Refeição

— Você tem sorte de ter nascido com esse rosto – disse com uma risada – A diretora nunca vai te colocar naquele lugar.

— Cala a boca! – Alex me deu um soco no braço – Um dia eu vou destruir esse lugar maldito.

— Esse lugar vai se destruir sozinho. Não é como se a diretora pudesse esconder as cosias que ela faz para sempre.

— É! – Alex disse determinado – Assim que a gente conseguir uma boa família, vamos derrubar esse lugar de merda!

Eu dei um sorriso desanimado. “Os desejos puros de uma criança.”, pensei. Ainda precisava me acostumar com tudo aquilo, mas era ótimo rever meu amigo de infância. Eu tinha que pensar no que fazer daqui para frente.

— Certo, meu príncipe – falei em tom de deboche – mas vamos almoçar primeiro?

Enquanto caminhávamos para a cantina, percebi que deveria estar perto do meio-dia e que esse lugar realmente precisava de relógios. As crianças e funcionários já estavam reunidos para almoçar. Alex comia naquele lugar comigo, mesmo a diretora oferecendo várias vezes acomodações melhores para ele.

Os “anjos” da diretora sempre comeriam com ela numa sala separada, onde o melhor cardápio era oferecido. A diretora era uma mulher muito esperta, ela oferecia uma cenoura amarrada em uma vara para as crianças que mais se esforçavam em agradá-la, assim ela tinha um controle ainda maior do orfanato. Ter mais tempo de acesso à internet e poder almoçar algo melhor eram alguns desses benefícios. Para o restante, aquele frango malcozido e de cheiro estranho era o que comeriam.

A cantina sempre tinha aquele cheiro esquisito, como se nunca fosse realmente limpa, mas eu digo que era a comida que fedia. Mesmo a vigilância sanitária revirando tudo, esse cheiro estranho nunca mudou. Poderia ser que o cheiro impregnou nos átomos das paredes?

— Que cheirinho maravilhoso – ouvi uma das crianças comentar baixinho.

Seria bom que ela começasse a falar mais baixo. Sempre que alguém reclamava da comida passava um dia sem comer. As crianças, no geral, eram bem solicitas umas com a outras. Unir-se na miséria era tudo o que tínhamos, mas havia sim aquelas que deduravam os outros para conseguir vantagens. Você não pode esperar altruísmo e união em um sistema que recompensa os egoístas. Se você espera isso, eu sinto informar, mas você é maluco.

Enquanto esperava na fila para pegar meu prato, deixei um “status” escapar baixo o bastante para ninguém ouvir. Para a minha sorte, eu conseguia mover as janelas apenas com a mente e o movimento dos olhos. Enquanto viajava por elas, minha janela que indicava meu Djin estava vazia.

Meu coração apertou, ser um Guardião sem um Djin inicial era muito estranho, eu nem achava que fosse possível. Havia apenas uma mensagem onde deveria estar o chalé: “Você ainda não possui um Djin, por favor, procure um”. Começar com uma dessas criaturas era o básico, afinal, eram eles quem nos faziam despertar como Guardião. Durante as caçadas é possível encontrar Instrumentos de Invocações de Djjin. Com esse item se pode invocar um Djin, assim os Guardiões podem ter equipamentos melhores. Lembro que meu primeiro era um produtor de cajados. Isso mesmo, eu um cara que lutava corpo a corpo e não tinha um pingo de habilidades magicas, tinha um Djin produtor de Cajados. Quem fez isso comigo era bem sádico.

Não existe um limite para quantos Djins um Guardião podia ter sob contrato, se você tivesse dinheiro o bastante, é claro. Isso fazia com que grandes Guildas possuíssem fábricas para a produção em massa de itens. Mesmo sem um limite para esses contratos, os guardiões normais não conseguiam suportar os custos de alimentar vários Djins. Eu sou um anormal que gastava todo meu dinheiro com eles, mas não é como se eu pudesse deixá-los sozinhos, certo?

