modo afrontoso visava buscar a justiça mas ameaças feitas a um homem como este, apenas o deixavam mais certo do que fazer e mesmo que a fibra do diretor não fosse tão resoluta quanto a de Manu, ele tinha o poder em suas mãos de acabar com o futuro delas com apenas uma carta. Ele não era apenas um diretor de um colégio primário mas também líder do Conselho de Diretores, organização que ditava os padrões escolares por todo o país e que vivia hoje uma grande polêmica com as denúncias de corrupção e o corte de vínculos com Ruffus, diretor da famosa Academia Coração Valente, a mais prestigiada academia de formação de heróis do mundo.

- Você sabe que o mundo hoje vive uma Crise de Valores, esses ideia antigos de super heróis estão ultrapassados, ninguém prega eles de verdade quando a coisa fica preta, então cresça, garota e também não se esquece que eu posso manchar seu currículo afirmado que você possui instabilidade emocional exacerbada frente a situações de grande estresse e, claro, por uso indevido de sua peculiaridade contra outra estudante, Aiko. Além de tirar suas chances de ser uma super heroína no futuro, ainda poderia expulsar aquela estragada pois fomos a única escola primária que cedeu espaço para uma defeituosa sem talentos, claro que apenas fizemos isso para receber o aumento nas verbas para "obras de inclusão".

Ela notou o quão sujo ele poderia ser, contrariada, ela deu as costas a ele e saiu caminhando pelo corredor, com passadas fortes, após se afastar um pouco, ela não se conteve mais e então se virou, apontando o dedo e lhe dando um aviso:

- Quando eu for a Embaixadora da Justiça, as coisas serão diferentes, não deixarei homens como você manipularem a justiça, isso é uma promessa. - Era uma tolice da juventude dizer uma coisa dessas, o Embaixador da Justiça é o único super herói reconhecido por todos Estados soberanos do mundo, tendo respaldo para agir em qualquer território do mundo e esse posto foi criado para apenas um homem, Justice, o maior herói que a humanidade já viu.

Ele apenas deu uma grotesca risada pois ver uma aluna que ele considerava insignificante fazer tais ameaças a alguém poderoso como ele era uma verdadeira piada.

Sem ligar muito para suas palavras, ele entrou no leito da enfermaria, onde Jess estava sentada sobre uma das macas, balançando os pés enquanto olhava pela janela, com sua mente muito distante dali, o curativo em sua testa era a única marca que a violência de pouco tempo havia deixado naquela gentil e calorosa alma. O diretor sentia um pouco de nojo da simplicidade e calmaria daquela garota, pois em sua visão, demonstravam fraqueza, se ela queria ser uma super heroína, como sempre falava, teria de ser dura e se impor, assim como Aiko ou Manu, muito diferente de como ela se portava.

- Está melhor? - Perguntou ele sem ter preocupação alguma com ela, apenas por mera formalidade e ela apesar de inocente, sabia disso e então respondeu com um resmungo e um sorriso, como se não fosse nada demais. - Então não vejo motivo para criar causo por isso. Vamos dizer que você tropeçou e caiu, assim ninguém sai prejudicado nessa situação.

Ela concordou com outro sorriso, pois partilhava da mesma opinião, não havia motivos para criar causo por algo tão bobo, via as atitudes de Aiko e das outras meninas como apenas bobeiras de adolescentes e não seria justo acabar com toda a vida delas por algo tão leviano. Após concordar, ela foi dispensada da enfermaria para ir para casa.

Ela colocou a mochila em suas costas e o capuz sobre a cabeça e então saiu pelos corredores até o pátio, onde encontrou Rainbow encostada numa parede roendo as unhas, a garota ao lhe ver, caminhou em sua direção.

- Você está bem? - Perguntou ela, seu tom de voz e suas expressões foram totalmente diferentes das que o diretor havia feito quando fez a mesma pergunta, pois ela tinha uma preocupação genuína e isso era fácil de se notar. A voz dela para Jess quase a deixava desnorteada, era uma explosão de rosa e vermelho, uma textura aveludada que a deixava boba, poderia facilmente gravar a voz dela e ficar escutando pelo resto do dia. Esse tipo de pensamento a fazia sentir vergonha, suas bochechas ficaram ruborizadas e começava a mexer as mãos dentro do bolso de forma compulsiva, Manu a observava sem entender o motivo dela ficar estranha do nada.

