O LADO ESCURO DA ESPERANÇA

Mais tarde Theodor teve que sair para trabalhar, olhei atônita para Lunna, que me observava enquanto mordia um punhado de sucrilhos, os olhos brilhando de curiosidade. 

Não sei o que deu na minha cabeça para convencer Theodor de que poderia cuidar da menina. 

O desafio me deixava nervosa, mas, ao mesmo tempo, havia uma alegria sutil no olhar que compartilhamos.

Que me dava a coragem que eu precisava.

“ Por que me olha assim?” — Lunna  perguntou, a boca ainda estava cheia. 

“ Não sei o que fazer com você.”— admiti, encolhendo os ombros. 

Ela deu de ombros de volta, como se aquilo fosse a coisa mais simples do mundo. 

“ Fácil. Já tomei banho ontem, então hoje não precisamos gastar água. Você brinca comigo toda hora, não me dá legumes nem fruta, e me deixa jogar no seu celular. Viu só? Não sou uma criança difícil.”

Tentei, mas não consegui segurar o riso. Que menina atrevida! 

“Não fiquei muito confiante com suas palavras”  — provoquei. 

“Sou sua filha!” — Lunna exclamou, indignada. 

“ Eu sei, por isso mesmo tenho que manter os olhos abertos.” — pisquei para ela. 

Apesar de não seguir os “conselhos” da pequena, no final do dia me surpreendi: consegui lidar com todas as tarefas sem maiores problemas. Limpei a casa, recolhi brinquedos espalhados e, mesmo com as reclamações, Lunna comeu a salada que preparei para o almoço e até repetiu o miojo. Aquilo foi uma vitória. 

Enquanto esperávamos Theodor, desenhávamos em um papel gigante. Quando a campainha tocou, Lunna correu para atender. No momento em que a porta se abriu, senti um frio na barriga. 

“ Vozinha, vem ver o que estamos desenhando!” — Lunna puxou a mãe de Theodor até a sala. 

“ Não acredito que se mudaram para esse... lugar.” — resmungou a sogra. Quando seus olhos encontraram os meus, o sorriso falso que ela ofereceu foi como um soco no estômago: “Ah... você aqui, que prazer.”

“ Pois é a minha casa. Onde mais eu estaria?” — respondi sem pensar, incomodada com o tom dela. 

“Onde está Theodor? Quero falar com ele.”— Ela ignorou minha resposta, provavelmente irritada. 

“Foi trabalhar, mas já deve estar a caminho.” — respondi, dando de ombros e tentando me concentrar no desenho. 

“Que seja. Eu é que não vou ficar nesta espelunca. Pegue suas coisas, Lunna, para irmos.”

“Lunna não vai para lugar algum.” — declarei, levantando-me do chão. 

Não era por mal, mas Theodor não havia me dito nada e Lunna estava por minha responsabilidade até ele voltar.

“Como é? Está me contrariando outra vez, ainda por cima na frente da minha neta?”  - ela me olhou de baixo para cima, de um jeito insultante.

“Não sei o motivo de tanto espanto, mas ela não vai.” 

A sogra bufou e começou a andar de um lado para o outro, telefone na mão. 

“Vou ligar para Theodor dar um jeito nisso.” 

“ Fique à vontade. Se quiser, posso tentar ligar também.”— ofereci.

Viu só? Também sei ser irônica. 

“Que afrontosa!” — ela gritou, fazendo Lunna correr para os meus braços: “ Acho que perdeu a memória demais, esqueceu quem manda nessa família?”

“Na sua família, pode até mandar, mas na minha... Pode tirar o cavalinho da chuva. Não vou deixar Lunna ir!”— afirmei, cruzando os braços. 

Ela saiu sem se despedir, bufando algo como “Você vai se arrepender”. 

“Agora são dois cavalinhos na chuva!” — gritei antes de fechar a porta, abraçando Lunna, que tremia em meus braços. “Estou aqui com você, filha. Vou te proteger.”

À noite, quando Theodor chegou, o ambiente estava calmo. Ele me cumprimentou com um beijo na testa e foi direto para a cozinha. 

“Sua mãe veio aqui hoje.”  — comentei, o seguindo.

“Ah, verdade. Elas iriam para a fazenda hoje.” – ele respondeu, enquanto abria a geladeira.

“Não deixei. Lunna está dormindo no quarto dela.” – me sentei na mesa.

“Por quê?” – pegou uma jarra de água.

“Você não me avisou, e além disso, ela me irritou.” – suspirei, me lembrando de mais cedo.

“Vocês brigaram?”  - ele me olhou atônito.

“ Ela, sozinha.” – cruzei os braços, mostrando meu desgosto: “Eu a  respeitei só porque ela é sua mãe. Mas da próxima vez, vou mostrar que aqui não é território dela.”

Ele riu, surpreso: “ Você está dizendo isso? Uau.” 

E o ignorei, não querendo levar esse assunto adiante, mudei de assunto:

“E para onde ela queria tanto levar a Lunna , que não podia esperar você chegar?”

“Eles estão indo para a fazenda da minha avó, para a festa de fim de ano. – ele comentou enquanto colocava seu jantar para esquentar. – “Fazemos todo ano assim.” – e adicionou como se não fosse nada de mais.

“Porque ela não pode ir com a gente?”