Como os Djins tinham um jeito único de criar itens, isso permitia infundi-los com essência mágica e atravessar a alta resistência dos monstros. Muitos humanos tentaram replicar essa forma de construir, mas o resultado era sempre inferior. Parecia algo intrínseco á própria existência deles. Havia, é claro, um limite para o quanto dessa essência os Djins podiam infundir em suas criações.

Quando um Guardião precisava de itens mais poderosos, ele costumava abandonar seu antigo Djin e forjar um contrato com um que pudesse fabricar equipamentos mais poderosos. Abandonado, o Djin normalmente caia na natureza. Devido ao nível de perigo que estava o mundo no meu tempo, se ele não fosse acolhido por outra pessoa a pobre criatura acabaria morta. Existia um método para enviar o Djin de volta ao seu mundo original, que, embora custoso, era mais benéfico para ele. Poucos eram os Guardiões que faziam, porque o processo envolvia muitos recursos preciosos.

Além de mim, existia uma Guardiã conhecida como Allana, a santa. Ela possuía uma ONG na Inglaterra que acolhia os Djins abandonados, e sua instituição gastava muito dinheiro para acolher e cuidar deles. Eu me inspirei nela para ajudar, mas como não tinha condições de ir para a Inglaterra, eu fazia o que podia aqui mesmo, numa escala infinitamente menor.

— É aquele creme de frango esquisito de novo… – Alex falou desanimado, interrompendo meus pensamentos.

— Olha pelo lado bom – aproximei o rosto dele para falar – Podia ser aquela linguiça dura como madeira e aquele frango que o povo daqui assa no soco.

Alex fez uma careta imaginando. O orfanato ficava relativamente próximo de uma granja, ovos e carne de frango eram algo que comeríamos todos os dias, se não fosse a nutricionista que trabalhava na cozinha, mas frango e linguiça eram lei. Dia sim e dia também isso estava no cardápio, e quando um milagre acontecia, comeríamos algo um pouquinho melhor ou tínhamos sorte de a linguiça não ser velha e estar com a textura de uma pedra.

— Nem me lembra disso! – Alex disse abraçando o próprio corpo – Ontem foi horrível!

Quando chegou a nossa vez, coloquei um pouco de arroz branco e feijão, e tinha uma salada muito suspeita, mas me forcei. Coloquei um pouco de sal por cima para disfarçar o gosto horrível. Engraçado, não importava quantos anos tenham passado, eu ainda conseguia lembrar perfeitamente como aquela comida era horrível. Algumas empresas de calçados da região também serviam aquela comida, era a mesma terceirizada nessa época, cada refeição daquela devia custar menos de 40 centavos.

Barato, concordo, mas caro para o nível de lavagem que eles serviam, pois os porcos deviam se alimentar melhor. Pelo menos, os porcos comiam ração a base de soja. Para as crianças, não havia escolha a não ser comer aquilo, era isso ou passar fome. Peguei um ovo cozido e o cara que estava servindo despejou aquela massa gosmenta de frango no meu prato.

— Valeu – falei com um sorriso.

O homem não disse nada e então continuei andando para pegar o suco de uva, ou melhor, água suja com cor roxa. A empresa dizia que era suco natural, mas aquilo era apenas água pintada, não existia a possibilidade de ser outra coisa. Peguei um copo de plástico e esperei por Alex. Andar ao lado dele era evitar a fadiga, então melhor esperar.

— Vamos – Alex falou passando por mim.

Caminhamos por entre as mesas e podia sentir alguns olhares perfurando minha nuca. Seguimos para a nossa mesa costumeira, mais ao canto do refeitório. Vez ou outra enquanto passávamos, alguém cumprimentava Alex e ele parava para falar com a criança. Como estava acompanhando-o, parava junto, e se não parasse, eu podia sentir a mão dele em um poderoso aperto me segurando pelo braço.

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