- Estou, obrigada, não foi nada demais.

- Claro que foi! Aquele diretor é um idiota, sempre passa a mão na cabeça daquelas vadi. Por que você não tira essa touca? Está muito calor.

- Eu tenho vergonha do meu cabelo. - Meses atrás, ela tinha o maior orgulho de seu cabelo, eram grandes e macios, iam até o fim de suas costas, num tom de castanho claro, liso com algumas ondulações, motivo dos únicos elogios que ela já havia recebido em sua vida. Quando Aiko soube o valor que ela dava para seus cabelos, num ato de maldade, colou um chiclete no meio dele, por isso ela teve de cortar seus amados cabelos. Isso a destruiu por dentro, chorou por dias seguidos, não entendia o motivo dela ter feito aquilo, ela jamais havia feito qualquer coisa para sofrer desse jeito, o mundo destava sendo injusto com ela.

O pior viria nos dias seguintes, seus cabelos agora curtos até o ombro, eram motivo de piada por todas as garotas, diziam que agora sim era o cabelo que uma estragada merecia.

Falavam que ela parecia um menino, a impediam de usar o banheiro das garotas com gargalhadas, dizendo que agora ela devia usar o masculino, mas a situação não durou mais do que dois dias, pois Rainbow, a garota mais popular do colégio, apareceu com um corte chanel, indo pouco além dos ombros, seus cabelos curtos e rosas viraram a tendência do colégio, a maioria das meninas no mês seguinte fizeram o mesmo corte e as brincadeiras com os cabelos de Jess pararam.

Apesar das outras terem continuado, as que envolviam seu motivo de orgulho a machucavam mais, por isso um alívio e uma gratidão tão grande a encheram quando aquilo aconteceu, as vezes se perguntava se ela havia cortado de propósito, mas era fantasioso demais pensar que alguém faria isso por ela.

- Seu cabelo é lindo, vamos, tira isso! - Ela própria tirou a toca de Jéssica, que ficou sem jeito, era estranho para ela agir assim, era um tipo de intimidade que ela não tinha com ninguém. - Muito melhor agora! Vou indo nessa, a gente se vê por aí. - Rainbow piscou para ela e fez seu sinal com as mãos, um "tchau" abafado deixou sua boca enquanto ela se afastava, Jess queria continuar conversando com ela, queria mais sua companhia mas não soube como dizer e nem como a fazer ficar mais, a menina mais popular do colégio tinha coisas melhores para fazer do que conversar com ela, isso era óbvio. Com esforço, ela foi caminhando para casa sem colocar o capuz novamente, em sua cabeça, por mais que sentisse vontade de o colocar novamente e sair caminhando de cabeça baixo, isso seria como desrespeitar Manu.

Olhos Escarlates

A última semana de aula se passou, Aiko não havia lhe atormentado mais nesses últimos dias, mas seus olhares haviam ficado mais intensos e cheios de raiva, o que vinha assustando Jess. O que não mudou foi sua relação com Rainbow, que ela acreditava que seria um pouco melhor após o evento da enfermaria, mas a amizade das duas continuou restrita a alguns cumprimentos rápidos, quebrando suas expectativas.

O último dia de aula então chegou, a maioria dos alunos sequer estava indo mais para escola, inclusive Manu. O motivo de Jéssica continuar indo todos os dias era o medo de manchar seu currículo, minimamente que fosse, com faltas desnecessárias, sua prioridade era encontrar uma academia que a aceitasse, sua insegurança a fez enviar cartas para metade das academias do país, nutrindo o medo de que não fosse aceita em nenhuma devido a sua condição de "estragada".