“Nós vamos?”  - ele me olhou, descrente.

“ E iriamos pra onde? Não é uma tradição de ano?”

“ Da pra próxima vez...” – ele começou com o receio.

“Esquece o que aconteceu da última vez.” – eu interrompi ele. Vendo que ele parou o que estava fazendo para me ouvir, parei em sua frente e continuei meu argumento.

“Não era para viver o presente? Estou vivendo, então não me lembre do passado.”

“Okay.” – ele sorriu, me dando um voto de confiança que eu tanto precisava.

“Eu só preciso avisar para o meu... Quer saber? Eu aviso que vou precisar de uns dias das minhas folgas pendentes.” – ele riu, como se desacreditasse da reviravolta de nossa noite.

“Mas a festa da virada é só no final de semana.” – falei sem entender tanta pressa sendo que ainda era terça – feira.

“Mas todos estão chegando hoje para aproveitar o resto da semana , e nós também.”

“Tudo bem.” – sorri junto, me contagiando com sua animação.

Depois de quase duas horas de viagem, chegamos em um canto afastado da ilha de Arapolis. Estava quase me perguntando se estávamos perdidos, mas então apareceu um velho portão eletrônico que foi aberto após Theodor apertar um controle. Nos fazendo entrar em uma estrada de chão, em direção a uma mansão rústica.

Quem são a família dele?

“Você é milionário?” – pergunto sem acreditar.

“Milionário não, mas confesso que nunca tivemos o problema com dinheiro.” – ele riu como se não fosse nada de mais, estacionando o carro.

“Com certeza não, olha só esse jardim!” – falei admirada.

“Isso é porque você não se lembra daqui e viu só a entrada. – ele riu saindo do carro e foi pegando uma Lunna dorminhoca no colo. “É que a minha família está na cidade há muito tempo, tanto que foram um dos fundadores.” – ele abriu a porta do carro para mim.

“Não acredito! Você é um Valentino... A única família fundadora ainda na cidade?”– sorri, impressionada. Eles eram considerados os reis de Arapolis.

“Eu, você, nossa filha e por aí vai.” – ele ofereceu sua mão livre pra me ajudar.

“Rosana Soares Valentino, é um bom nome.” – eu sorri confiante, segurando a sua mão. Que me puxou para perto.

Seria um tanto romântico se não tivesse uma criança em nosso meio e uma buzina tocasse repetidamente atrás de nós.

“Olha quem mudou de ideia!” – um cara loiro saindo gritando de sua caminhonete branca.

“É meu primo Daniel.” – Theodor me explicou, antes de ir em direção ao primo. “Viemos espairecer a cabeça, e qual lugar melhor do que a fazenda?”

“Sem dúvidas que é aqui, falando nisso, por que não aproveita e vem a boate do Victor? Desde que inaugurou você vem prometendo.”

“Acho melhor não...” – Theodor olhou pra mim, antes de se desculpar com o primo. “Foi uma longa viagem até aqui.”

“Entendo, deixa pra próxima.” – Daniel me fulminou e eu não entendi o porquê.

“É... Já vamos entrar, a Lunna é pequenininha mas deixa o meu braço dolorido.” – ele sorriu, claramente mandando de assunto.

“Até.”  - o primo se despediu, enquanto nos distanciamos.

“Porque seu primo me olhou daquele jeito?”, perguntei, sentindo um arrepio desconfortável. O olhar dele era como se me julgasse, mas por quê? “Foi você que negou.”

“No passado, vocês tiveram algumas desavenças.” – ele explicou sendo um pouco vago.

Eu queria mais explicações, mas fomos interrompidos quando entramos no casarão.

“Théo você veio!” – a mesma ruiva da festa de mãe de Theodor, pulou de felicidades logo quando ele entrou.

“E não veio sozinho...” – o irmão mais velho de Theodor mostrou seu desapontamento, mas logo tentou disfarçar quando levou uma cotovelada da ruiva. - “Que prazer.”

Deixa eu adivinhar, também não vão com a minha cara?

“Posso ir para o quarto?” – perguntei baixinho para Theodor, a minha recepção tinha sido angustiante.

Nos dois dias seguintes, na fazenda da família, fiquei observando Theodor se divertir com os primos, gargalhando como se nada mais importasse. Lunna, no colo dele, também parecia parte daquele mundo. Eu, no entanto, me sentia como um quadro torto em uma parede sofisticada.

Tentei me ocupar organizando algumas coisas, mas a sensação de isolamento era pesada demais. Aquele silêncio interno começou a me sufocar. 

À noite, enquanto estávamos no quarto, esperei Theodor deitar antes de dizer: 

“Quero ir até a boate do seu amigo Victor.”

Ele franziu o cenho: “Sério? Você não gosta desse tipo de coisa.”

“Eu quero me distrair um pouco... Preciso respirar.” 

“Você está bem?” — Ele me olhou preocupado. 

“ Estou tentando ficar.”

Depois de um longo silêncio, ele assentiu: “Tudo bem. Vamos amanhã à noite.”

Finalmente, senti um peso sair dos meus ombros. Talvez sair de lá fosse o que eu precisava. 

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Comments

Gatita 😽

Gatita 😽

Lunna é a melhor pessoa, adoro ela 😸

2025-03-16

1

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