Meu amigo

Finalmente sozinho eu poderia começar a pensar no que deveria fazer em seguida. Minhas estatísticas eram muito baixas, precisava começar a subir elas um pouco antes de realmente mergulhar de cabeça nas caçadas. Eu não tinha nem o básico que um adulto comum, que era 10 nos atributos. Tirando alguns deles que estavam assustadoramente altos, todo o resto estava bem abaixo do essencial. Joguei minhas pernas para o lado e fiquei de pé, indo para um espelho grudado à parede próximo da porta.

— Meu corpo está todo dolorido... – Passei a mão nas costelas e senti uma pontada estranha – será que está quebrada?

Tirei a camisa larga que estava usando e arregalei os olhos quando percebi o tanto de manchas escuras que tinha por todo a minha pele. Minha pele era escura naturalmente, mas era facilmente perceptível os calombos espalhados por todo o corpo. “Esses caras me deram uma surra daquelas”, pensei, enquanto passava os olhos por cada uma daquelas contusões. Eu deveria ter perto de 1,50 metros, e meu cabelo por ser crespo sempre foi cortado no zero, porque as cuidadoras dali diziam que daria muito trabalho cuidar deles. Apenas quando fiquei adulto deixei meu cabelo crescer, já que não tinha ninguém para me impedir. Meus lábios tinham uma pequena ferida e eu podia sentir um suave gosto de ferro, quando passei a língua pelos dentes. Meu nariz, por sorte, não estava quebrado, mas todo o resto doía bastante.

— Logo vou deixá-los crescerem de novo – passei a mão nos cabelos, tão curtos que espetavam ao toque.

— De novo, hein? – uma voz risonha ao meu lado me pegou de surpresa.

Parado bem ao meu lado com um sorriso enorme estava Alex, meu amigo de infância. Alex era um garoto baixo para sua idade, com um rosto tão bonito que parecia um pecado. Ele tinha aqueles traços asiáticos que no futuro seriam muito “cobiçados” pelo sexo oposto, e certamente ele poderia trabalhar como modelo se colocasse algum esforço. Seu cabelo era um pouco mais longo e liso, tão pretos quanto a noite e sua pele branca dava ainda mais destaque a eles. Os olhos puxados formavam o sorriso provocador que mantinha enquanto olhava para mim.

— Você sabe que as vadias não vão gostar nada disso – ele disse com uma risada.

— Eu não vou ficar aqui para sempre – respondi – o que aquelas bruxas acham não me interessa.

— Você logo vai ser adotado – Alex disse com um sorriso brilhante.

Quando mais jovem eu poderia ter acreditado nesta mentira, qual criança não queria ser adotado e sair daquela vida infernal de orfanato? Todas, para falar a verdade, queriam sair daquele lugar. Ainda que tivessem algumas pessoas boas, a diretora parecia fazer questão de contratar sempre as piores pessoas possíveis para tomar conta do lugar. Não existiam outros orfanatos na região, o único que tinha além desse era o que ficava na capital, logo, a maioria das crianças abandonadas iam para esses dois.

— Duvido muito – disse com um sorriso amarelo.

Eu já sabia o que aconteceria no meu futuro. Ficaria preso nesse lugar até ser forçado a sair quando o ataque veio. Legalmente, o orfanato tem a obrigação de me manter aqui até minha maioridade. Com a aparição dos monstros, porém, a fiscalização foi afrouxando. Quando eu sentia que eles me jogariam fora foi quando esse lugar veio abaixo durante a terceira onda. Meu destino foi bem melhor do que da maioria das crianças daqui que morreram durante o ataque. As que sobreviveram ficaram tão traumatizadas que algumas terminaram emcasas de apoio mental.

— Mas cara... – Alex disse olhando para meus hematomas – eu tinha ouvido que eles se juntaram para te bater, mas eles passaram dos limites. O que foi dessa vez?

— Não lembro – falei enquanto voltava a olhar para meu corpo.

Eu estava muito magro para a minha idade, ouvi de algumas pessoas que meu corpo tinha uma tendência natural a ficar grande, genética ou algo assim. Quando adulto, meus músculos eram mais desenvolvidos; mesmo sem muito esforço. O que eu atribuía às minhas estatísticas elevadas.

— Eles precisam de motivo? - perguntei.

— Você deveria bater de volta! – Alex disse com raiva.

Eu não disse nada, apenas coloquei minha blusa novamente e dei uma última olhada no espelho enquanto Alex me encarrava puto. Não culpo meu “eu” do passado, eram muitos para lidar sozinho e meio que eu era um “imundo” naquele orfanato. Ninguém sabe do meu passado, mas por ser como eu era, as pessoas dali assumiram o pior de mim. Talvez um pai bêbado que matou a mãe às pancadas e jogou o filho indesejado nas portas do orfanato. A diretora me tratava muito mal no geral, ela parece ter me escolhido de santo e me usava como modelo de criança ruim para manter as outras na linha.

Se Alex não fosse um dos queridinhos daquela megera, estar perto de mim causaria muitos problemas. Alex tinha bastante carisma, conversava com todas as crianças com igualdade e seu rosto bonito ajudava bastante. Já eu... bem, pele escura, nariz um pouco mais grosso, lábios volumosos, cabelos crespos. Tudo o que as pessoas achavam feio, no geral. Eu sempre pensei assim na infância, quantas vezes não chorei a noite pedindo para acordar magicamente branco um dia... Só quando fiquei adulto me aceitei como era.

— Eu deveria reagir da próxima vez? – falei deixando minha voz morrer naquele longo suspiro pensativo.

— Isso aí, caralho! – Alex deu um tapa em minhas costas – Só faça isso em segredo, bem... você lembra...

— Em segredo ou não, você sabe que minha palavra tem pouco valor aqui – disse com um suspiro – se a diretora suspeitar de qualquer coisa eu tô ferrado.

— Tsk, mulher nojenta – Alex disse quase cuspindo – quando eu sair daqui eu vou denunciar ela.

— Você precisa arrumar uma família boa primeiro – falei – não é na próxima semana que um casal rico vai aparecer?

— Não tenho certeza, acho que não... – Alex disse pensativo – ouvi uns comentários também, mas acho que não vai acontecer agora. Aquela mulher já estaria falando para os quatro cantos se isso fosse verdade.

— E provavelmente estaria fazendo vários preparativos – completei – me prendendo no porão, por exemplo.

Alex não falou nada, mas ele sabia que aquilo era verdade. Eu podia sentir a raiva queimando em seus olhos só de imaginar aquilo e um sentimento estranho surgiu no meu peito. Quando a diretora não queria que uma criança indesejada encontrasse um potencial casal adotivo, ela as trancava no porão. Alex nunca foi preso naquele lugar, mas ele ouvia os relatos assustados das outras crianças. Era horrível, eu ficava preso lá todas as vezes e só de lembrar daquele lugar imundo me deixava arrepiado.

O porão ficava em um lugar mais afastado do prédio principal. Como o orfanato foi construído em cima de uma cadeia antiga, o prédio foi quase todo reformulado, mas as celas ficaram ali. Existiam muitas histórias estranhas ao redor daquela construção. Alguns diziam que um assassino matou todos ali dentro em uma noite ou que a ditadura militar usou aquele lugar como sede para várias das torturas que eles aplicavam nos opositores.

Independente da verdade, as celas subterrâneas possuíam uma energia estranha e pesada. Talvez seja a minha imaginação traumatizada falando, mas algumas vezes durante a noite era possível ouvir gritos e gemidos de dor.

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