Quando o sinal tocou pela última vez, dando a liberdade que todos aqueles alunos queriam, cores cinzas e um gosto amargo de madeira foi o que ela sentiu, diferente do habitual, em momentos de grande importância, era comum a ela as sensações se alterarem, as vezes ao ponto até de a confundir e lhe deixar desorientada e foi o que aconteceu, junto do sinal, ela deu um pulo de sua cadeira, ficando em pé, assustada com a explosão de cores diferentes das que estava esperando, todos na sala ficaram a olhando por alguns segundos, muitos deles agradecidos por não terem que lhe dar mais com Jess, até mesmo o professor que estava na sala de aula revirou os olhos e deu um suspiro.

- Ainda bem que é a última esquisitice que tenho de aguentar.

Os alunos caíram na gargalhada e foram deixando a sala dando sutis comentários ofensivos a ela, que se sentou e permaneceu ali calada até todos saírem. Quando estava finalmente sozinha, guardou seu material e levantou, colocando o capuz na cabeça, se redendo a humilhação.

Ao menos ela era o fim de um ciclo tortuoso de sua vida, não seria mais julgada por ser uma estragada, mas sim por seu caráter e esforço e era nisso que sua mente se apoiava para seguir em frente.

Finalmente ela deixou aquele local de humilhação e sofrimento para trás, a última página daquele livro foi virada e a nova já estava sendo escrita, Jess não pretendia ir direto para casa, ia passar num ferro velho que era seu local de treino, para poder começar sua intensa rotina.

Estava animada e ansiosa, caminhava rápido em direção ao ferro velho e foi quando sentiu um empurrão forte pelas costas que a fez cair de quatro no chão. O susto a fez encher sua mão com uma força luminosa, acreditando que seria assaltada, mas ao virar a cabeça, viu que se tratava de  Aiko, desfazendo a energia de seu pulso.

- Finalmente vai parar de agir como uma ratinha e me enfrentar? - Perguntou a garota, com seus olhos ficando escarlate e seus caninos aumentando de tamanho, sua vontade de finalmente dar uma lição naquela garota aconteceria, mostraria para ela a diferença entre alguém que realmente merecia se tornar uma heroína e ela, que era fraca, não só de corpo mas como de espírito, mas ao ver que ela dissipou a energia de sua mão, a raiva tomou conta dela, puxando Jess pelo cabelo, a colocando em pé a sua frente.

- Para! - Gritou a menina, mas de nada adiantou, Aiko a bateu contra a parede com força, usando seu braço para a manter prensada, ela tentava a empurrar para longe, para se desvincilhar do aperto que a machucava mas a força que ela tinha era desproporcional, era muito mais forte que Jéssica e facilmente a mantinha ali.

Seus olhos escarlates deram um lampejo, a mente de Jess começou a girar, escutava ao fundo uma risada macabra que parecia a de Aiko, mas estava carregada com um tom de maldade que ela jamais havia ouvido. A palavra "ratinha" e "estragada" começaram a surgir em sua cabeça, com explosões de cores e sabores que deixavam mais desorientada, era quase como um ataque epilético. Até o momento, nenhuma das duas sabia mas a peculiaridade de Aiko era mais forte em Jess, devido sua condição sinestésica, a confusão mental era triplicada, tornando sua habilidade invencível contra ela.

O embate mental que ali ocorreu, pareceu que hora haviam se passado naquela intensa agonia, quando na verdade poucos minutos se passaram, a menina dos cabelos negros lhe soltou, sem força alguma, Jess caiu de joelhos ao chão, com os olhos vidrados, naquele momento sua mente estava a um passo de entrar em colapso, mesmo a própria Aiko não tinha noção da proporção que sua "lição" poderia ter tomado caso sua peculiaridade fosse levemente mais desenvolvimenta ou se Jéssica fosse mentalmente mais fraca.

Mas sem saber do risco irresponsável que havia acabado de ocorrer, ela se afastou se sentindo triunfante, uma verdadeira vitória sobre aquela garota fracassada, uma vitória para si mesmo, finalmente havia mostrado a ela a diferença entre alguém que realmente se tornaria uma heroína, para uma estragada que não tinha noção de suas limitações.

Sem se importar com o verdadeiro estado de Jess, ela deu as costas e saiu caminhando, deixando a garota que não esboçava reação alguma caída de joelhos. O tempo foi se passando e ela permaneceu ali, sem se mexer, o que começou a atrair os curiosos que passavam por ali, alguns tentavam falar com ela, até a sacudiam para ver se conseguiam obter algum tipo de reação mas era tudo sem sucesso, a essa altura já haviam ligado para uma ambulância, pois acreditavam que era obra de algum super vilão.

Um homem começou a abrir a multidão para se aproximar da garota, levava uma garrafa de whisky em sua mão, usava chinelos amarelos e uma bermuda florida, com uma camisa de gola alta. Seus cabelos vermelhos eram um pouco mais curto que os de Jess, ele se abaixou a frente da garota e observou seus olhos vidrados no nada, um dos rapazes que estava na multidão achou a atitude daquele homem estranha. Colocou a mão em seu ombro e falou num tom grave a ele;

- Não toque nela seu bêbado, o estado dela pode ser crítico.

- Para de ser bocó, ela está apenas em estado de choque.

Ele tocou com seu dedo indicador na testa dela, todos olharam apreensivos a garota, poucos segundos após ele a tocar, ela começou a piscar, balançou a cabeça e olhou para os lados assustada e confusa, sem entender por que tinha uma multidão em sua volta, as pessoas começaram a bater palma para o homem e lhe dar diversos elogios, ele tomou um gole da garrafa de whisky e se levantou. Ele estendeu sua mão para ela e lhe ajudou a se levantar também, a menina estava desnorteada e suas pernas bambas, além de não estar entendendo nada do que estava acontecendo, se lembrava apenas de Aiko ter usado sua peculiaridade contra ela e agora estava ali, não sabia sequer quanto tempo havia se passado.

- Vamos lá garota, onde tu mora?

- Eu? - Perguntou ela levando a mão a cabeça, forçando seu cérebro a funcionar.

- Sim, eu vou lhe levar pra casa - Ele passou o braço em volta de seu pescoço e começou a caminhar a guiando. - O show acabou para vocês. - Disse ele para as pessoas em volta, que agora começavam a deixar o local. Jess ficou incomodada com ele, não tinha ideia de quem ele era e estava pondo o braço em volta de si, o cheiro de álcool era como se estivesse esfregando o corpo numa parede de cimento, ela então tirou seu braço e se afastou, dando alguns passos para o lado.

- Quem é você?

- Eu sou Klaus e você, quem é? - Ela ficou o encarando por um tempo e não o respondeu, estava incomodada e ele não parecia ser alguém que se podia confiar. - Não precisa me dizer seu nome, mas o que aconteceu pra você ficar daquele jeito, meninha?

- Foi uma colega de escola, ela usou sua peculiaridade em mim, não acho que ela sabia que eu ficaria nesse estado.

- Vamos levar a polícia até essa guria.

- Não! - Falou Jess num tom mais alto, o que chamou atenção dele, Klaus tomou outro gole de seu whisky e limpou a boca com a mão.

- E por que não?

- Não quero dar problemas para ela. Nunca mais vamos nos ver, as aulas acabaram, não precisa disso.

- Ela te sentou o sarrafo, te deixou largada em choque no meio da rua e tu num quer fazer nada, é?

- Como disse, não há necessidade.

- Se tu acha melhor assim, então tá. Por que não revidou e quebrou a fuça dela?

- Eu jamais usaria mimja peculiaridade por uma bobagem dessa, não é assim que heróis agem.

- E como que heróis agem?

-  Se nós usarmos nossas peculiaridades contra qualquer um é como iniciar um ciclo onde a lei do mais forte prevalece, aqueles que forem mais fortes poderiam simplesmente fazer o que quisessem e ninguém poderia se opor a eles, temos se ter responsabilidades com o uso de nossos dons e usá-los apenas quando for para proteger vidas inocentes ou por um bem maior, não numa simples briga de escola.

O homem começou a dar risada, Jess não havia ido com a cara dele, o tinha achado estranho e fedido, mas sua risada era singela e amistosa, era genuíno e simples, não parecia ser alguém de má índole.

- Meninha você tem muito que aprender sobre ser um super herói, mas está no caminho certo.

Com mais um gole em sua bebida, ele saiu caminhando, havia sido uma experiência um tanto estranha para ela.

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